ENTREVISTA COM PEDRO COSTA
FOCO: Pedro, você começa Cavalo Dinheiro com as fotografias do Jacob Riis, e em entrevistas tem dito que o caráter às vezes mais jornalístico, que não só fornece uma ideia sobre um mundo retratado como também base para um trabalho concreto sobre esse mundo retratado, é o que te interessa na fotografia, em detrimento de uma fotografia mais “formalista”. É o contexto social das narrativas que atrai, digamos, uma escolha em direção ao realismo?
PEDRO COSTA: Acho que sim, acho que há uma parte do que tu dizes. Mas talvez seja, ou talvez eu cite alguma espécie de informação sobre a realidade que é mais abstraída na fotografia imediatamente, talvez pela ausência do tempo do cinema, do tempo e do movimento; essa informação do que podemos chamar “social”, a composição. Como é que a sociedade se enforma num retângulo de fotografia, como é que ela nos aparece? Há uma abstração, imediatamente, que nem nos grandes fotógrafos. Não estou a falar só de tirar uma fotografia ao acaso ou numa favela, nem o retrato de um homem amargurado sem abrigo, não é isso. Enfim, fotógrafos que não são propriamente artistas, são repórteres, mais documentais, normalmente eu sinto que têm mais retorno do mundo – da realidade, da sociedade – do que em muitíssimos documentários com movimento e com palavras. Não chegam a passar um certo estado de estereótipo, algumas armadilhas em que caem normalmente os documentaristas de cinema ou algumas ficções. E eu acho que é necessária esta abstração para repor as coisas no seu lugar. Não é um formalismo. Não se trata de um formalismo. É a necessidade de informação pura e simples, informação enxuta de intenções, de ideologia. E a fotografia consegue isso. O cinema não consegue. Inclui o tempo, e a coisa aí complica-se.
FOCO: E no caso, por exemplo...
PEDRO COSTA: No caso, por exemplo, do Riis, ou no de outros fotógrafos, eu pelo menos sinto que há menos memória do que no cinema. Esta prisão do real naquele instante não nos chega como memória, aquela espécie de fotografias do passado, amareladas, sépia, a mim nunca chegam como memória do passado, são muito mais presentes porque não acontece em ti essa reconstituição histórica, esta operação não é realizada. No cinema, é. E outra vez, por causa desse desfasamento, com o tempo as pessoas falam e andam e movem-se na tela, mas é uma espécie de imitação de como as pessoas andavam há cem anos, digamos assim. E na fotografia não. Não acontece. Não há tempo para a fotografia. Não há tempo histórico.
FOCO: E como você encaixa, por exemplo, o Empire State Building filmado pelo Andy Warhol dentro do que seria uma ideia realista no cinema, já saindo da fotografia?
PEDRO COSTA: É complicado. No caso do Warhol, parece que, para além de ele ser um dos mais conscientemente americanos, no sentido de que traz consigo sempre uma espécie de grandeza, de poder, da força do dinheiro, daquela sociedade capitalista, ele não vê nada para além da gravidade. Ele é muito consciente, sabe que esta sociedade é uma sociedade em que há um caminho, inevitável em todos os segundos, para a morte. Há uma gravidade, em qualquer gesto, qualquer olhar, qualquer obra feita pelo ser humano que tende para a morte, que tende para a sua própria aniquilação. Mais nos outros filmes; o Empire talvez seja mais experimental que os outros no sentido de ser menos montado, menos encenado – é um olhar. Mas nos outros filmes eu acho que é muito isso, há um sentido do trágico que muitos cineastas daquele tempo não conseguiam filmar. A dúvida – e acho que o Langlois falava disso – é: que nível de consciência ele tinha? Há, de qualquer maneira, uma intuição, um gesto tão forte que tem a mesma grandeza dos pioneiros, dos primitivos, ou seja, em cada plano do Warhol tu podes fazer milhares de escolhas, tens caminhos a percorrer, há uma espécie de liberdade ao mesmo tempo que uma prisão. De um lado há defeitos de luz, há defeitos de ângulos, há defeitos no sentido de composição da imagem – o que é estranho para ele, sendo ele um artista visual, desenhista, pintor, um talento muito forte –; e nos filmes parece que a câmera foi pousada ali pela primeira vez, foi encontrado o sítio, o ponto do olhar, muito rapidamente. Depois há alguma espécie de bem-estar ou confiança naquela sala/sociedade/mundo que o faz olhar com muita candura; mas aquilo é muito trágico ao mesmo tempo. Sempre me afligiu nas famosas telas... eu tenho sempre essa sensação de que não é só a droga, ou só o suicídio; que há um desfalecimento naquelas pessoas, às vezes mesmo com sua extravagância, uma espécie de correr para o muro, para a parede, que é muito evidente para mim. Há também uma opacidade, as pessoas são muito opacas nos filmes dele. É estranho. São muito opacas. Podem estar completamente despidas, nuas e debatendo problemas aparentemente sem grande importância, o penteado, o namorado, não sei o quê, mas há uma opacidade que é muito perturbadora e para mim é mesmo muito... acho que a palavra é “aflição”. Há uma aflição: assim que começa o filme na tela eu sinto muito medo, são coisas que me causam grande temor. Para onde esta gente vai, o que é que vai acontecer? Há um anúncio, há um cheiro de morte nos filmes do Warhol que me fascina. É um dos cineastas modernos que mais tentou fazer com que o cinema se pensasse. Porque em cada longuíssimo silêncio há uma grande dúvida, que não tem a ver com a ficção, acho que tem mesmo a ver com o espectador. São filmes também muito desinteressados, o que é estranho para o Warhol, que não tem nunca aquela ideia do comércio. Nunca foi um cineasta muito visto nem conhecido, nem comercial.
FOCO: Até hoje.
PEDRO COSTA: Creio eu, não sei. Um dia na Cinemateca – e era a primeira vez que eu ia ver o Warhol –, sem grande convicção fui à Cinemateca, e havia uma fila de espera, porque esta retrospectiva, que não era completa, acompanhava uma mostra de pintura no museu ao mesmo tempo. Uma grande operação do Warhol em Lisboa, há muitos anos. E havia uma fila como eu nunca tinha visto. Depois falava com as pessoas da Cinemateca lá que eles só tinham visto coisas como, na altura, Wim Wenders, que estava na moda, ou Fellini, aquelas coisas que conseguiam atrair um público também de fora da Cinemateca. E eu ali fiquei, entrei, consegui, não sei se para aquela sessão ou se para outra. Sei que o que aconteceu naquela sessão foi exatamente o que acontecia naquela altura – hoje em dia eu não sei – com os filmes de Jean-Marie e Danièle. [Risos] Quer dizer, as pessoas saíam. Ainda mais por esse fato, que na minha cabeça mais jovem organizou-se rapidamente, disse: “Há aqui dois tipos” – Godard também, só que de outra maneira – “que não enganam”. Não enganam mesmo, não há maneira de enganar, e eles não querem, não podem. Não há contrato, não há aqui acordo nenhum. Estes dois não enganam. Desde o primeiro ou segundo filme, é óbvio. E toda aquela gordura do Warhol artista pop e as cores fortes e o desenho puro e fácil e os ícones e a sociedade da cultura popular tratada de uma maneira acessível e simples e moderna e bela... No cinema não acontece nada disso, não é o que ele faz nos filmes. Faz absolutamente o contrário, acho eu. Faz uma sociedade decadente, da qual ele faz parte, baseada na mentira, na traição, no dinheiro, e todas as pessoas que ele mostra são vítimas, não são agentes disso. É estranho, porque ele era um agente disso. Era um agente da corrupção. Mas é estranho como ele consegue, acho eu, fazer filmes generosos, e às vezes muito comoventes, com vítimas da sociedade que ele promoveu. Foi conhecido como um tipo muito simpático; lembro-me de ler algumas coisas dele que são sempre engraçadas e são curiosas e têm muitas verdades. Confesso, não tenho visto filmes do Warhol na sua integralidade, tenho visto fragmentos. Mas acho que esta impressão continua. Essa impressão de sombra. Ele veio a ser o que toda a gente viu, uma espécie de sorvedor: reunia e tentava sorver das pessoas vampirescamente os sentimentos, as emoções, as ideias, e tenho essa sensação através dos filmes que quase se pode morrer nisso, como é tão violento, tão grave, tão trágico. E ele era constantemente assaltado e assassinado, e batiam nele, e aquelas coisas. Mas por exemplo – isso é muito estúpido, se calhar, o que vou dizer, mas não é uma crítica que vou fazer –, naquela altura eu escolhi ir ao Warhol por oposição ao Fassbinder. Como dois cineastas olhando para o real, para a realidade. Fortes, claramente fortes. Mas sempre escolhi o Warhol como maneira de talvez abstrair; de filmar o poder, por exemplo. Preferia dois travestis de uma parte de Chelsea Girls falando dos problemas de pinto, do chulo. Essas conversas, há algumas muito parecidas nos filmes do Fassbinder: a maneira de ver, de sentir, de enquadrar, a cor, tudo. É evidente que provavelmente no Warhol há algo como, por exemplo, há comigo, em que as pessoas estão a falar realmente delas próprias. Já no Fassbinder há uma pequena recomposição, calculo eu. Ou seja, há personagens do Fassbinder, no Warhol não sei se há. Não sei. Uma vez falei com Jean-Marie sobre isso, perguntei o que ele pensava, e foi muito vago, pelo que eu me lembro – a Danièle não estava –, mas disse que lhe interessava muito a duração. Seja uma espécie de passar algum “cabo de não-retorno cinematográfico”, uma espécie de obstinação, só por teimosia, às vezes, mas passado esse cabo já não voltas para trás às vezes, em certos planos, certos filmes. A duração, a obstinação, a observação interessaria ao Jean-Marie. É tipo o Cézanne, ou seja, deixar-se penetrar pelas coisas, calmamente, sem histeria, sem desejo de conquista ou de fascinação, ou poder. Ele só me disse isso. O Warhol tem essa coisa, que é um cineasta muito desconhecido, continuará sendo e é estranhíssimo. E do que sei, dos estudos que há, parece que são pesados. Ou seja, Yale University Press e coisas do tipo, tese universitária massuda e procurando sempre muito sentido, muito sentido, muito sentido...
FOCO: Quando muito, a interlocução era com Jonas Mekas, ou com pessoas da Anthology Film Archives, da Film Culture.
PEDRO COSTA: Exatamente.
FOCO: Pegando esse gancho da opacidade que você falou no Warhol: você consideraria ela como um limite, ou a própria questão com a qual o realismo se depara?
PEDRO COSTA: Eu acho que são as duas coisas. Acho que há um desejo nele, ou a sensação que me dá é que ele é um tipo como alguns outros, e daí o classicismo, digamos. É um tipo que diz, “Isto é assim”, ou seja, isto é assim, e o cinema filma. Só que “isto é assim” é muito obscuro. E o que nós vamos fazer vai ser carregar isto de obscuridade. Isso é muito evidente nos filmes do Ford, os filmes mais realmente esquisitos do Ford em que os tipos, os cowboys, os advogados têm sempre um olhar de lado, uma desconfiança. Que não é dita, não é confessada, mas é muito sentida. Desconfiança perante o mundo, ou seja, a tal sombra. Eu acho que são cineastas, como Warhol, que percebiam ou deveriam ter quase a certeza de que no que se filma há quase que mais trabalho para quem vê do que para quem faz. E isso não pode ser fingido pelas personagens do filme. As personagens do filme olham para as coisas, representam, agem entre si, mas é como se houvesse uma outra camada quando se vê um filme do Warhol. Como em alguns filmes mais melancólicos do John Ford. A paixão de uma vida do Ford é um filme desses, é um filme completamente sobre a morte, é uma coisa super desesperada e cinzenta e duríssima. Ao menos a sensação, sempre que vejo esse filme, é de uma grande solidão, de uma grande estranheza, de uma grande incompreensão. Não são filmes que forçam qualquer tipo de certeza, de bem-estar. Não são filmes fáceis, não são filmes condescendentes, puxam por ti e exigem um trabalho grande depois e uma memória, carregam um pedal qualquer muito duro. Mas eu acho que o que estavas a dizer são as duas coisas. Eu acho que essa gravidade no Warhol deve ser uma superconsciência de si e um olhar agudíssimo, ou de outra maneira ele pode ser só o palhaço que as pessoas diziam que ele era.
FOCO: Sobre a frase do Bresson, de que “falso é o que é encenado, e o que é real é o que emana”. Você vê a encenação como algo problemático no cinema?
PEDRO COSTA: Eu tento repor o cinema, ou o trabalho do cinema, num plano diferente de onde ele está. Ou seja, não estar exatamente na ficção, não estar exatamente no documentário, não trocar o dinheiro e os papéis e as funções que as pessoas têm, não as aprisionar, não trocá-las de sítio em relação ao que normalmente se faz. Deixar que o tempo também entre na feitura do filme, um tempo muito mais dilatado que o das filmagens normais. Essas questões, que não sei se são as do Bresson, são questões de verossimilhança, do que é imediatamente identificável na tela. Será que o tipo é um burguês, por exemplo? Será que é um burguês ou um boêmio sem teto? Há uma confusão no Bresson, e nisso ele é absolutamente consciente, ou seja, ele mistura: é um aristocrata e bandido ao mesmo tempo, é um marginal e está completamente inserido na sociedade mais burguesa parisiense. Isso acaba por acontecer comigo também por causa da maneira como o trabalho é feito. Não partimos com intenções desse gênero, mas com o tempo que levamos a encontrar uma palavra, um gesto, e que essa palavra ou gesto corresponda a uma forma, com isso necessariamente são eliminadas e evacuadas imensas coisas que se calhar o cinema mais comercial não precisa. Eu não sei se falaria de encenação, mas de uma depuração, uma revolução que acontece, que é feita e que embaralha os papéis todos, embaralha mesmo os estatutos sociais. Não é o primeiro impulso fazer um filme sobre aquela sociedade, não é esse o primeiro impulso. É sobre a ordem daquelas coisas.
FOCO: Como se o pressuposto fosse de que o realismo chega a uma construção, a uma composição, no sentido talvez até musical do termo.
PEDRO COSTA: Exatamente. E sente-se muito assim. Posso dar mil exemplos. Um dos que me lembro é de estar a filmar – e pensando aqui, é uma recomposição das coisas a que chegamos por muito trabalho – uma cena no Juventude em marcha em que estão a ouvir discos dos Tubarões. A maneira como chegamos aí ao fazer aquela cena e a maneira como ambos, as pessoas, os atores se movimentam, se entreolham, etc., tudo isso é encenação, é exatamente o que tu estás a dizer. E aí havia mesmo música, portanto. Nesse momento realmente há ali um espaço em que o tempo daquela canção, uns dois minutos ou uns três, comprimiu-se, dilatou-se de uma maneira naquele quadro. E porque era em tempo real também estávamos a ouvir uma coisa que sabíamos que estava a acontecer. Parece-me que o tema da vossa entrevista é o realismo.
FOCO: Nós queremos abordar a intersecção do que veio a se chamar de vanguarda pelos nomes do Anthology Film Archives ou da Film Culture – que é uma coisa bastante extensa, e que vai de Vertov ao próprio Warhol ou Hollis Frampton – e a questão do realismo como sendo também uma construção. A ideia de que um é tão construído como o outro. E nesse sentido, pegando alguns cineastas que podemos encaixar dentro do realismo, como Buñuel, Fleischer, Renoir, o próprio Warhol, pode-se observar diferentes procedimentos para se chegar no realismo. Sendo diferentes as condições das construções, haveria algum elemento que seria comum a todos eles, que denota ou que detona esse realismo? E seria alguma coisa que haveria de comum nas construções deles? Ou seja, o que os separa, o que os afasta?
PEDRO COSTA: O que separa, acho que são milhentas coisas. O que os une, não tenho certeza, mas pelo menos duas. Todas as pessoas que citaram são, diria que muito convictamente por oposição a milhentas outras, são grandes, grandes, grandes artesãos. São os melhores fabros, no sentido de os melhores fabricantes, os melhores alfaiates. Do Buñuel ao Fleischer, Anthony Mann, ou sei lá, qualquer dos que citaste são grandes trabalhadores desta arte de tempo e espaço. Para simplificar, são os melhores. Há outros mais frágeis, em que a coisa se esboroa, enfim. O Straub é talvez um dos que mais se mete com os olhos dentro, um dos que é mais capaz, ou um dos poucos que pode filmar de maneira ainda muito natural, olhar para um mundo ainda com restos de humanidade.
FOCO: Por exemplo, um filme como Sábado violento tem um nível de composição, de abstração, que é uma coisa monstruosa.
PEDRO COSTA: Sim, é preciso ter alguma certeza e alguma segurança no fazer, no cortar e coser, porque senão as coisas se escapam pelas malhas da película. Dito de outra maneira, em que a forma e o conteúdo – não sei como isso pode ser dito de outra maneira – estão completamente ligados. Não podem viver separados e tu não consegues separar. Não tens maneiras: nem com ferramentas, nem puxando... aquela coisa da corda, ninguém conseguirá cortá-los. Depois, acho que o que tem a ver com essas pessoas todas é aquela sensação dos tais limites do realismo. Não é do realismo, é mesmo do próprio cinema. Há um limite da realidade que não é possível no cinema ultrapassar. No caso dos cineastas que trabalhavam nos vários sistemas industriais, Buñuel no México, os americanos, mesmo na Europa alguns também, é isso, os limites. Há uma certa decência nesses cineastas que falamos sempre. Uma coisa que poucas pessoas dizem é que são cineastas muito decentes. Não estou falando no sentido da moralidade que está lá nos filmes, mas que há uma decência na produção e que pouca gente fala disso. Não se passa a mesma coisa hoje, não é mesmo? Uns desregulados mentais, qualquer jovem culto de merda – é mesmo, tem que ser dito – imagina logo 47 filmes sobre a cabrinha, colunas no Egito, dinheiro, dinheiro e dinheiro. Não estou a dizer que eles não paguem, que sejam criminosos nesse sentido, mas o ato é. Quer dizer, o desejo já é duvidoso. E depois, os produtos são... mas enfim, essa é uma outra história. Naquela altura havia a tal concentração, havia aquelas coisas tão importantes que o Cézanne fala sempre, aquele recolhimento, aquela concentração. Não estamos a falar de minimalismo, uma coisa dessas, mas do trabalho, da seriedade, do trabalho de como é feito, na relação com as pessoas e as coisas. Isso desapareceu muito, mas está sempre com esses cineastas, qualquer deles. Isso é realismo também a um limite que tu não ultrapassas, acho eu, não deves ultrapassar.
FOCO: Partindo do fato de que existe esse limite...
PEDRO COSTA: Não sei se é uma questão desses jovens de curtas e longas desbragadas, se não é uma questão também. Todos esses cineastas de que falas – no caso do Fleischer não sei – precisavam de mais que uma forma, apesar de serem os principais fabros outra vez. Hoje isso não acontece. Hoje, ou cada vez mais, se tende para um cinema... não digo que seja formalmente interessante sequer, mas de trinta anos para cá, toda gente aceita, ou ao menos muita gente aceita e a crítica fala disso, escreve sobre esses filmes. Podes fazer um filme eu diria só quase com forma, ou seja, partindo para as coisas com uns arremessos de convicção, valor, enfim. Não há um empinhamento, não há uma convicção que suporta a forma, que venha ao mesmo tempo, que seja uma coisa que exista realmente. Ou é tudo afirmado por dúvida, ou seja, são filmes que põem em causa, questionam, que não sei o que... que especulam, que são misteriosos, ou seja, põem mistério sobre mistério e portanto anulam-se em tudo. Poesia sobre poesia. Poesia com palavras poéticas, aquela coisa...
FOCO: Aquela coisa que Straub falava...
PEDRO COSTA: Pois. Há uma ressalva, que é o Godard, claro; todo o resto é feito com um bocadinho menos de convicção. E deve ter a ver com a produção, a maneira como os filmes são feitos, o dinheiro, os estúdios, os sistemas industriais, comerciais... Deve ter, sim.
FOCO: Houve um momento – e aí talvez seja o momento de Fleischer, Buñuel, Walsh – em que a transparência da mediação narrativa em alguns filmes destes cineastas acompanhava a transparência dos meios de produção, da utilização. E hoje há um divórcio e parece que há a transparência da mediação narrativa, mas já não se tem mais a outra, dos meios de produção. Há em alguns filmes; os seus, por exemplo; os do Godard. Mas na maioria dos filmes há um completo descompasso entre um e outro. E isso parece estar afetando muito a produção. E um cineasta – que eu sei que você gosta – que parece estar tentando escapar disso é o Hong Sang-soo, fazendo filmes de uma maneira parecida com Pagnol.
PEDRO COSTA: Esse é obviamente alguém que põe um pé fora do sítio e desaparece, não é? Acho eu. Quer dizer, é uma ideia óbvia. Uma suspeita que nós precisamos colocar é que no dia em que este sujeito tiver um convite de Hollywood, ou como tu dizes, meios diferentes – não digo dinheiro, mas talvez até ferramentas, atores, paisagens –, ele é capaz de tropeçar. Porque este funciona realmente num modo realista que de certa maneira é sua prisão. Uma boa prisão, por enquanto. Enfim, e ele consegue escrever as suas coisinhas bem. No dia em que for libertado, não sei se vai conseguir, mas é óbvio que ele não só vive no realismo como já burilou ali o seu próprio realismo, que já é aceito pelas pessoas que gostam dos filmes dele, como um mundo em que as pessoas agem daquela maneira. Mas sim, o que tu estás a dizer é aquela dislexia, disfunção, esquizofrenia. E acho que é o pior de tudo para os jovens cineastas, que não conseguem atinar muito bem. Isso é sempre muito óbvio na relação entre o que eu vou contar e como eu vou contar. É tudo muito sutil nestes casos também, mas também deve ser dito que o cinema é uma arte de alguma sutileza, de alguma nuance, delicada de uma certa maneira. E este problema que tu pusestes agora é sobretudo um problema de equilíbrio, não é? Um problema de equilíbrio que é muito complicado. Equilíbrio entre os meios e os fins, das moralidades, de tentar não disparatar, tentar que os filmes sejam um bocadinho, ou mesmo nada, como o mundo desequilibrado em que nós vivemos. Se tu quiseres mostrar um mundo desequilibrado e injusto, tu tens que ser justo e equilibrado, e isto é uma chatice porque... é difícil. Deve ser tão difícil quanto escrever também com o mesmo equilíbrio.
FOCO: Mas essa prisão que você fala do Hong Sang-soo, ela pareceu ter sido uma escolha. Houve uma mudança nos meios de produção dele assim como você fez escolhas.
PEDRO COSTA: Pois, no caso dele eu já não conheço tão bem porque não conheço os filmes do princípio, vejo mais os filmes que ele está a fazer. Eu falei também em prisão porque me parece – e isto é só alguma coisa de provocação – mas parece-me que a Coreia não é aquilo, não é? Coreia no sentido de que é um bocado como tu diz, “ele foi preso, mas quis ser preso”. Esse “querer ser preso” não é só dele. Eu também, por exemplo, sinto que tenho uma espécie de prisão, o Straub outra – ou tinha, agora infelizmente já faz pouco. E outros. Nós também, a certa altura e cada vez mais creio que somos nós a fechar a porta desta prisão e a tapar o ferrolho para não ver certas coisas. No caso do Hong Sang-soo eu acho que é um bocadinho isso: ele tornou-se um observador daquela sentimentalidade para não ver outras coisas. Pode ser dito que através do que ele faz tu vês a Coreia, tu vês a realidade para além daquele casal ou daquele rapaz mais disparatado. Mas não é que a gente analise somente isso, até nos cineastas clássicos – vem sempre o Ford à cabeça, a mim. São os primeiros a quererem fechar-se na prisão, criar os seus limites. “Eu vou criar isto para mim porque se não estou perdido.” Eu acho que o John Ford é completamente isso. Completamente isso. É perigosíssimo. Por vezes a roçar coisas ultrarreacionárias, ultranegras, desesperadas. Mas eu acho que a prisão às vezes é desejável.
FOCO: No sentido de escolhas, de perceber problemas e ter que lidar com eles. Para cobrir coisas que às vezes muitos cineastas deixam passar.
PEDRO COSTA: É uma coisa que me apetece estudar muito, mas eu acho que vocês é quem deviam estudar, um caso de um cineasta que parece-me cada vez maior. Há gente que já o considera maior, mas que é o Joseph H. Lewis. E apetece-me estudar este tipo porque eu acho que esse conseguia fazer passagens quase de um gênero ao outro. Não é que ele fosse assim tão terror/comédia/romance, mas apesar de tudo tocou em muita coisa diferente e com um ponto focal, uma agulha no sítio certo. Os filmes dele eram dos mais curtos, se não me engano, de todos os cineastas. Está sempre nos setenta ou oitenta minutos, é raro passar. É como se ele fosse de todos os cirurgiões o mais preciso. É um ponto nele que é muito interessante e muito desvalorizado, muito apagado, um tipo menos brilhante. Há casos, em Mortalmente perigosa vê-se logo, em Trágico álibi ou qualquer outro. E eu estava a dizer isto porque era obviamente um tarefeiro, coitado, um criado. Para todo o serviço. O Ford ou outros, europeus, nós já percebemos isto, que há momentos de crise, de dúvida, que alguns cineastas tiveram em relação a si próprios e ao que estavam a fazer, da maneira que estavam a fazer, e muitos deles tornaram-se produtores. E foi sempre quando eles se tornam produtores, ou seja, quando Ford abre a sua produtora, quando eles fazem a chamada sociedade de produção para fazer seus filmes e não sei o quê – não é só porque queriam fazer os filmes das vidas deles, O sol brilha na imensidão ou no caso do Renoir O rio sagrado, que é uma produção completamente... não é dele mas é instigada por ele, ele andou anos e anos à procura de um tipo que pagasse aquilo. Não é tanto para fazer aquele filme, é para sair de uma impotência, de uma crise em que estavam metidos. Por vezes resulta no melhor filme deles, produzidos por eles. No caso do Ford, se não o melhor, pelo menos aquele que ele acha o mais equilibrado. E O sol brilha na imensidão é um caso muito claro, talvez o caso que mais se aproxima daquela entrevista que ele dá no fim da vida em que dizia, “E então Sr. Ford, você traz uma epopeia, um épico impressionante”, e ele disse “Não, não, engana-se, porque o que eu sempre quis fazer foi um filme numa cozinha.” E está lá, um filme todo passado numa cozinha. Que nunca pôde fazer, não é, porque não o deixaram. Depois tu começa a pensar, “mas o John Ford poderia ter feito o que quisesse”, aquela coisa. E este é O sol brilha na imensidão, que talvez é o que mais se aproxima desse equilíbrio. “Vamos cá concentrar mais isso, vamos cá ainda concentrar mais”, e esta... provavelmente esta maneira de fazer, vê-se nos olhos, sente-se uma justiça qualquer. Mas o Lewis eu acho que vocês deveriam tratar dele. Quer dizer, há muita gente, mas...
FOCO: Retomando uma coisa que você falou ontem, eu acho que você estava recuperando do texto “Nós não somos mais inocentes” do Rivette: a ideia de que para chegar no que um Stiller, um Griffith, um Murnau faziam nos anos 1920 os cineastas precisariam de seis horas, e vimos isso florescer, essa geração do Straub, do Rivette, do Glauber. Você vê algo diferente hoje acontecendo em relação às premissas que o próprio Rivette já colocou lá atrás? Ou seja: houve já um salto – talvez evolutivo – nessa questão?
PEDRO COSTA: Nesta análise ou nesta verificação tão bonita que ele faz há uma palavra muito importante que é “sério”. Ele diz: “Um cineasta sério hoje em dia precisava de seis horas.” E eu acho que a seriedade é muito importante, ou seja, a palavra que lhe deve ter saído assim, não por acaso. “Sério” é uma recomposição, uma reimaginação de alguma utopia, de alguma organização do trabalho que seja, que possa reavivar, apesar de tudo, forças narrativas, forças de encenação e do trabalho no cinema que correspondam ao que já morreu, ao que havia no passado. Aquela brutal convicção que eles tinham, aquela força, aquela segurança, aquela fórmula, aquele amor pela narração, aquelas coisas dos clássicos têm que ser reinventadas. Eu acho que a ideia do Rivette é essa: observar, ver bem, fazer bem. E temos de reorganizar o trabalho, pensar as formas de produzir de outra maneira. Sinto que o resto que ele diz é óbvio, o trabalho é maior hoje em dia, por causa da dispersão, da confusão. E das armadilhas que cresceram muito no cinema, dos precipícios do cinema, ou que os próprios cineastas colocam, falsas dúvidas, falsos problemas. Falsos problemas começam a ser completamente aceitos como realidade. A inflação, por exemplo, desregrada, da produção de cinema, de cada filme, é alucinante. Nada custa aquilo, o desperdício é cada vez maior. E é uma coisa que não para já, e não pode parar. Pois ela já é até aceita pelos decisores, são mais perdulários. É uma corrupção que já não é corrupção, é um sistema, é assim. Já nem sequer sentam as pessoas com as melhores intenções. Não põem nada em dúvida. Isso até na crítica. [Risos] Eu às vezes leio textos. Fico parvo. Quer dizer, isto de pessoas que deviam saber, não é? Que deviam ter pensado. Não sei, acho que o Rivette queria dizer isso, que além do trabalho muito difícil, mais do que era antes, do cineasta e da pessoa que quer analisar qualquer coisa através do cinema, isto tem que ser acompanhado de uma seriedade ao lado da relação com o trabalho, da relação com os meios, com os equipamentos, com as pessoas, com a organização. Calculo – calculo não, sei – que ele foi uma pessoa que nunca praticou este tipo de coisa, que vivia numa certa modéstia de produção e isto bastava-lhe, acho eu. Nunca inventou um sistema um pouco mais terrorista como Straub, ou Rouch, ou Godard, ou mesmo Chris Marker, enfim, que ficava na cave, não é? Jean Rouch pôs as pessoas todas a trabalhar, o Godard pirateando e repirateando, o Straub pagando igualzinho a todos, do figurante à estrela. Mas apesar de tudo ficou naquela modéstia. Eu por acaso vi-o, falei com ele numa altura. Não quero dizer que o filme seja mau, mas quando ele fez o Joana, a Virgem, eu fui à estreia e ele estava lá. Conhecia-o mal porque ele tinha me escrito uns postais e eu tinha tentado falar com ele, e falei. Tinha-o visto antes uma vez na vida e depois o vi nesta altura, e era aquele momento em que aqueles dois super grandes filmes e não sei o quê, e ele não parecia ele mesmo, parecia outra pessoa. Disto nunca mais me esqueci. Outra pessoa no sentido de estar disperso, completamente out of focus, completamente desconcentrado. E eu acho que isso tinha a ver com os filmes que ele tinha acabado de fazer e com uma ligeira perda do chão onde ele andava a pisar. Acho que ele anda um bocadinho à toa. Eu não gosto muito deste filme. Mas enfim...
FOCO: Então talvez hoje o trabalho a se fazer seja contra a dispersão, contra esse desregulamento entre a ideia e como vão ser utilizados os meios. Mas parece que a própria ideia de construção está vindo abaixo com alguns filmes. Vemos alguns filmes que nos perguntamos se em algum momento isso foi articulado de alguma forma, se foi montado na cabeça de alguém antes de passar por uma câmera. É nesse sentido que falamos de dispersão, que se talvez hoje o equivalente ao que Rivette...
PEDRO COSTA: Não é dar nomes aos bois, mas é o sistema que é corrupto. Num sistema que é tão corrupto, é aquela coisa, um pequeno gesto pateta é quase uma obra-prima às vezes. Isso que falei sobre os textos, sobretudo, deixando de lado os filmes que são patetas, mas é o sistema todo que permite essa estrutura um bocado superficial. Eles são apenas o que o sistema quer ou permite; não sei se permite, mas é conciliador e, no sítio onde chegamos hoje, é só não se fazer grandes metáforas. Eu acho que nunca tinha acontecido, é uma coisa de permissão, no pior sentido da palavra, nunca vista. Ou seja, por um lado não há limites. Não estou aqui a advogar alguma coisa Católica Apostólica Romana de que ninguém deve não sei o que, nada disso, mas não há mesmo limites. Eu quero quarenta camelos e os camelos estarão lá, e o sistema dá os camelos. A tua pergunta é “para quê”, “como” etc.; essas perguntas não se põem nem à pessoa que quer os camelos e nem à pessoa que dá os camelos, acho eu. É vago. Não vêm do mesmo sítio de onde tu vens, e duvido que vão para onde nós queremos ir. Não sei. No cinema isto talvez seja uma discussão que eu acho que parte daqui, mas uma discussão que talvez não seja muito interessante para vocês é: esta permissão, é evidente que é acompanhada de uma outra ideia que é a de que – olha, muito rivetteano – há um conluio, há aqui um conluio para que as coisas sejam como são. E acho que nunca foi assim, eu já li muito e vocês também. Já vimos como era na Itália, na América, na nouvelle vague, no Brasil etc. Isto nunca foi decidido, fabricado, preparado desta maneira que é hoje. Enfim, na Europa, na América do Sul. Estou a excluir a super Hollywood como de costume. Porque os próprios independentes também já participam desse conluio, dessas decisões, parece-me que o cinema que existe é decidido por trinta ou quarenta pessoas. E depois feito por – espero que não, mas – trinta ou quarenta também, dos vistos, estreados, que falamos na internet. Até o Wang Bing consegue se fazer visto na internet, ou o Straub, bastante. Mas o que é promovido como bom cinema, sério e interessante, é decidido por um comitê muito pequeno. Todos conhecem uns aos outros. Então depois é aquela coisa, que não acontece no sistema mais industrial, que é aquela coisa da procura e do desejo. Os gajos querem uma coisa, eles fornecem esta coisa. Considerando que a maneira de difundir os filmes é cada vez mais difícil, esta é outra impostura deste sistema em que a gente pode ver tudo e vai comprar. Para o cinema de hoje não é verdade. Olha o caso do José Oliveira, por exemplo, que não vai ser visto. Não é visto e, portanto, não é considerado. E eu não estou sequer a falar do valor do filme, estás a ver? É muito falso o discurso hoje em dia sobre estas coisas. Falso no sentido de mentiroso mesmo. As coisas que não são vistas são assassinadas, não é aquela coisa de “Ah, é tanta coisa! Como é que podemos passar tanto? Como podemos comprar tanto?” Não, a Arte e a Z.D.F. e a televisão sueca e o Festival de Belfort ou o “Cinéma du Réel” selecionam as coisas mal. E fazem escolhas em conluio. São coisas que ditam muito a sorte das coisas hoje em dia, da maneira como são financiadas e apoiadas, mas é uma outra discussão. Mas olha, naquela mesa-redonda do Straub e do Godard falaram muito disso de certa maneira...
FOCO: Ela está cada vez mais “contemporânea”.
PEDRO COSTA: Está, nesse sentido sim. Aquela coisa que diz o Glauber ou o Straub, que isto é realmente feito por um grupo de jet setters em aviões...
FOCO: Cafetões.
PEDRO COSTA: Eu acho que é preciso combater ou desmistificar dizendo que não é nada uma questão de dificuldade, de pôr os filmes nos sítios e nos festivais, e nos cinemas, e nas plataformas e não sei o quê – não é nada disso. Alguns filmes são realmente recusados, assassinados, mal vistos. E quem o decide são os que financiam e as pessoas que criticam, que escrevem, às vezes. E nós sabemos todos que hoje em dia um screener é visto numa situação estranha, num café; são vistos cinco minutos de cinquenta minutos ou um minuto de cem minutos. Antes eles viam uma fotografia do filme do Griffith, por exemplo, e depois diziam que tinham visto o Griffith. Era assim. Agora...
FOCO: Cobram-se cem euros pela inscrição...
PEDRO COSTA: Pois, olha isso. Fiquei parvo, não tinha consciência disso. Pois há detalhes deste ano incríveis, incríveis. Mudou muito, como diziam lá na mesa-redonda, de fato, está cada vez mais uma chulice antropofágica.
FOCO: Eu não sei se acompanhou o processo que se deu no cinema brasileiro dos últimos dez anos para cá, mas pensou-se que a política que solucionaria o vácuo de produção seria montar estandes nos festivais. Seria inclusive uma empresa que é meio governamental, meio não-governamental, Cinema do Brasil, enfim... Apostou-se as fichas que entrar nesse jogo do lobby solucionaria o problema. Mas é realmente um meio muito inflacionado. Se a gente tem um meio que é problemático, em que a gente é descrente de estar exibindo, qual é esse gesto necessário? Você falou da seriedade, da dignidade, da contenção...
PEDRO COSTA: E isto já não é mal! [Risos] Eu acho que ver os filmes, ver alguns filmes, ser aconselhado, ser um pouquinho guiado, ou seja... ver umas coisas e não ver outras acho que não tem mal. Ver menos, talvez. Menos no sentido... eu falo por mim, eu preciso, ou precisei de ajuda, várias. Eu preciso de ajuda. Quer dizer, o filme que eu fiz com Straub, aquilo é um... todas as formas e artimanhas que o homem mais tem de pedir ajuda, àquela senhora que trabalha muito e que o apoiava, e que diz “Olha, te recompõe, que não é bem assim, apesar de seres um tipo com uma energia incrível, recompõe-te. Encontrai um centro. Fala menos. Vê mais.” Estas coisas todas. Está no filme do Straub. Eu também preciso, todos nós precisamos. E isso é uma consciência, ou um estado que devia ser permanente, que estas pessoas das quais estamos a falar mal não têm, já nem sequer lá nasceram ou cresceram. Outros sim e venderam-se, completamente, e esta palavra tem que ser dita: venderam-se. Vendem-se por uma reputação, por uma fama. Às vezes nem sequer é dinheiro, a gente sabe. Mas vendem-se no lobby, vendem-se no clã, no grupo etc. E a partir daí é uma roda muito grande para a nossa caminhonete, superlobbies nas capitais das decisões mundiais disto. Mesmo os críticos participam disto e decidem isto. Uns começaram bem, digamos, sem problema, e venderam-se. Outros nunca souberam o que era o cinema. Agora, somos nós que vamos dizer isto? Vale a pena? Acho que vale a pena fazer filmes. Vale a pena fazer filmes. Não desistir, continuar a olhar para as coisas, eventualmente encontrar o seu quartinho, o seu centro. Isto parece-me mais importante: tentar a passo de caracol encontrar um centro que seja o teu, que seja uma coisa com a qual te possas relacionar. O que na minha opinião, hoje em dia, não passa por aquela coisa pré-programada roteiristicamente: passa por uma reformulação da produção, dos meios de produção, da maneira com que fazes uma equipe, e depois como diz a Danièle, ver, ver, ver, ver os filmes que é preciso ver, e não os outros, ou como diz o Dziga Vertov, “Não tocar os filmes com os olhos”. [Risos] Está lá escrito nos diários! Não tocar certos filmes com os olhos. E depois, faltam vozes, isto é muito óbvio, faltam os gritos, quase. Estávamos a falar do Glauber e do Straub e de certa maneira o Godard. Isto é óbvio que nos faltam. Não sou eu. Mas bom, isto são momentos e épocas e tempos históricos que não são estes.
FOCO: Falou agora no Vertov, antes falou do Marker; e há essa questão do realismo. Uma curiosidade: o que você consideraria como um cinema não-realista? O Kenneth Anger, o Avatar do James Cameron, Jean Cocteau, Hollis Frampton?
PEDRO COSTA: Eu não conheço suficientemente bem Frampton para falar. Mas boa pergunta, não sei... Pusestes exemplos que de certa maneira são bons exemplos, eu ia mais para os maus exemplos. Estes são bons, são simpáticos, são deste mundo. Eu por exemplo, a caminho para cá vi dois filmes e ainda agora estou surpreendido, e se calhar quando for pegar o avião farei a mesma coisa. Como é que não mudei para outro filme? Vi o filme do Almodóvar, Julieta, e vi o filme do Wim Wenders. E vi-os até o fim, os dois, numa espécie daquela curiosidade: “Onde é que estes tipos andarão, que é isto, que histórias são estas?” E eu não sei se vocês viram estes filmes mas... sabem onde estão estes cineastas. E aquilo não é o realismo, aquilo que não é mesmo. Pá, é vocês quem têm que falar disto, vocês que têm estômago, não sei. Mas sobretudo o Almodóvar – o caso do Wenders é, digamos, mais poético, sempre foi mais ingênuo, mais superficial de certa maneira. Mas o do Almodóvar é incrível, porque é um tipo que, todos sabemos, está lá num plano de comércio e competição completamente americano, como num patamar superior das coisas e ao mesmo tempo contenta – contenta que é a palavra – e faz salivar todas as Cahiers du cinéma do mundo, é o equivalente ao Buñuel e ao Bergman para eles, deve ser uma mistura desses dois para estes Cahiers ou para os críticos. E tu vês o filme dele e tu vês a maneira como... como tu dizes, que construção é esta? E é super simples, claro. Tipo ardiloso, muito talentoso também. Nada que vá mudar o mundo. [Risos] Pelo contrário. Há coisas a dizer e se analisar. E isso não é o realismo, é uma disfunção absoluta. O esforço de entretenimento, ou seja, entreter as pessoas no cinema, fazê-las passar um bom momento e ao mesmo tempo comovê-las e abalar-lhes uma série de sentimentos católicos no caso dele, e impor uma visão limpinha e moderna da Espanha, aquilo é incrível. Tu não vês um centímetro quadrado das ruas de Madri com papel no chão, é inacreditável, tens que ver o filme! E os filmes do Almodóvar nesse sentido vêm muito daquela caminhada, daquele movimento do cinema do George Cukor e das comédias: as pessoas saem de um elevador, atravessam um hall de hotel e vão para a rua, pegam um táxi e isso é visto. É fragmentado em planos. É impressionante. O elevador, o táxi, o chão do táxi, a mão no volante... Ou seja, é uma nova vida, é um novo país, a Espanha é uma coisa fenomenal, não há uma mancha, não é só a sujidade, é a cor, é o brilho, o contraste. Você tem que ver o filme, eu fico parvo porque aquilo são os filmes que as pessoas veem mesmo, não é? Portanto os outros devem ser muito parecidos e eles devem operar da mesma maneira, acho eu. Eu não vejo assim tantos americanos, são sempre mais de terror e tal, mas assim, as comédias românticas... Há um brilho nesses filmes, como num Almodóvar, que a mim assusta imenso. Olha... Jesus Cristo, Jesus Cristo...
Filmes mencionados:
Cavalo Dinheiro (Pedro Costa, 2012-2014)
Empire (Andy Warhol, 1964-1965)
Chelsea Girls (Andy Warhol e Paul Morrissey, 1966)
A paixão de uma vida (The Long Gray Line, John Ford, 1954-1955)
Juventude em marcha (Pedro Costa, 2002-2006)
Sábado violento (Violent Saturday, Richard Fleischer, 1955)
Mortalmente perigosa (Gun Crazy, Joseph H. Lewis, 1949-1950)
Trágico álibi (My Name Is Julia Ross, Joseph H. Lewis, 1945)
O sol brilha na imensidão (The Sun Shines Bright, John Ford, 1953)
O rio sagrado (The River, Jean Renoir, 1949-1951)
Joana, a Virgem I – As batalhas (Jeanne la Pucelle I – Les batailles, Jacques Rivette, 1992-1994) e Joana, a Virgem II – As prisões (Jeanne la Pucelle II – Les prisons, Jacques Rivette, 1993-1994)
Avatar (James Cameron, 2007-2009)
Julieta (Pedro Almodóvar, 2016)
(Entrevista realizada em Curitiba, 13 de fevereiro de 2017) |
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