O PRIMITIVISMO E AS VANGUARDAS: UMA ABORDAGEM DIALÉTICA Em 1899, Étienne-Jules Marey, fisiologista e inventor do que foi potencialmente a primeira câmera cinematográfica, escreveu no prefácio de um livro sobre “fotografias animadas”:
E Marey concluiu este verdadeiro credo do anti-ilusionismo afirmando que as únicas técnicas de síntese de movimento que poderiam interessar à ciência eram aquelas que nos possibilitavam acelerar ou desacelerar a aparência da realidade[1]. 25 anos depois, Dziga Vertov escreveu:
E agora aqui está outro par de citações, abrangendo, desta vez, um período de mais de sessenta anos. Em 1904, o futuro produtor pioneiro Fred J. Balshofer trabalhava para a Shields Lantern Slide Company na cidade de Nova York. Em suas memórias, ele relembra a seguinte anedota:
Em 1966, Jonas Mekas entrevistou Tony Conrad, diretor de The Flicker (1965-1966):
O que esses dois pares de citações têm em comum é a ambivalência. Nenhum dos dois pode expressar uma equivalência verdadeira – seja entre o pensamento de um cientista conservador de classe média cujo materialismo mecanicista remonta diretamente a Descartes e o de um cineasta comunista profundamente comprometido com o materialismo dialético e histórico, ou entre o efeito do flicker devido a um “ponto cego” tecnológico do cinema primitivo (a incapacidade de descobrir que a falha poderia ser eliminada pelo simples expediente do obturador de dupla ação) e que foi produzido deliberadamente por um cineasta sofisticado usando exposições individuais de frames, de um tipo impensável até pelo menos a década de 1920. No entanto, ao mesmo tempo, não tenho dúvidas de que tais encontros – e houveram muitos – são significativos, que podem esclarecer nosso pensamento, não apenas sobre o Cinema Primitivo – o pré-cinema – mas também sobre as várias vanguardas, desde que evitemos conflações simplistas e tenhamos o cuidado de nos agarrarmos às duas pontas da cadeia – como a classe trabalhadora francesa expressa coloquialmente seu domínio da dialética de Marx. Não é exagero dizer que Marey, prestes a inventar o cinema, e apesar de sua tentativa tardia e tépida de emular Edison, na verdade se recusou a dar o passo decisivo. A atitude por trás desse comportamento, expressa na citação acima e compartilhada implicitamente por Muybridge e explicitamente por Albert Londe, derivou de um funcionalismo científico que o impeliu a ver a síntese do movimento como uma redundância grosseira do seu ponto de vista cognitivo. Ainda assim, a ciência de Marey estava longe de ser inocente: ele próprio advogava pela aplicação dos resultados de seus estudos sobre locomoção humana à racionalização de uma carga onerosa de soldados rasos do Monsieur Thiers, e suas análises do movimento de trabalho podem ser vistas como uma fonte de taylorismo (aquela tecnologia pela qual o capital buscou e ainda busca fazer do trabalhador um apêndice de sua máquina). Vertov, é claro, não tinha a pretensão de ser um cientista no sentido usual; no entanto, talvez porque o marxismo também seja um racionalismo, seu projeto tem aquele único ponto de tangência com o de Marey; a preeminência do modelo cognitivo sobre o analógico. O que, no entanto, pode ligar esses dois outros fatos: que, por um lado, nos anos 1960, um punhado de intelectuais de classe média tenha combatido com sucesso a dor de cabeça e o cansaço visual para conseguir, sem dúvida, uma “visão ampliada”, uma atenção aos funcionamentos marginais de seus próprios sistemas ópticos sob estimulação incomum e que, por outro lado, o grande público plebeu dos primeiros dez anos do cinema tenha suportado o lampejo do flicker que seus “superiores” sociais consideraram um desconforto tão intolerável que este contribuiu para sua esmagadora ausência dos filmes nas salas de exibição – aqueles lugares enfumaçados e barulhentos, frequentados exclusivamente naquela época por uma classe de pessoas para quem os filmes eram mais baratos do que uma noite no bar e certamente menos desconfortáveis do que um dia trabalhando no ardor de uma fábrica ou loja? Em qualquer sentido, exceto no puramente contingente, parece não haver nenhuma ligação aqui, e na verdade qualquer tentativa de estabelecer uma associação pode parecer na melhor das hipóteses a-histórica e, na pior das hipóteses, grotesca. No entanto, passei a considerar esse encontro como um emblema das relações contraditórias entre o cinema da Era Primitiva e as vanguardas de períodos posteriores. Pois a eliminação do flicker e da imagem trêmula, bastante completa após 1909 foi, ao que parece, um momento crucial no alcance das pré-condições para o surgimento de um sistema de representação que se conformasse com as normas do romance, da pintura e do teatro burguês, e para o recrutamento de um público que incluísse as várias camadas da burguesia. Quando os sucessivos movimentos modernistas começaram a estender, seja pragmaticamente ou sistematicamente, suas críticas “desconstrutivas” dessas normas representativas ao meio cinematográfico, era inevitável que mais cedo ou mais tarde o flicker reaparecesse, agora valorizado por seu potencial sinestésico e “autorreflexivo”. Embora tais ligações não sejam inteiramente arbitrárias, devemos, parece-me, considerá-las com a maior cautela. Pois, embora tenha sido sem dúvida a experiência das vanguardas – e particularmente aquelas dos anos 60, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos – que nos permitiu hoje simplesmente ler muitos dos fenômenos encontrados nos primeiros filmes, essa experiência também levou, por falta de compreensão do contexto histórico, por falta, também, de qualquer estrutura teórica coerente, a suposições altamente tendenciosas de muitos tipos. Citarei apenas duas, suficientemente remotas para que suas menções não sejam muito embaraçosas para seus autores. No início da década de 1960, um conhecido estudioso do cinema americano teve a ingenuidade de sugerir que a célebre anomalia narrativa encontrada em Vida de um bombeiro americano (Life of an American Fireman, Edwin S. Porter e George S. Fleming, 1903) – a mesma ação mostrada duas vezes, de ângulos diferentes – foi de alguma forma uma prefiguração da textualidade labiríntica de O ano passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, Alain Resnais, 1961). E, mais tarde nos anos 1960, um ilustre arquivista, que deveria saber melhor, autenticou o que parece ser a edição prodigiosamente “moderna” de uma corrida de bicicletas de 1907 incluída na Paper Print Collection da Library of Congress. No entanto, uma leitura de outros filmes depositados pela mesma empresa (a Selig Polyscope Company) mostra claramente que aqueles cortes ousadamente elípticos, dignos de Eisenstein, no mínimo, se devem simplesmente ao fato de que os produtores consideraram necessário para fins de direitos autorais fornecer apenas fragmentos de seus filmes. Essas confusões devem nos tornar muito cautelosos sempre que encontramos um efeito de familiaridade em um contexto histórico que é, na verdade, apenas enganosamente próximo: esses setenta e cinco anos de história do cinema devem ser equiparados, a meu ver, a setecentos anos de história literária ou teatral, e a “lógica” que governou as produções de Pathé e da Biograph antes de 1905 é, em muitos aspectos, mais contemporânea de Le roman de la Rose (Guillaume de Lorris e Jean de Meung, ca. 1230-1275) ou Le jeu de Robin et Marion (Adam de la Halle, ca. 1282-1283) do que aquela de Major Barbara (George Bernard Shaw, 1905) ou L’assommoir (Émile Zola, 1877). A alteridade do Cinema Primitivo – e refiro-me precisamente a uma qualidade que é reconhecida por uma geração de críticos, historiadores e cineastas que se alimentaram do modernismo radical das últimas três décadas – é, na verdade, dupla. Consideremos primeiro o Modo Primitivo de Representação propriamente dito, derivado sem dúvida de uma série de modelos que foram socialmente importantes na virada do século – o cartão-postal de imagens, os teatros de vaudeville e melodrama, o circo, o espetáculo de Velho Oeste, a tira cômica, etc. – mas o que não pode ser dito é que são uma transposição literal ou indiscriminada de qualquer um deles. Quando atingiu a maturidade, no momento em que começou a ceder gradativamente ao Modo Institucional de Representação que iria substituí-lo, o Modo Primitivo havia se tornado inegavelmente estabilizado, tendo adquirido um grau de especificidade avançado como aquele que o próprio Modo Institucional um dia alcançaria. O Modo Primitivo foi iniciado tanto por W. K. L. Dickson quanto por Louis Lumière, e foi mantido vivo em sua forma mais pura até 1912 por Georges Méliès. Ele continuou a assombrar o cinema da França até o final da era silenciosa e deixou traços visíveis em muitos filmes americanos até pelo menos 1920. Em sua forma mais característica, o Modo Primitivo tem, acredito, quatro traços primários. O primeiro é bem conhecido: a autarquia e unicidade de cada quadro. Qualquer quadro permanecerá inalterado em seu enquadramento ao longo de sua passagem na tela, e de uma cena a outra (no caso de um cenário ou locação recorrente); é completo em si mesmo e nunca “se comunica” com qualquer outro. Em outras palavras, presume-se que os espaços sucessivos representados ocupem uma estrutura diegética comum, mas isso é tudo: suas conexões espaço-temporais permanecem fundamentalmente não especificadas. O segundo traço primário que distingo pode ser chamado de “qualidade descentralizada” da imagem, e deve ser considerado sob duas linhas distintas: primeiro, o quadro inteiro é uma área a ser aproveitada. As áreas perto das bordas do fotograma serão tão passíveis de serem centros vitais de ação quanto aquelas mais centralizadas. Em segundo lugar, geralmente é difícil para o olho – pelo menos para o nosso olho – localizar o centro narrativo significativo da ação diegética – e há ocasiões em que nenhum centro existe, quando a imagem inteira está sendo oferecida simultaneamente ao nosso olhar. Os filmes mais famosos de Louis Lumière vêm à mente aqui, é claro (A saída dos operários da usina Lumière [La sortie de l’usine Lumière à Lyon, [1895], A chegada de um trem à estação [L’arrivée d’un train à La Ciotat, 1896]), mas também incontáveis quadros de filmes narrativos. Em seguida, há a questão crucial de distância de câmera. Na grande maioria dos filmes feitos antes de 1906 (embora não todos – e retornarei a esse ponto), o tamanho dos quadros aproximava-se do que hoje chamaríamos de “plano médio-longo”. Isto quer dizer que uma personagem de pé raramente ocupava mais de dois terços da altura da tela e, frequentemente, muito menos. As consequências disso foram várias, mas podem, creio eu, ser resumidas como a produção de um efeito totalizante de exterioridade: o terceiro traço primário do Modo Primitivo. A falta de qualquer detalhes faciais significativos em tais tomadas inevitavelmente tornava a presença das personagens apenas comportamental: vê-se o que eles fizeram, mas não há nenhuma ideia da interioridade psicológica característica, por exemplo, no romance clássico, exceto quando tal interioridade é grosseiramente exteriorizada por uma pantomima marcadamente caligráfica, que priva qualquer “naturalidade”. O Cinema Primitivo em sua forma mais característica é a-psicológico. As personagens carecem daquela “presença” interna que era garantida no palco burguês pela voz (com a ajuda, nos assentos de camarote, de um par de binóculos de ópera), e no romance burguês por estratégias como a onisciência de um narrador demiúrgico. Além disso, sua presença externa é comparativamente fraca também: os espectadores permaneceram muito mais separados daquelas pequenas silhuetas do que das personagens em qualquer palco, cuja presença física real pode ser verificada por inúmeros detalhes abordando quase todos os sentidos (além da percepção visual de cor e profundidade, podemos citar os sons de passos nas tábuas ou de vestidos esvoaçantes, o odor de tinta, tabaco ou perfume). Máximo Gorki, em um artigo escrito ao ver pela primeira vez o Cinematógrafo de Lumière na feira de Nizhni Novgorod, em 1896, expressou com eloquência a alienação que o espectador, acostumado ao teatro e romance burgueses, quase certamente deve ter experimentado em algum grau quando confrontado com essas imagens:
Significativamente, o filme da primeira programação dos Lumière que pareceu mais “vivo” para o grande escritor naturalista foi O almoço do bebê (Repas de bébé, 1895). E por mais que, não surpreendentemente, ele direcione suas observações apenas à iconografia do filme – o casal “é tão charmoso, alegre e feliz e o bebê é tão divertido” – não podemos deixar de notar que este filme foi o único com plano fechado da programação. E, a este respeito, gostaria de salientar que O almoço do bebê não permanece numa instância isolada no Cinema Primitivo. Ao contrário da crença popular, esta tomada – e outras semelhantes, produzidas por Dickson – inaugurou um importante gênero menor que duraria quase dez anos, que consistia de planos médios – ou close-up – do meio de apresentação de um ou dois atores (geralmente bem conhecidos) olhando para a câmera, ou mesmo cantando ou recitando monólogos cômicos em um sincronismo muito aproximado com um minúsculo fonógrafo de cilindro – nas Phonoscènes da Gaumont, por exemplo. Essas cenas que, sem dúvida, introduziram a presença da persona no Cinema Primitivo e, posteriormente, através da prática relacionada do close-up emblemático, em filmes individuais podem ser vistos como influências ao uso de close-ups nos filmes do Modo Institucional de Representação que apareceu por volta de 1910.
O quarto traço primário do Modo Primitivo pode ser designado pelo termo razoavelmente bárbaro “non-closure”. Considere um dos últimos e mais completos exemplos que eu conheço no cinema americano de um filme puramente Primitivo: A Kentucky Feud, de 1905, da Biograph, cuja direção é creditada a Billy Bitzer, prestes a se tornar o precioso colaborador de Griffith. Este filme refere-se a uma rivalidade real ocorrida em Kentucky e que chegou até nós por meio de uma famosa canção. No entanto, o modo de ficcionalização do filme tem pouco a ver com, digamos, Todos os homens do presidente (All the President’s Men, Alan J. Pakula, 1976). Ao invés disso, assumiu-se que o público estava familiarizado com o grosso dos eventos descritos, e os quadros sucessivos parecem concebidos mais como hors-textes ou gravuras de jornais. São ilustrações para uma narrativa que está em outro lugar: isto é, não são cenas independentes no sentido usual. Além disso, a função dos intertítulos merece cuidadosa consideração aqui, exemplificando a fundamental não-linearidade de muitos procedimentos narrativos primitivos. De fato, em A Kentucky Feud, como em tantos filmes do período (e os filmes que Griffith dirigiu seis ou sete anos depois para a mesma Biograph Company ainda mantêm essa característica), os títulos precedem, por assim dizer, a dimensão estritamente narrativa das imagens, destruindo qualquer sentido do suspense, travando momentaneamente qualquer formação da cadeia narrativa bi-univocamente concatenada que, em última análise, caracterizaria o Modo Institucional.
É claro que, em certo sentido, essa descrição do processo narrativo em funcionamento aqui está incompleta, assim como minha descrição – e também na experiência – do quadro primitivo topologicamente acêntrico. Pois nunca devemos esquecer que no que pode ter sido a essa época a maioria, ou pelo menos um grande número, de casos, a apresentação de um filme era acompanhada por algum tipo de comentário oral na sala de exibição, proferido pelo “palestrante”. E por mais que essas “palestras” variassem em qualidade e eficácia, parece bastante certo que seu objetivo principal era linearizar os significados visuais – para dizer ao público para onde olhar e quando – e operar algum tipo de encerramento – neste caso, para dar ao público material de fundo que eles podiam não conhecer. No entanto, embora o palestrante representasse uma tentativa combinada de superar certas inadequações do Modo Primitivo e ajudar novos clientes da classe média a decifrar um meio ao qual não estavam acostumados, esse palestrante também fazia parte de uma exposição geral que continuava a enfatizar a prioridade do espaço-tempo real sobre o espaço-tempo ilusório do filme. Sabemos que, além dos comentários e piadas do apresentador etc., havia sempre o acompanhamento do piano, mais ou menos irrelevante, e as idas e vindas constantes entre os patronos, e em Nova York, pelo menos, parece que as portas do Nickelodeon geralmente ficavam abertas durante a apresentação. Claramente isso estava longe da atenção extasiada dedicada aos filmes mudos nas sociedades cinematográficas e cinematecas de hoje, mas estava estranhamente perto da atmosfera que reina em um poeira da rua 42 durante um filme de kung fu.
Antes de continuar a descrever um aspecto muito diferente da “alteridade” do Cinema Primitivo, gostaria de abrir um breve parêntese sobre a terminologia. Parece-me que os filmes da Era Primitiva sugerem por que a categoria “filme narrativo” é impotente para definir de forma essencial os filmes produzidos na Instituição. A Kentucky Feud dificilmente pode ser descrito como “não-narrativo”, mas tenho certeza de que a maioria dos espectadores modernos concordaria que a experiência de assisti-lo está muito distante da experiência de assistir a um Filme Institucional como o de assistir, digamos, Reverberation (Ernie Gehr, 1969). Não que eu considere, apresso-me a acrescentar, essas experiências igualmente remotas como equivalentes; no entanto, eles nos ajudam a definir os limites de uma experiência institucional centrada, linear, fechada, que não é de forma alguma coextensiva com o “espaço” da narrativa (muitos documentários clássicos são menos “narrativos” do que A Kentucky Feud, mas são parte integrante da Instituição). O próprio significado do termo “narrativa” parece realmente nublado nas mentes daqueles que adotam uma postura crítica em relação à narrativa. Um conhecido artista cinematográfico americano recentemente apresentou uma de suas obras a um público londrino com a advertência de que continha “elementos narrativos”. Acabou sendo uma tira de filme (aparentemente passando pela lente da câmera) na qual havia fotogramas escuros e borrados mostrando o que poderia ser o rosto de uma mulher. “Figurativo” passou a ser igual a “narrativa”. O uso do termo “Modo Institucional de Representação” para designar a estrutura básica dentro da qual o cinema convencional evoluiu durante os últimos cinquenta anos tem a vantagem, mesmo que não tenha outro mérito, de evitar tais confusões tendenciosas[6].
As pressões – econômicas, ideológicas e culturais – que acabariam por criar, primeiro nos Estados Unidos, depois em todo o mundo ocidental, as condições para o triunfo do Modo Institucional se impuseram sobre o cinema assim que nasceu. O Modo Primitivo, como consequência, nunca existiu no vácuo. Foi desafiado desde o início por aquela aspiração à representação analógica que está tão arraigada na cultura ocidental, que ao longo do século XIX esteve tão intimamente associada ao desenvolvimento da fotografia, e que ainda se manifestou em fenômenos periféricos, mas significativos como o Diorama, o estereoscópio e as lanternas fotográficas do movimento britânico de temperança, conhecidas como “Modelos de Vida”. A Era Primitiva foi essencialmente contraditória; foi palco de um confronto constante. Por um lado, temos a aspiração analógica, exemplificada nas declarações sensacionalistas de Edison sobre as óperas enlatadas do futuro e nos dísticos sobre a “vitória do homem sobre a morte” entoados por jornais franceses após a estreia dos filmes de Lumière no Grand Café. Por outro lado, estão as atitudes em relação à representação que derivaram tanto de certas formas populares de arte quanto da ideologia cientificista sustentada por vários pioneiros. O anti-iluminismo exacerbado de Marey é uma instância dessa atitude e o compromisso pessoal de Louis Lumière com o “documento bruto” – sua indiferença à mise en scène – é outra.
Na verdade, a evidência mais espetacular e “óbvia” do impulso para o analógico perfeito encontra-se na presença constante no mercado de cinema entre 1894 e a Primeira Guerra Mundial de sistemas destinados a dotar essas imagens silenciosas com o Logos – com uma alma, como alguns colocaram – em outras palavras, com som sincronizado com os lábios. No período entre o Kinetofonógrafo de 1894 da Edison Company (cujos fones de ouvido e óculos prefiguram, além do barulho das arcades e nickelodeons, o isolamento sensorial do palácio de pinturas dos anos 1930) e a máquina amplamente aprimorada que ostenta o mesmo nome que foi colocado no mercado em 1911 (mas que falhou, como todos os seus rivais, por falta de amplificação adequada) um número impressionante de sistemas de som sincronizado apareceu e desapareceu. O Cronógrafo da Gaumont teve um sucesso comercial considerável e as várias centenas de Phonoscènes dirigidas por Alice Guy figuraram nos programas dos cinemas na França e em outros lugares por mais de meia década, em alternância com os filmes mudos. É significativo, claro, que todos esses esforços (assim como aqueles que envolviam a “dublagem” de filmes durante a projeção de atores escondidos atrás da tela) tivessem cessado completamente às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando o Modo Institucional, com seus closes interpolados e títulos falados, estava começando a se afirmar nos filmes de Reginald Barker, dos irmãos Ince, DeMille e outros.
Muito mais exóticos, porém, são os traços deixados pelas tentativas de transformar os filmes visualmente, de modo a superar a exterioridade – a falta de presença – de que o Cinema Primitivo, julgado pelos critérios do naturalismo do final do século XIX, sofreu tanto. Um dos mais espetaculares deles foi o Cinéorama, apresentado pelo engenheiro francês Grimoin-Sanson na Exposição de Paris de 1900. Esta foi uma tentativa tecnicamente bem-sucedida de criar uma única imagem circular contínua, filmada por doze câmeras sincronizadas e projetadas no interior de uma tela em forma de cúpula por doze projetores colocados sob uma plataforma que sustentava o público. Esta tentativa engenhosa de cercar o público, de envolvê-los em uma imagem que de outra forma ainda se apegava à exterioridade distante do modelo Lumière, pode, é claro, apenas ter intensificado a dispersão topológica do plano Primitivo (para onde você deveria olhar agora?), de modo que esta experiência objetivamente retardou o movimento histórico em direção à identificação do espectador com uma câmera onipresente, o cerne do modo Institucional.
O equivalente americano do Cinéorama foram os Hale’s Tours. Aqui, não estamos mais lidando com uma parapraxia excêntrica – um termo que pode descrever apropriadamente muitos dos experimentos contraditórios da época – mas com um empreendimento comercial astuto, por mais extravagante que possa parecer hoje. Os Hale’s Tours eram cinemas permanentes que floresceram nos Estados Unidos entre 1904 e 1912 e que eram mais ou menos elaboradamente equipados para se assemelharem a locomotivas. Sentados nas poltronas como se fossem passageiros de um trem em movimento, os clientes assistiam a filmes que haviam sido filmados a partir de vagões ou bondes em movimento. Esta estratégia de penetração sem dúvida conferiu ao modelo de Lumière um efeito de presença que até então faltava, mas tais exibições eram necessariamente limitadas a documentos de um tipo muito particular, e o único impacto imediato dos Hale’s Tours foi o de estabelecer a necessidade de centros de exibição fixos para filmes. No entanto, para mim, os Hale’s Tours são antes de tudo emblemáticos de uma tendência que marcou a primeira década do cinema e que consistia em intervenções de fora do filme – intervenções no domínio do espaço do espectador – destinadas a atingir um objetivo que a história mostrou que poderia, ao contrário, só ser alcançada bloqueando o espaço do espectador.
O diretor cujo trabalho talvez melhor personifique a contraditória “alteridade” da Era Primitiva é Edwin S. Porter. O caráter anômalo de muitos dos principais experimentos (e aqui uso a palavra “experimentos” deliberadamente) que ele produziu para a Edison Company entre 1900 e 1906 foi sempre devido ao conflito entre o Modo Primitivo, conforme eu o descrevi e ilustrei e o esforço para superar suas “lacunas”, para conseguir a presença interiorizada da futura Instituição.
Citarei apenas dois exemplos dessas experiências, escolhidas por sua relevância direta para o nosso assunto. O célebre O grande roubo do trem (The Great Train Robbery, Edwin S. Porter, 1903) foi creditado por Sidney Peterson[7], entre outros porta-vozes da vanguarda americana, como a incorporação do Pecado Original cinematográfico, a encarnação do momento preciso em que o paraíso primitivo foi perdido, quando aquele objeto maligno do “filme narrativo” mostrou a sua cara feia. Paradoxalmente, essa visão também foi compartilhada por historiadores estritamente chauvinistas do cinema convencional, como Lewis Jacobs, para quem Porter foi de fato o inventor de todos os elementos básicos da “gramática do cinema”. No entanto, quando a fumaça de tal súplica especial se dissipa, o filme pode ser visto pelo que é: um momento significativo no processo contínuo e historicamente inevitável de expansão do espaço-tempo diegético para além dos confins do quadro primitivo. Certamente não foi o primeiro filme a tentar o que a semiologia apelidou de “sintagma alternado”, e sua famosa sequência de perseguição foi apenas uma entre as primeiras desse tipo – ambas surgiram antes, no trabalho dos pioneiros britânicos. No entanto, foi certamente uma das primeiras tentativas nos EUA de uma forma desenvolvida usando essas figuras linearizadas, arautas-chave do futuro Modo Institucional.
Ao mesmo tempo, no entanto, este filme permanece totalmente dentro do Modo Primitivo em pelo menos um aspecto essencial: para cada quadro, a câmera ainda é colocada a uma distância considerável da ação, e a lente usada é tal que as personagens geralmente não têm mais do que um quarto da altura da tela, com seus rostos apenas levemente visíveis e, portanto, ilegíveis. Apesar, então, da extensão e linearização do espaço-tempo diegético, a exterioridade perceptiva é mantida por toda parte e a presença da personagem ainda é mínima. No entanto, este filme – e a este respeito pode ter sido um “primeiro” – também demonstra uma consciência peculiarmente aguda dessa falta, uma consciência expressa no famoso plano médio de Barnes, o chefe fora-da-lei atirando para a câmera. Esta tomada, como é bem-sabido, não foi incorporada ao filme em si, mas foi entregue aos expositores como um rolo separado que eles poderiam unir no início ou no final do filme, conforme eles quisessem.
Agora, com esta declaração factual simples, nossas mentes começam a formar conexões. Pensamos em experimentos raros e relativamente recentes no cinema móvel, como Chelsea Girls (Andy Warhol e Paul Morrissey, 1966), pensamos em música aleatória etc. Mas antes de nos entregarmos a essa extrapolação, é importante entender exatamente o tipo de objeto com o qual estamos lidando aqui. Em uma época em que a identificação do espectador com a câmera e, portanto, a possibilidade de ubiquidade da câmera dentro do espaço pró-fílmico do quadro principal, ainda estava no futuro distante (apesar de experimentos isolados na Inglaterra e até mesmo nos EUA, incluindo um do próprio Porter, por incrível que pareça), este é um tipo particular de anáfora do close-up interpolado. Traz para o filme como um todo a dimensão da presença individual, mas ainda não pode “penetrar” na diegese propriamente dita e deve se contentar em vagar pela periferia, ser colocado indiscriminadamente no início ou no final do filme, no critério dos expositores, ou seja, de forma aleatória. Excluído do filme pelo tabu que ainda envolve a unicidade de ponto de vista, o close-up “emblemático” não apenas introduz a dimensão da presença dessa maneira geral, mas também fornece um exemplo de uma tentativa inicial de encapsular a “essência” do filme – para fornecer um “tesouro” que cada espectador poderia levar para casa. Aqui está mais uma anáfora de uma estratégia institucional por excelência, essencial para a constituição do filme como produto de consumo. Com esta dupla capacidade, o emblemático close-up tornou-se bastante difundido nos cinco ou seis anos seguintes, principalmente nos EUA, mas também na Europa.
A mobilidade do close-up anexado a O grande roubo do trem, portanto, não é vista simplesmente como um exemplo de “liberdade” primitiva (embora seja verdade que “responsabilidades editoriais” semelhantes às vezes eram deixadas para os exibidores). Foi também o sintoma contraditório de um ponto cego histórico e de uma corrente ideológica implacável. E enquanto este exemplo de “abertura” do filme Primitivo encontra claramente um eco objetivo no ocasional filme-móvel de nosso tempo, questiona-se se a reflexão sobre a relação orgânica deste “close-up errante” com a história da Instituição não poderia dar origem a uma exploração mais consequente de formas fílmicas aleatórias.
A anomalia mais celebrada na obra de Porter ocorre em seu filme Vida de um bombeiro americano. Na forma em que o filme foi programado na Biblioteca do Congresso em 1903, o resgate da mulher e da criança por um bombeiro é mostrado duas vezes, de dois “pontos de vista” diferentes – um (diegeticamente) dentro da sala onde as vítimas estão presas e uma do lado de fora. Vemos a mesma ação duas vezes, em sucessão.
Não conheço nenhum exemplo no Cinema Primitivo em que uma “repetição do tempo” tão radical quanto essa tenha acontecido novamente. No entanto, outras repetições mais curtas ocorrem em alguns filmes americanos e nos de Méliès, por exemplo. Além disso, um filme como The Story the Biograph Told (1904) dramatiza admiravelmente o tabu em torno da ubiquidade da câmera com um elaborado aparato narrativo cujo único propósito é realizar uma mudança de plano de 90º – uma figura que até onde posso julgar, não se tornou popular até o final da Primeira Guerra Mundial. E a existência desse tabu é o que me autoriza, acho, a falar do “preço” que Porter pagou por contestá-lo em seu Bombeiro como uma espécie de parapraxia ou ato falho no sentido freudiano, no qual um “inconsciente coletivo” substitui o indivíduo.
Vida de um bombeiro americano também nos dá uma pista adicional da natureza subjacente dos muitos encontros entre as estratégias empregadas por este ou aquele movimento modernista e algumas dessas parapraxias Primitivas. Consideremos a sobreposição de raccords em certos filmes de Eisenstein. O exemplo mais famoso aqui seria, sem dúvida, o levantamento das pontes em Outubro (Oktyabr, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927). É claro que isso não tem nada em comum, contextual ou conceitualmente, com a repetição do tempo em Vida de um bombeiro americano (ou aqueles em filmes tão pouco conhecidos como Next! [1903] e La course des sergents de ville [Ferdinand Zecca, 1907], em que as repetições são muito menores). No entanto, a estratégia eisensteiniana é, em certo nível, o negativo da parapraxia Primitiva. Este último é uma contradição característica de uma era que podemos considerar como “pré-perfeita”, enquanto a dialética de Eisenstein entre a expressão visual de uma “impossibilidade” temporal e a noção de senso comum do fluxo linear do tempo é, entre outras coisas, uma crítica, pelo menos implícita, dessa mesma perfeição. Além disso, se minha leitura da anomalia narrativa em Vida de um bombeiro americano for uma hipótese historicamente relevante (nunca pode ser mais do que isso, já que mesmo que a lógica dos produtores ou do diretor fosse consciente, ela está sem dúvida enterrada com eles para sempre), então há também um encontro implícito nos dois procedimentos ao nível do “posicionamento do público”. A resolução do conflito eisensteiniano – a aceitação das repetições do tempo pelos espectadores de Outubro é um ato especificamente cultural hoje (uma vez que também pode ter sido um ato político), e é difícil acreditar que os espectadores primitivos, na medida em que estavam seguindo Bombeiro, também não precisassem fazer algum tipo de ajuste mental consciente para ver o mesmo fragmento narrativo duas vezes. Aqui, porém, estou pisando em terreno perigoso, que pode levar tão facilmente a mitos como o do Paraíso Perdido do Cinema Primitivo. Devo enfatizar imediatamente que um paralelo como esse é de interesse apenas teórico. Diz pouco sobre a história do cinema como foi vivida por aqueles que o fizeram (atrás das câmeras ou sentados em corredores diante das telas). Na verdade, é apenas do ponto de vista de uma teoria funcional do Modo Institucional e de sua genealogia que qualquer correlação significativa pode ser estabelecida entre processos que, para todos os efeitos, podem ter ocorrido em planetas diferentes. E devo acrescentar que, pelo que sei, nenhuma dessas anomalias parapráticas foi jamais emulada conscientemente. No entanto, na história do que foi chamado de “vanguarda” ou, talvez, produção de filmes “radicais”, houve uma série de “reavivamentos” mais ou menos combinados deste ou daquele aspecto do Modo Primitivo, propriamente.
Sem dúvida, o primeiro desses esforços foi O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, Robert Wiene, 1920). Embora não tenha sido moda nos círculos de vanguarda nos EUA, continuo a considerar Caligari como um filme de grande importância, e, em particular, como o primeiro filme significativamente modernista.
Não me parece nada acidental que o epíteto que certos críticos modernistas usaram para descartar Caligari do panteão da vanguarda seja “teatral”. Afinal, este é o mesmo epíteto com que a história do cinema clássico rejeitou o Cinema Primitivo: o cinema “começa” com Smith, Porter e Griffith – com as premissas do Modo Institucional – enquanto o Cinema Primitivo é apenas uma “imitação” do teatro; a história do cinema inicial equivale à história da “sacudida” da influência teatral, etc. O que tais pronunciamentos sempre falharam em refletir é o fato de que o teatro que, de fato, teve um impacto profundo no cinema mais antigo não era o palco legítimo das classes médias, mas o melodrama, o vaudeville, o Grand Guignol e outras formas plebeias; e que quando o cinema finalmente “se tornou uma língua e uma arte”, como diz o ditado, foi através da constituição de um modo de representação que reproduziu, ainda que com meios originais específicos, o projeto subjacente do estágio burguês (“legítimo”).
Tampouco foi por acaso que se tratou de um filme originado diretamente do movimento expressionista, o primeiro a efetuar um “retorno” deliberado e abrangente a alguns dos principais gestos do Modo Primitivo. Afinal, o expressionismo, em sua crítica de todas as manifestações do naturalismo, esteve por quase duas décadas atento à arte “primitiva” de todos os tipos: as esculturas da África, as xilogravuras folclóricas da Alemanha, assim como as criações artísticas de pacientes mentais e crianças. Não tenho nenhuma evidência de que o esforço coletivo que produziu Caligari foi realmente informado por qualquer consciência (ou lembrança) das formas da Era Primitiva. No entanto, aqui sinto que todos podemos concordar que o encontro é marcante em seu alcance. Deixe-me simplesmente apontar suas principais características.
Caligari foi produzido em 1919, em uma época em que a montagem institucional havia se tornado uma aspiração universal, embora o seu domínio variasse de país para país. No entanto, aqui estamos lidando com um filme que consiste quase que exclusivamente de uma série de quadros autônomos e filmados frontalmente, dos quais a edição intra-sequencial é quase excluída. A autonomia dos quadros sucessivos é acentuada por articulações fortemente disjuntivas, seja por meio de contrastes gráficos agudos ou por íris elaboradamente hesitantes. Além disso, nos casos ocasionais em que há uma mudança de imagem dentro de um quadro, a disjuntividade é enfatizada de forma semelhante – por contraste gráfico, notadamente por meio do uso de vinhetas – a um ponto onde geralmente sentimos que esses “cortes de correspondência” são tão irregulares quanto aqueles, digamos, dos filmes que Siegmund Lubin estava fazendo por volta de 1906.
No entanto, parece-me que Caligari se engaja mais resolutamente com o processo histórico de constituição do Modo Institucional na questão da homogeneização do espaço pictórico. Até por volta de 1912, e mesmo depois na França, o cinema se caracterizou por uma nítida divisão entre dois tipos de espaço pictórico. Um tipo, exemplificado por tantos filmes de Lumière, derivou mais imediatamente, creio eu, do cartão-postal cênico, tão em voga no final do século XIX. É um modelo associado ao cinema há mais de uma década com tomadas quase que exclusivamente ao ar livre, e envolve uma ênfase muito forte na perspectiva linear e na representação do espaço tátil de acordo com o modelo fornecido pela pintura da Renascença. No entanto, e ao contrário de um mito bastante persistente (embora de origem relativamente recente), coexistiu com este modelo, e muitas vezes no mesmo filme, logo que estes passaram a conter cenas interiores e exteriores, uma abordagem pictórica que, pelo contrário, enfatiza o plano da imagem. Isso é feito por meio de uma série de estratégias, algumas das quais parecem contingentes (por exemplo, pequenos estúdios, orçamentos baixos), enquanto outras parecem bastante deliberadas. O papel da contingência – enorme nesta época e nunca sem importância histórica, eu penso – é ilustrado por uma anedota registrada por Georges Sadoul. Uma das muitas tarefas de Ferdinand Zecca quando se tornou o diretor principal da Pathé, era pintar cenários. Ele não era bom nisso. Um dia, tendo começado a pintar um cenário que pretendia representar uma rua de paralelepípedos em perspectiva, ele acabou com o que parecia nada mais que uma pilha de pedras. Sempre capaz de lidar com uma emergência, Zecca pendurou uma placa sobre a tela plana: “Homens trabalhando: desvio”[8].
Um filme britânico de um cineasta populista, ele mesmo de origem plebeia, o notável William Haggar, demonstra vividamente o contraste entre os dois modos de representação pictórica que caracterizaram a época. The Life of Charles Peace (1905) retrata com traços simples e ousados a carreira de um famoso ladrão e assassino de meados do século XIX. Durante as primeiras sequências, filmadas principalmente em um estúdio, cada quadro autônomo é filmado contra um pano de fundo que é flagrante e esquematicamente plano, com, por exemplo, vigas de parede apenas delineadas com tinta branca em uma tela plana. Na última parte do filme, uma perseguição, aquele modo tipicamente primitivo de concatenação narrativa, é mostrada em uma série de planos que, ao contrário, fazem uso sistemático e igualmente típico do espaço profundo (de fato, um deles reproduz o enquadramento, à época arquetípico, de A chegada de um trem à estação).
Não foi, creio eu, amplamente reconhecido que nesta questão da representação pictórica do espaço na tela, aqueles cuja missão histórica era a constituição do Modo Institucional, tinham uma dupla tarefa a cumprir. Primeiro, eles tiveram que trazer profundidade e volume para as cenas internas do Cinema Primitivo (e para superar a tendência, muito evidente com Griffith em particular, de nivelar até as imagens externas por meio de uma atitude de câmera rigidamente nivelada e quadros descentralizados em direção a sua borda inferior). Esta transformação foi alcançada através de inovações na atitude de câmera e cenografia, bem como pelo desenvolvimento da iluminação elétrica, que possibilitou a introdução dos códigos da pintura clássica na cinematografia. Em segundo lugar, através de uma variedade de meios, que também incluíam o posicionamento da câmera junto com a escolha e manuseio das lentes e, claro, o desenvolvimento da edição, eles tiveram que reduzir aquela profundidade de campo que, no modelo Lumière produziu uma imagem dispersa e descentralizada. Essa homogeneização do espaço da tela pictórica, conferindo a close-ups e planos gerais uma aparência semelhante de profundidade háptica controlada, não foi totalmente alcançada nos Estados Unidos até o final da Primeira Guerra Mundial, e na França até alguns anos depois.
Aqui, a relação de Caligari com o cinema dos anos anteriores não é simplesmente ao nível da mimese, consciente ou inconsciente. Aqui, o filme realmente coloca os elementos de um processo histórico para funcionar dentro de seu próprio sistema singular. Estamos lidando com um exemplo precoce de “criação epistemológica” no meio do cinema.
As imagens em Caligari jogam continuamente com uma ambiguidade cuidadosamente planejada. O famoso estilo gráfico do filme apresenta cada plano como uma representação estilizada e plana do espaço profundo, com oblíquos dramáticos tão declaradamente plásticos, tão artificialmente “criadores de profundidade”, que imediatamente evocam a superfície tátil da página do roteiro, mais ou menos à maneira de Méliès. No entanto, ao mesmo tempo, o movimento dos atores dentro desses quadros é sistematicamente perpendicular ao plano do quadro, de uma forma que lembra o bloqueio de campo profundo primitivo. Assim, as mesmas imagens parecem produzir simultaneamente dois tipos históricos de espaço pictórico, sobrepostos um ao outro.
Essa questão do espaço háptico, é claro, esteve no centro de muitos filmes importantes dos últimos anos – os de Godard e Snow, bem como a Gertrud (1964) de Dreyer, vêm imediatamente à mente. Mas o que me parece tão impressionante sobre Caligari é que, através dessas múltiplas referências ao problema conforme evoluiu historicamente, ele oferece um comentário quase único sobre a constituição do Modo Institucional como um sistema visual.
Fica claro, a partir de muitos trabalhos críticos modernos, que nenhum modelo puramente visual pode explicar de maneira satisfatória o Modo Institucional. As questões envolvidas podem ser indicadas pela justaposição de Sangue de um poeta (Le sang d’un poète, Jean Cocteau, 1930-1932) e um filme Biograph de 1903 chamado A Search for Evidence, em que uma mulher e um detetive particular examinam uma série de fechaduras de quartos de hotel, proporcionando ao público uma sugestão de cenas pitorescas, até que o marido infiel e sua amante são finalmente confrontados.
A Search for Evidence não era um filme incomum para sua época. Sabemos que durante a Era Primitiva, quando os direitos autorais eram inexistentes ou impossíveis de serem aplicados, especialmente de um país para outro, havia uma extraordinária e livre circulação de signos. Não é exagero dizer que por algum tempo as imagens de filmes foram, na verdade, propriedade pública. Situação difícil de imaginar hoje e que invariavelmente desperta a justa indignação dos historiadores clássicos, sempre rápidos em denunciar plágio. Na verdade, eles estão perscrutando uma espécie de enclave histórico no qual, por uma combinação de razões ideológicas e econômicas, o conceito burguês de propriedade levou vários anos para estabelecer a hegemonia que exerceu sobre todos os outros empreendimentos humanos em todo o mundo ocidental.
Aqui, posso apontar que, embora eu pessoalmente não saiba de tal declarada intertextualidade entre artistas de vanguarda nos EUA ou na Europa Ocidental – eles tendem, ao contrário, a salvaguardar, zelosamente, os princípios da propriedade artística – eu vi em Londres em 1979 um exemplo da Iugoslávia que merece menção e reflexão. O filme Dva vremena u jednom prostoru (Ivan Ladislav Galeta, 1976-1984]) é uma performance de tela única com dois projetores de um exercício interessante de um único plano, dirigido três anos antes por um diretor do mainstream. Um atraso de dez segundos entre as imagens sobrepostas e as trilhas sonoras ouvidas em alto-falantes separados acrescenta uma nova dimensão ao filme original, sem nunca interferir decisivamente em seu impacto visual e narrativo. Não estou certo de que seja completamente acidental que tal experimento nos tenha chegado de um país socialista, onde o conceito de propriedade em geral está sendo reconsiderado.
Não tenho ideia de qual foi a primeira versão do filme arquetípico de “buraco da fechadura”, na verdade mais desenvolvido em A Search for Evidence do que no modelo padrão, que era totalmente desprovido de estrutura narrativa e simplesmente mostrava cenas vistas através de um buraco de fechadura por uma empregada espiã ou por um menino bisbilhoteiro. Nem tenho certeza de onde o gênero se originou, embora suspeite que tenha sido na França.
Afirmo que o Cinema Primitivo encenou, de maneira aberta e ingênua, muitos gestos essenciais que acabariam por se tornar consubstanciais à própria morfologia do Modo Institucional, que ficaria submerso a tal ponto no que chamamos de “linguagem do cinema” para ser completamente interiorizado por fabricantes e espectadores. O gesto de voyeurismo é indubitavelmente um deles.
As primeiras cenas voyeurísticas, no entanto, não seguem o modelo de A Search for Evidence, mas sim o famoso filme Coucher de la mariée (Albert Kirchner, 1896). Nesse modelo puramente primitivo, o voyeur está o tempo todo co-presente na tela com o objeto de seu olhar – invariavelmente, uma mulher se despindo. A mudança deste primeiro tipo de representação para o tipo buraco da fechadura envolve uma curiosa mudança de ênfase, pois enquanto o voyeurismo ainda está na vanguarda da ação, curiosamente é o processo do desejo voyeurístico, ao invés do seu objeto, que é exibido. Destinados, ao que parece, a um público maior, esses filmes raramente mostram mulheres se despindo, mas sim uma série de vinhetas incongruentes como as vistas em A Search for Evidence. Mais importante, porém, é que essa evolução introduz claramente o modo mais antigo de identificação do espectador com a câmera, um fenômeno que estaria no centro do processo diegético do Cinema Institucional. O filme buraco da fechadura, devo acrescentar, não foi a única manifestação do novo voyeurismo: apareciam também filmes com telescópios (e estes, é verdade, eram muitas vezes apontados para mulheres), lupas e até microscópios, mas o princípio sempre foi o mesmo. Por meio da alternância de visões do observador e do observado, os espectadores receberam sua primeira e muito simples lição sobre a onipresença da câmera, em se identificar com a câmera, já que o voyeur na tela é o substituto óbvio do espectador.
Foi apontado (por Tom Gunning, creio eu) que os espectadores dos primeiros filmes de buraco da fechadura muitas vezes olhavam eles próprios por um buraco, já que eram patronos do Cinetoscópio ou, mais tarde, do Mutoscópio. Mas é claro que essa tecnologia não era de forma alguma “inocente”, especialmente se nos lembrarmos dos sonhos analógicos que assombravam o Laboratório West Orange, onde o Cinetoscópio nasceu. A realização do ideal de representação analógica por meio da fotografia em movimento exigiria absolutamente um certo posicionamento, uma certa centralização do espectador sujeito. O filme de buraco de fechadura foi a primeira etapa neste processo.
O que isso tem a ver com a obra de Cocteau? Numa palestra que Jean Cocteau proferiu em 1932 por ocasião de uma apresentação de Sangue de um poeta, ele disse: “eu costumava pensar que... os filmes nos cansam com planos filmados de baixo ou de cima. Eu queria rodar meu filme de frente, sem arte”[9]. Isso já é suficiente para indicar que, até certo ponto, Cocteau estava pensando conscientemente no Cinema Primitivo quando idealizou seu filme pioneiro. Eu acredito que ele pode ter sido o primeiro cineasta modernista a se voltar deliberadamente para as estratégias primitivas como um “antídoto” às da Instituição. Afinal, ele não disse em outro lugar que a lentidão de Sangue de um poeta foi uma reação à edição rápida dos filmes americanos?
Não tenho dúvidas de que, quando Cocteau concebeu a sequência do Hôtel des Folies Dramatiques em Sangue de um poeta, ele estava se lembrando, consciente ou inconscientemente, dos muitos filmes de buraco de fechadura que deve ter visto quando criança (por muitos anos, os filhos da burguesia francesa, junto com suas avós e babás, foram, quase, os únicos espectadores de classe média do cinema francês). Quando se reflete sobre a articulação crucial que o peep-hole representa na genealogia do Modo Institucional e sobre o papel central que a posição voyeurística deveria desempenhar no próprio Modo estabelecido, torna-se difícil tratar isso como uma coincidência. Especialmente quando se observa ainda que essa sequência, que alinha fantasias aparentemente desconexas da melhor maneira primitiva, também contém uma alusão explícita a um tipo de filme-truque primitivo que, embora talvez não tão comum quanto o filme de buraco de fechadura, era igualmente significativo à sua maneira.
Em um filme Pathé de cerca de 1902, um “engenhoso” Soubrette pendura quadros em uma parede aparentemente rastejando por ela. O truque – dificilmente um truque para o olho moderno, acostumado como está a ubiquidade da câmera – consistia apenas no posicionamento da câmera perpendicular a um cenário horizontal, que, portanto, aparentemente devia ser perpendicular ao solo. O domínio esmagador da frontalidade e unicidade do ponto de vista na Era Primitiva deve ter feito tais truques ilusões totalmente eficazes, mesmo quando havia apenas um pano de fundo preto por baixo de um ator deitado, rolando no chão do estúdio (como em outro filme Pathé, La danse du diable, Gaston Velle, 1904).
Cocteau usa o mesmo dispositivo duas vezes na sequência no Hôtel des Folies Dramatiques, primeiro nas cenas do poeta no corredor, onde o efeito é mostrar o ator lutando contra forças invisíveis, e novamente, de forma mais elaborada, nas cenas dentro da sala, marcadas como “lições de vôo”, quando a menina é vista subindo pela parede e pelo teto. É difícil não ficar impressionado com essa associação em uma única sequência de duas alusões abertas a tais questões centrais – e, em última análise, relacionadas – do desenvolvimento do cinema: a resistência histórica ao abandono da frontalidade em favor da ubiquidade da câmera e a identificação do espectador com a câmera.
Talvez pareça incongruente que eu tenha escolhido me deter por tanto tempo em dois filmes modernistas que foram feitos há mais de cinquenta anos, quando é claro que essas instâncias estão singularmente isoladas em seu período e quando parece haver numerosas e generalizadas correlações com o Cinema Primitivo entre os filmes modernistas da Europa e dos EUA realizados desde o final dos anos 1950. No entanto, pareceu importante, neste contexto, fornecer uma perspectiva sobre essas questões – enfatizar que a alteridade do cinema pré-institucional era um pólo natural de atração até mesmo para os primeiros desafios modernistas à Instituição. E talvez seja útil que nos seja então lembrado que até 1930 o impacto do Cinema Primitivo ainda poderia ser direto (pela memória pessoal e pelos vestígios ainda encontrados no cinema – e no da França em particular), enquanto hoje estamos lidando com encontros aparentemente fortuitos ou com o choque conscientemente assumido da redescoberta e do reconhecimento. No entanto, também é verdade – e isso é de grande importância – que o aspecto do Cinema Primitivo que pode ser considerado o de maior “sucesso” entre os cineastas modernistas desta geração posterior (e digo isso até mesmo daqueles que podem nunca ter visto um filme feito antes de 1920) é um que nunca interessou remotamente a nenhum cineasta, creio, até o pintor Andy Warhol se voltar para o cinema (embora eu esteja, é claro, limitando meu quadro de referência ao cinema do Ocidente: os filmes japoneses da década de 1930 desmentem essa afirmação). Refiro-me ao que chamarei aqui de olhar da câmera primitiva, sintetizado nos filmes de Lumière e seus cinegrafistas, mas aparente também no filme primitivo ficcional (em A Kentucky Feud, por exemplo).
Em que medida o reconhecimento de Lumière por P. Adams Sitney como um “precursor” distante do chamado “filme estrutural”[10] – de Warhol a Gehr, digamos – é na verdade o reconhecimento de uma afiliação maior, entre o Modo Primitivo propriamente dito e o que é ainda hoje, suponho, a atitude dominante no filme de vanguarda?
Foi o apagamento sucessivo dos traços principais do Modo Primitivo – a autarquia e a qualidade centrada de sua imagem, a exterioridade do Sujeito espectador e o não fechamento da mercadoria fílmica – que, a meu ver, tornou possível a constituição de um Modo Institucional fundado em um espaço-tempo diegético indefinidamente extensível, na centrada organização da imagem (e posteriormente do som), na identificação da câmera e na presença da persona fílmica e no encerramento do filme como um produto consumível e descartável. E não é difícil demonstrar, à luz desses modelos mutuamente exclusivos, que muitos dos principais gestos do cinema modernista de hoje – e quero dizer os gestos, não necessariamente a obra – visaram objetivamente reverter as mudanças que ocorreram após 1905.
A câmera de Warhol em Chelsea Girls geralmente permanece olhando para o espaço, incapaz ou sem vontade de se mover, quando uma personagem sai de cena, afinal se comporta como a câmera de Méliès, que Georges Sadoul comparou ao olho “daquele cavalheiro nas bancas que nunca pensou em dar uma olhada mais de perto no sorriso da protagonista ou segui-la até a sala de jantar quando ela saísse”[11].
Quando Barry Gerson diz que em seus próprios filmes “uma parte da imagem não é mais importante do que outra parte – as formas operam juntas – o que está ocorrendo na borda esquerda da tela vive por causa do que ocorre na borda direita, borda superior, meio, etc.”[12], como não nos lembrar da imagem Primitiva centrada e da leitura topológica que ela exigia?
E aqui está um exemplo bem escolhido: A Casing Shelved (Michael Snow, 1970) é, na verdade, um único slide colorido com uma fita magnética de uma hora de duração, mas compartilho a visão de que, em nosso contexto, é equivalente a um filme performance, com “a voz do artista, gravada... catalogando os objetos, trazendo-os à nossa vista, direcionando o olhar do espectador para uma leitura da imagem”[13], como Annette Michelson descreveu. Aqui, o encontro com o modelo Primitivo é espetacular, pois a imagem projetada de objetos nas prateleiras inscreve com força – embora por meios muito diversos, é claro – a exterioridade Primitiva do espectador Sujeito, enquanto a voz do artista na fita, lendo essa imagem e organizando esses objetos aparentemente díspares e “sem sentido” em uma narrativa autobiográfica, recapitula quase literalmente o gesto contraditório do palestrante primitivo, linearizando e distanciando.
No entanto, tendo marcado essa afinidade clara com o Modo Primitivo, o que, eu me pergunto, eu realmente disse sobre esses filmes? Não teria eu simplesmente dito o que eles não são e descoberto que aquilo que eles não são o Cinema Primitivo também não é, e nada disse, por exemplo, sobre o elaborado e abrangente trabalho de testar os limites da diegese que pode ser encontrado na obra de Michael Snow, ou sobre as implicações ideológicas contraditórias da interpretação em Warhol, ou sobre o papel significativo da nova cultura da droga no surgimento de um público para esses filmes, senão nos próprios filmes? Ou simplesmente não defini, nos termos mais gerais (ou melhor, pertinentes) possíveis, a estrutura conceitual que grande parte da vanguarda recente estabeleceu para si mesma, uma estrutura que não é muito surpreendentemente definível, ao que parece, em termos da “interface” entre os Modos Primitivo e Institucional. Pois, os filmes mencionados aqui são instâncias-limite. Seus principais traços privativos servem para definir um “espaço” dentro do qual evoluiu grande parte da significativa produção cinematográfica modernista nos EUA e na Europa nos últimos quinze ou vinte anos. Mas as limitações desta “descoberta” devem ser claramente percebidas, para que a utilidade de tal ideia, para teóricos e cineastas, cresça.
Conheço apenas três filmes modernistas que, em reconhecimento dessa afinidade, se envolveram explicitamente com o Cinema Primitivo. Em After Lumière (After Lumière – L’arroseur arrosé, 1974), Malcolm Le Grice encena uma série de variações em preto e branco de O regador regado (L’arroseur arrosé, Louis Lumière, 1895) aparentemente enfatizando a natureza mecânica exterior da narrativa naquela gag fílmica arquetípica. A mudança que se seguiu para uma colorida tomada de uma mulher tocando música no piano que acompanhou as variações anteriores, abre uma reflexão interessante sobre o papel da música em preencher a lacuna entre o espaço do espectador e o diegético no início da história do cinema.
Ken Jacobs e Ernie Gehr se envolveram diretamente com filmes primitivos como “ready-mades”, que podem ser citados por terem estimulado o senso de reconhecimento em questão aqui. A escolha de Jacobs de Tom, Tom, the Piper’s Son (Billy Bitzer, 1905), um filme da era primitiva tardia, é de considerável interesse do meu ponto de vista heurístico. O respeito rigoroso do filme pela “regra” de que todas as personagens devem entrar e sair de uma cena antes que termine, originalmente um sinal do apego do filme de perseguição à autarquia de Lumière, foi ambivalente nessa data tardia e beirava, acredito, a paródia. A frontalidade rígida do filme e as piadas altamente mecanizadas aparecem quase como uma última indulgência meio sofisticada à “peça infantil” da era primitiva antes da Biograph começar a tratar do assunto sério que começou com Griffith. É claro que é com o curso futuro da história do cinema que o trabalho de Ken Jacobs neste filme se envolve diretamente, por meio de seus procedimentos de refilmagem. A cena de abertura do filme, tão tipicamente Primitiva na medida em que sua substância narrativa é totalmente ilegível para o olho moderno à primeira vista, é analisada de uma forma evocativa – embora apenas evocativa – dos procedimentos de edição linearizantes da Instituição, de modo que se torna legível na segunda visualização. Acho que aqui está um exemplo maravilhoso de uma combinação de trabalho e diversão com os materiais de um processo histórico crucial.
Em contraste à complexidade do filme de Jacobs – relacionada tanto ao paradigma sincrônico da produção cinematográfica quanto ao diacrônico – o filme mais recente de Ernie Gehr, Eureka (1974), por sua própria simplicidade, aponta admiravelmente para a ambivalência, e na verdade para certos aspectos ilusórios, do paralelo entre o primitivo e o modernista. Este filme, com a sua duração original esticada meticulosamente por Gehr novamente por um processo de refilmagem, foi, com toda a probabilidade, feito para ser exibido nos simuladores de vagões dos Hale’s Tours, já descritos. Foi filmado da frente de um teleférico da Market Street em São Francisco e mostra uma longa aproximação ao Ferry Building. Como indiquei, a sua existência corresponde a uma necessidade sentida na altura de criar condições para uma penetração na imagem cinematográfica uns bons dez anos antes que isto pudesse ser alcançado pela montagem e colocação da câmara, e pelo estabelecimento de teatros escuros, silenciosos e confortáveis o suficiente para criar as condições para uma viagem simbólica, em vez de uma simulada.
Gehr extrai o principal componente visual – o filme – de um contexto que pode ser descrito como uma forma de ilusionismo sinestésico – em alguns casos, ventiladores sopravam ar ou fumaça através de vagões que balançavam e rangiam como os de um trem real. Em sua apropriação, ele toma imagens que, embora sigam o modelo de Lumière, não eram mais vistas como os filmes originais de Lumière, mas eram vivenciadas como parte de um ambiente físico – e procede, de modo a reverter um processo histórico, restaurando àquelas imagens aquela alienação que Gorki sentira dez anos antes. Na verdade, enquanto alguém assiste, ou tenta assistir, aquele frame fervilhante, descentralizado, “ilegível”, parece que se ouve a voz de Gorki: “isto não é vida, mas sua sombra, isto não é movimento, mas seu silencioso fantasma”[14]. E, claro, para o anti-ilusionismo moderno, tal declaração não é um lamento.
Agora, como Peter Wollen teve a oportunidade de apontar alguns anos atrás[15], houve, nas décadas de 1960 e 1970, duas vanguardas, uma delas se colocando resolutamente fora da Instituição – e em grande parte fora da história – em uma perspectiva “anti-narrativa”, e a outra atuando à margem da Instituição, tanto no sentido estético quanto econômico, relacionando-se à Instituição explicitamente – e muitas vezes, também, ao sistema social que fomentou o crescimento da Instituição e mantém seu poder. Esta última vanguarda, principalmente europeia, incorporou em seu arsenal crítico estratégias que claramente remontam à Era Primitiva. Em minha opinião, essas estratégias, no seu conjunto, refletem um grau de responsabilidade histórica muito mais elevado do que qualquer uma das primeiras das duas vanguardas, totalmente americanas, onde a obra, com toda a sua enorme importância artística, geralmente parece ter ocorrido em algum lugar do firmamento platônico da Forma e da Percepção.
O uso da frontalidade por Jean-Luc Godard – tanto no sentido de posicionar sua câmera perpendicularmente a uma parede, por exemplo, quanto de ter seus atores representando para a câmera – tem sido muito discutido. Eu simplesmente gostaria de enfatizar aqui que este encontro com o Modo Primitivo está longe de ser historicamente casual, como é evidenciado pela cena de um de seus filmes mais radicalmente frontais, A chinesa (La chinoise, 1967), onde as personagens discutem os respectivos papéis na história do cinema de Méliès e Lumière.
Mas gostaria de mencionar três outras instâncias menos conhecidas, da França, Espanha e Bélgica, onde as questões implícitas no confronto entre os modos primitivo e institucional desempenham um papel central. Deux fois (Jackie Raynal, 1969-1971), que foi amplamente analisado pelo coletivo Camera Obscura[16], é, em minha opinião, uma importante meditação sobre vários aspectos importantes da representação institucional. Seu uso quase literal do modelo Lumière (cenas de rua longas e descentralizadas em Barcelona, em particular, tanto mais panorâmicas quanto são filmadas em CinemaScope[17]) fornece uma espécie de ponto zero a partir do qual questões elementares, mas primárias, como a extensão do espaço-tempo diegético e as trocas do olhar, podem ser exploradas.
No ainda pouco conhecido Contactos (1970) do cineasta espanhol Paulino Viota, que continuo a considerar como um dos mais importantes filmes europeus da última década, o olhar primitivo é recrutado para um sistema representacional e narrativo baseado na descentralização radical. Por exemplo, uma troca de algumas palavras entre dois ativistas revolucionários que trabalham em um restaurante é abafada, por assim dizer, nas idas e vindas de garçons e garçonetes pela porta da cozinha, enquanto a câmera observa esta atividade descentralizada de trabalho por vários minutos.
A magistral meditação de Chantal Akerman sobre a alienação de uma mulher, Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1975), pode ser considerada um tributo quase sistemático ao olhar primitivo, reproduzido frequentemente com extraordinária fidelidade sob seus dois aspectos principais: o plano médio longo, filmado de uma posição rigorosamente perpendicular a uma parede; e o close-up médio frontal de uma pessoa sentada atrás de uma mesa, de frente para a câmera, “fazendo algo” (fosse o bebê dos Lumière tomando café da manhã ou Dranhem preparando massa e recitando seu monólogo, The Baker). Além disso, a correspondência direta – inconcebível no Cinema Primitivo e indispensável para o princípio da ubiquidade da câmera na Instituição – é cuidadosamente evitada. A associação dessas atitudes produz um dos filmes com mais distanciamento narrativo dos últimos anos – recriando em grande medida as condições de exterioridade do Modo Primitivo (a dispersão da fala parece ser mais um fator contribuinte aqui) – posicionando o espectador mais uma vez em seu assento, dificilmente apto porque dificilmente capacitado a embarcar naquela jornada imaginária através do espaço-tempo diegético a que estamos tão acostumados e obrigado, em última instância, a refletir sobre o que é visto, em vez de apenas experimentá-lo.
Pode ter parecido às vezes que minha apresentação aqui foi excessivamente polêmica. Isso ocorre porque eu sinto que houve uma tendência no passado – e talvez não apenas no passado – de simplificar demais o significado de nossas respostas a esses objetos estranhos que são felizmente encontrados em algum arquivo e que são “assinados” “Lumière”, “Méliès” ou “Zecca” (embora nunca, talvez, o conceito de autoria tenha sido tão irrelevante para uma compreensão dos filmes do que para aqueles da Era Primitiva). Uma tendência em particular de considerar o Cinema Primitivo como um Paraíso Perdido onde “nossos” valores prosperados antes de serem subvertidos pela Narrativa do Demônio ajudou às vezes a reforçar uma visão dicotômica, na verdade maniqueísta, da história do cinema e da estética cinematográfica que só serviu para turvar nossa compreensão da experiência cinematográfica em nossa sociedade, determinada essencialmente, afinal, por cinquenta anos de experiência do Modo Institucional de Representação. A Instituição está em nós e nós nela, e tem sido palco de práticas de imensa importância, tanto artísticas como sociais.
Essa ideologia dicotômica – a Instituição como Objeto Mau, primitivismo e modernismo como Objetos Bons – também deu origem à ideia de que a história do cinema poderia ter sido – isto é, deveria ter sido – diferente de alguma forma, e que as Musas estavam apenas esperando pelo Novo Cinema Americano surgir e colocar o cinema de volta no caminho da aventura da qual havia mudado quando a sombra de Griffith caiu sobre ele. Infelizmente, só posso descrever esse ponto de vista como infantil.
Quanto ao teórico que deseja elucidar a experiência institucional – classificar as suas origens, seu crescimento e suas transformações, e as relações de tudo isso com a disputa pelo controle social em nossas sociedades – parece necessário que ele trate o cinema primitivo não apenas como um metadiscurso sobre o processo fílmico – e aqui a perspectiva oferecida pelo modernismo é valiosa – mas também nos termos de sua inserção real na história, não importando quantas questões não respondidas e talvez irrespondíveis tal abordagem possa suscitar. Como eu disse anteriormente, é essencial que ao menos se tente segurar as duas pontas da corrente.
1987
Este ensaio, o único desta coleção originalmente escrito em inglês, foi apresentado pela primeira vez, de forma ligeiramente modificada, como uma palestra no Whitney Museum, na cidade de Nova York, em novembro de 1979, como parte de uma série sobre cinema primitivo e a vanguarda. Posteriormente, foi publicado em uma antologia de crítica editada por Philip Rosen intitulada Narrative, Apparatus, Ideology.
Eu estava envolvido em um flerte inconstante com o chamado Novo Cinema Americano por mais de quinze anos, sob os auspícios orientadores de P. Adams Sitney e Annette Michelson. Os adeptos do modernismo nova-iorquino sem dúvida ficaram angustiados ao descobrir que a única obra escrita jamais emanada daquelas horas de projeções organizadas de maneira privada dos filmes que eles defendiam com tanto fervor tomou estes últimos apenas como ilustrações para uma abordagem metalinguística e historiográfica do cinema institucional que a maioria deles tanto desprezava.
Agora que a década de 1960, quando o trabalho mais emocionante de Brakhage, Warhol, Snow e outros foi realizado, está muito longe de nós, parece claro que resta muito pouco daquela tentativa de recrutar o filme para a lógica modernista, exceto precisamente o que esses filmes dizem sobre a natureza da instituição real e sobre o isolamento da comunidade americana de artistas de sua sociedade e do mundo em geral.
Notas:
[1] Marey, prefácio de Trutat, La photographie animée (Paris, 1899).
[2] Vertov, Articles, journaux, projets (Paris: UGE, 1972), pp. 61-62.
[3] Fred J. Balshofer e Arthur C. Miller, One Reel a Week (Berkeley: University of California Press, 1967), p. 3.
[4] Jonas Mekas, Movie Journal: The Rise of the New American Cinema, 1959-1971 (Nova York: MacMillan, 1972), p. 230.
[5] Citado em Jay Leyda, Kino (Londres: Allen and Unwin, 1973), p. 408.
[6] Um levantamento abrangente até mesmo da dimensão visual do Modo Institucional e seu desenvolvimento ao longo dos trinta e cinco anos que precederam o advento do som está fora do escopo deste artigo, embora eu seja levado a mencionar alguns aspectos dele. Veja meu livro La lucarne de l’infini (Life to Those Shadows).
[7] P. Adams Sitney (ed.), Film Culture Reader (Nova York: Praeger, 1970), p. 402.
[8] Georges Sadoul, Histoire générale du cinéma, vol. II (Paris: Ed. Denoël, 1973), p. 187.
[9] The Blood of a Poet, a film by Jean Cocteau, trad. Lily Pons (Nova York: Bodley Press, 1949), p. 52.
[10] P. Adams Sitney, “Structured Film”, Film Culture, ed. P. Adams Sitney (London, Secker & Warburg, 1971), p. 329.
[11] Sadoul, op. cit., p. 141.
[12] Film Culture n.º 63-64, 1977, p. 115.
[13] Annette Michelson, “Towards Snow”, Artforum, julho de 1971.
[14] Leyda, op. cit., p. 407.
[15] “Godard and Counter-Cinema: Vent d’est”, Afterimage n.º 4, 1972. Ver também Peter Wollen, “As duas vanguardas”, Studio International, dezembro de 1975. Ambos os ensaios foram reimpressos na coleção dos escritos de Peter Wollen, Readings and Writings: Semiotic Counter-Strategies (Londres: New Left Books e Verso, 1982).
[16] Camera Obscura n.º 1, outono de 1976.
[17] Deux fois não foi rodado em CinemaScope. [N.T.]
(In and Out of Synch – The Awakening of a Cine-Dreamer. Londres: Scolar Press, 1991, pp. 157-186. Traduzido por Matheus Albano, João Palhares, Valeska G. Silva e Fábio Visnadi) |
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