A VIDA COMO ELA É
(La vie comme ça). 1978. Institut National de l’Audiovisuel (95 minutos). Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Georgy Fodor (cor). Som: Robert Cadaine, Alain Fournier, Guillaume Loisillon. Mixagem: Jean-Pierre Laforce, Jean-Pierre Laforge. Música: Guillaume Loisillon. Cenografia: Josée Van Hoorn. Montagem: Stéphanie Granel, Lucette Lhure, Pascale Granel, Emmanuelle Lalande. Elenco: Lisa Hérédia (Agnes Tessier), Lucien Plazanet (o porteiro), Marie Rivière (Florence), Jenny Bellay (a mãe de Agnes), Daniel Tarrare (o louco do metrô), Jacques Serres (o pai de Florence), Bernard Tiphaine (Pineau), Janine Souchon (Sra. Leblanc), Pascale Ogier (Muriel Pucheu), Luc Ponette (o delegado), Jean-Claude Balard (Lambert), Michelle Ernout (a mulher que se sente bem), Pierre Gislan (o rapaz que se acha bonito), Rosette (Véronique), Claude Morel (Chauvel), Bernard Esposito (Prosper), Sr. Saillard (Pointeau), Catherine Guerry (o empregado), Antonio Garcia (o guarda de Agnes), Mina Baiche (líder dos marginais), Philippe Ahmed (jovem cúmplice), Laurent Meda (jovem que grita), Jean-Luc Marie (Garçon), Sra. Glemee (Sra. Leontine), Yvonne Nidaine (velha dama), Pierre Chabert (velho senhor), Véronique Dumesnil (Professor).
“Truffaut dizia, se bem me lembro, ‘Quando faço um plano e não sei muito bem o que fazer, penso em algo que Hitchcock teria feito.’
Isto nunca me ocorreu. Quando realizo um plano, penso no lugar em que vai estar a câmera em função do espaço ou da fisionomia do ator.”[1]
Eric Rohmer
Do seu primeiro longa-metragem em diante, Jean-Claude Brisseau terá em vista um cruzamento entre os métodos de dois cineastas que o precederam e de cujas obras é bem versado: como Rohmer, Brisseau optará pela síntese entre os recursos que possui e o acaso que se apresenta no momento da filmagem, o que faz com que a intervenção de elementos fortuitos, os quais perturbam a ação exterior do filme, passe por uma averiguação analítica pelos meios propriamente científicos do cinema, de forma que essas agitações a princípio externas à ação profunda do enredo acabem como que aderidas por esta, num processo que poderíamos nomear, como o faz o personagem de Bruno Cremer em Um Jogo Brutal, de “observar e simplificar”. E, como Truffaut, Brisseau fomenta um confronto entre si e seus fantasmas em um novo contexto, postulado por um conhecimento particular que vai da biografia à cinefilia, o qual se articula como fato original pelo embate entre o mundo íntimo do artista e aquilo que ele retrata.
Sob o espírito da máxima de Truffaut, a presença dos cineastas de predileção não é nociva: o contrário é que o seria, visto que a má influência nasce pela sua limitação, quando não se é capaz de se selecionar aquilo que influencia por conta do pouco que se conhece. Brisseau faz parte de uma linhagem que não é capaz de se desvencilhar do cinema de sua época. Sua interpretação particular do cinema, associada ao gosto pela descoberta da ferramenta, nasce em sessões cotidianas, casuais, aquelas onde foi-se até o último centavo por inúmeras revisões de Walsh, Hitchcock e Ford.
O mesmo ocorre para as experiências retratadas, as quais estabelecem analogias entre o íntimo e o cósmico, e que são de uma transparência equivalente à que observamos no próprio método do artista, o qual, em um primeiro momento, aprende a pintar um determinado objeto através do estudo da obra do mestre, e só quando adquirida a devida habilidade viaja para contemplar e rascunhar o objeto na sua paisagem natural, recapturando sob suas perspectivas uma beleza anteriormente conhecida sob outras formas.
A Vida Como Ela É, porém, é o filme de Brisseau mais tomado pela proposta rohmeriana. Isto se dá pelo fato de Brisseau, ainda em seu começo, ter sido descoberto através de um longa-metragem realizado na bitola Super 8, que Rohmer chegou a propor que fosse refeito de modo “profissional”: La croisée des chemins. Foi por sua influência que A Vida Como Ela É pôde então ser realizado, dentro de uma estrutura profissional (16 mm.), porém sob o mesmo espírito amador do Rohmer de A Padeira do Bairro (La boulangère de Monceau, 1963). Não seria um reflexo de si próprio, realizador também à margem nos primórdios, que Rohmer projetou na figura emergente e dissonante de Brisseau em tal contexto? Sua busca pelo caráter amador como resistência ao conformismo imposto pelas dificuldades de realização, ele a vislumbrou também em Brisseau.
A Vida Como Ela É torna-se, então, uma lembrança das primeiras incursões hawksianas de Rohmer, no confronto da realidade pela experiência, entre o possível e o impossível de uma idéia.
Uma das bases posteriores do cinema de Jean-Claude Brisseau, essa relação de mestre e discípulo entre ambos, não deixa de ser notável: a relação é consolidada por suas ambigüidades, por uma dependência que não permanece no campo do simples ensinamento do experiente ao inexperiente, mas numa troca mútua, onde as duas partes nunca terminam semelhantes ao que foram algum dia, antes de seu contato. Brisseau indica para Rohmer as coordenadas para uma releitura de seus primórdios, tanto através do retorno à escassez de recursos como por um registro que permite uma consciência mais reflexiva. Não por acaso A Mulher do Aviador (La femme de l’aviateur, 1981) será, três anos após A Vida Como Ela É, o filme seguinte de Rohmer: a confirmação de um cinema que jamais deverá se ausentar do terreno explorado, sendo a alternância dessa questão apenas um desvio momentâneo do que ela poderia vir a ser (algo coerente, convenhamos, em um cinema do “aprender a ver”), ou seja, apenas uma encarnação fugidia que se esquiva da realidade do momento descrito (como o sonho em Amor à Tarde [L’amour l’après-midi, 1972], por exemplo).
Não existe evasão alguma dessa questão no cinema de Brisseau. Através do mesmo exame rohmeriano, científico e metódico, é que se torna possível acessar esse conhecimento, o qual já não é mais figurado na forma de um devaneio como em Rohmer, mas sim moldado em uma clareza semelhante às das representações mundanas de A Padeira do Bairro e O Signo do Leão (Le signe du lion, 1959). A transcendência é para Brisseau algo parecido com o que o surrealismo foi para Buñuel: uma circunstância que ocorre pelo excesso de contenção da realidade, pela saturação dos signos terrenos. Isso fica evidente ao se observar como a presença da morte em A Vida Como Ela É marcará seu cinema posterior: aqui, a comunidade a absorve enquanto experiência anônima, um presságio que pode estar presente ao se dobrar uma esquina, ao se ser seduzido por uma garota, no suicídio ao pular de uma janela. Como se a morte fosse capaz de habitar os planos por um lastro na atmosfera, pressão que se desoprime sob o jogo cênico. Ao perceber como ela se tornou um dado prosaico, um evento banalizado, Brisseau procura restituir sua identidade, transformando-a posteriormente em uma figura tão visível quanto qualquer outra. Mais tarde, em A Garota de Lugar Nenhum, ele possivelmente alcança o ponto máximo dessa idéia, extraindo uma das formas mais puras de se relacionar com a morte ao mesmo tempo em que consegue ressoar o modo de produção amador de A Vida Como Ela É. Portanto, uma progressão que não deixa de ser um retorno ao que sempre existiu de mais básico em sua obra, um ciclo que o permitiu depurar o que sempre buscou representar.
“Há duas coisas que preenchem o espírito com uma admiração e veneração sempre renovadas e crescentes: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.”[2] Pois a libertação desse cárcere pela morte presente desde aqui em sua obra, acontece também pela existência de dois tipos de mulheres em Brisseau: aquelas que olham para cima, e aquelas que olham para baixo. Ambas se encontram em diferentes aprisionamentos, resistem, sucumbem em combate a um mundo que se revela indiferente ao seu colapso. A composição de uma justiça particular, onde suas visões de mundo entram em dissonância com a sociedade em que estão inseridas, é a ruína dessas mulheres da mirada para baixo.
O que sobra é apenas a consciência de que suas existências são, ou foram, nada mais que um horizonte tangível no meio de um abismo, como o oceano que existe para Mathilde antes de seu suicídio em Boda Branca, como o último olhar de Nathalie antes de descer para o metrô no final de Coisas Secretas, e como o próprio vento que sopra em torno do corpo morto, e enfim livre, de Agnes Tessier em A Vida Como Ela É. Enquanto que para as outras, aquelas que de alguma forma ainda não compreenderam esse movimento interior, que buscam uma ordem própria pelo reflexo exterior, que não conseguiram antever uma regência das coisas do mundo (e, sobretudo, de si mesmas), só resta o plano brisseauniano por excelência: colocar-se com a cabeça levantada diante do céu e do horizonte, em semelhante busca por essa lei.
Notas:
[1] Entrevista cedida à revista Les Inrockuptibles em 5 de Junho de 1996.
[2] Immanuel Kant, Crítica da Razão Prática.
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