A VIDA COMO ELA É
por Francis Vogner dos Reis


O belo é a prova experimental de que a encarnação é possível.
Simone Weil, A Gravidade e a Graça

O cinema não consegue filmar a “realidade social”. Os cineastas medíocres tentam fazê-lo. Ken Loach, por exemplo, se sente satisfeito em tentar representar as agruras do cotidiano do lumpesinato e a demolição do welfare state. Seu público (e, mais recentemente, o de Abdel Kechiche) também se sente contemplado, porque ele realiza uma denúncia necessária (não discordamos em nada de sua crítica), faz do cinema receptáculo de questões sociais relevantes. Ele dá uma função política ao cinema, no sentido mais rasteiro e corriqueiro do termo, que é o de fazer do filme um “caso exemplar” de questões importantes para a boa consciência humanista e de centro-esquerda. No caso do Luis Buñuel da fase mexicana, de Roberto Rossellini ou mesmo Paulo César Saraceni, há um elemento abstrato que transfigura a realidade social, uma realidade que não possui uma objetividade plena, mas é imersa em representações. Por isso, não existe, para esses cineastas, uma realidade social que não seja composta por fantasmagorias, pelo absurdo, que não lide com uma concepção de mundo em que o corriqueiro ou está atravessado pelo onírico ou por forças maiores que se cristalizam em imagens sublimes e grotescas.

Esse choque é uma forma de desestabilizar as fronteiras entre o interior e o exterior, entre mente e mundo, ilusão e realidade. Terry Castle, no artigo Phantasmagoria: Spectral Technology and the Metaphorics of Modern Reverie, identifica a fantasmagoria como uma metáfora primordial da sensibilidade e da consciência romântica, assombrada pelo delírio, pelo terror e pela sublimação. A fantasmagoria é figura metafórica importante em Poe, Baudelaire e Rivette, por exemplo. Jean-Claude Brisseau é o caso mais exemplar e depurado dessa modernidade no cinema. Ele cria fábulas de substrato filosófico, mas que tomam o caminho da metafísica para alcançar uma compreensão materialista do mundo. O exemplo mais extremo e exemplar em sua obra é o elemento mágico e encantado de seu “conto de fadas” Os Indigentes do Bom Deus: o dinheiro.

Não por acaso, mais do que Marx ou qualquer outro filósofo da tradição marxista, Simone Weil é a referência lapidar em sua obra. Mística, sua visão transfigurada da realidade não alimenta qualquer ilusão criada pela ideologia ou pelos sistemas religiosos. Esse pensamento radical de Weil, que estabelece uma tensão entre o físico-material e o abstrato (não por acaso A Gravidade e a Graça é título de sua obra mais conhecida), atravessa toda a obra de Brisseau, que em seu conjunto versa sobre a ilusão como uma imagem sensível do mundo, que o percebe, relaciona-se com ele e o representa, mas que com ele não se confunde. Por isso as representações do mundo do trabalho e, mais precisamente, da luta de classes, são concebidas como tragédia: uma imagem frágil que desvela um jogo de forças em que os mais fracos estão sujeitos à inevitável destruição de uma “força vinda de cima”.

Nesse sentido, o segundo filme de Jean-Claude Brisseau, A Vida Como Ela É, filmado em 1978 é, junto com Coisas Secretas, de 2002, seu filme mais cruel. Não por acaso, ambos se passam no mundo do trabalho, ainda que aqui tenhamos outros espaços caros ao diretor como a escola e os conjuntos habitacionais da periferia parisiense, ambos caracterizados por uma fauna de velhos tristes e jovens delinqüentes.

Acompanhamos a ascese de Agnes (Lisa Hérédia), garota proletária que larga a escola e a casa da mãe para trabalhar em uma empresa e morar em um conjunto habitacional onde, segundo o zelador, só habitam aqueles que esperaram muito da vida e no alvorecer de suas existências se vêem sós e infelizes. Essa tristeza também está na fala da mãe de Agnes que, ao saber que a filha vai deixar o lar original para morar com uma amiga, lamenta que vai envelhecer e morrer só.

A crueldade se insinua de saída com a brutalidade que lhe é devida: quando Agnes e sua amiga chegam ao conjunto habitacional são recebidas pelo corpo ensangüentado de uma mulher que se jogou pela janela. Os garotos fazem troça do cérebro espalhado pelo chão que, segundo eles, se parece com “miolos de carneiro”. Essa imagem não é só significativa desse universo atravessado pela violência banalizada, mas é também o prenúncio de uma dinâmica dos mecanismos de morte que enredarão Agnes em toda sua trajetória e o cinismo geral frente à tragédia do próximo.

As cenas são muito diretas. A primeira parte do filme é quase um catálogo das agruras da periferia francesa, um ponto de vista do fenômeno (não da sociologia) da violência da realidade do sub-proletariado. Se em outros filmes de Brisseau os elementos surrealistas surgem por meio da imanência do fantástico, em A Vida Como Ela É a cultura da violência e a indiferença frente a ela se tornaram corriqueiras e, assim, o filme alcança (pelo sensacionalismo, pelo excesso e pelo horror) uma dimensão de absurdo. No espaço do trabalho é a mesma coisa: ao se aplicar a construir um olhar sobre o trabalho não somente por meio da atividade e dos prejuízos morais, mas, sobretudo, pelo conflito ético entre as funcionárias (em especial Agnes) e os gerentes, Brisseau perspectiviza e desnaturaliza a própria realidade do trabalho que, visto em sua “natureza”, revela um desleal jogo de forças. Brisseau filma sem o distanciamento irônico comum do cinema contemporâneo (de Lars von Trier ou Gabriel Mascaro, por exemplo). Luc Moullet notou que Brisseau interrompe as cenas sem uma conclusão. De fato suas cenas vão direto ao ponto dos conflitos que, tendo seus desdobramentos suprimidos, destacam o que é essencial e elementar. Se há um desenvolvimento gradual, este é de cena para cena. O caricato e o brusco, ao invés de neutralizarem os conflitos, expõem-nos sem atenuantes. No interior de cada uma das cenas Brisseau mostra - com precisão - o núcleo duro dos conflitos. Os detalhes não são explicativos, são sórdidos, como, por exemplo, as pichações no banheiro que hostilizam Agnes. São dessas humilhações que lembramos quando Agnes entra em colapso.

Brisseau não filma esses personagens segundo uma tipologia social ou uma concepção proselitista de classe e indivíduo. Ele se preocupa com o drama da condição das personagens em seu meio, as dificuldades concretas, as provações e o sofrimento.

Em A Gravidade e a Graça Simone Weil entende que as leis da alma são análogas às que regem as leis físicas (gravidade); a graça seria a única exceção. A graça entra a contrapelo na ordem do mundo. Uma ordem bruta, é verdade, como é a que Brisseau desenha em A Vida Como Ela É. O próprio título do filme é uma constatação de uma ordem. É o determinismo social em ação. Aí reside o elemento trágico. Na contramão disso, a misericórdia.

Se o filme é todo pontuado por mortes violentas, na sua parte final o que o pontua são alguns gestos de misericórdia que relativizam muito discreta e gradualmente o determinismo trágico no qual Agnes está submetida. O louco aparentemente perigoso que apanha de um homem na estação e que pede um beijo a Agnes - e é atendido -, a solidariedade de sua colega quando é demitida, o cuidado que o zelador lhe dispensa gratuitamente, tudo isso contrasta e desestabiliza a ordem miserável das coisas. Cada um desses momentos, diferente do sensacionalismo da violência moral e física, Brisseau filma de modo discreto, contrastando muito fortemente com a violência. O que na violência é grave, brusco e aparentemente sem sentido acaba como que naturalizado quando vemos que a violência é praticamente uma cultura disseminada. A misericórdia, no entanto, é o escândalo porque antinatural e gratuita (a graça). Brisseau é dos poucos cineastas na história que souberam filmar a misericórdia, assim como Mizoguchi foi o único a saber filmar a compaixão: na última cena do filme, a violência do corpo morto e ensangüentado estendido no chão (parecida com a cena de chegada da protagonista no prédio), possui um detalhe considerável e comovente: enquanto os delinqüentes riem em frente ao corpo, um garoto ajeita com pudor a saia da moça morta levantada pelo vento, como se solicitando algum respeito, como que aferindo dignidade a ela. Filmada em travellings, a cena é parecida, mas ao mesmo tempo radicalmente diferente da outra que vimos no início. O movimento da câmera desloca o ponto de vista, concebendo essa cena de violência derradeira por uma perspectiva difusa, relativizando, assim, a tragédia. Não há objetivamente uma redenção final para a personagem que morre como Santa Maria Goretti (tentando evitar um estupro), porque a sua ascese já configurou uma redenção que não está no seu destino último, mas nas suas escolhas, nas suas tomadas de posição, na sua aguerrida e escandalosa piedade, de uma lucidez que está nos antípodas da Santa Joana dos Matadouros de Brecht. É por meio de Agnes que a misericórdia, nos detalhes e na suavidade (em oposição à totalidade e à brutalidade), desestabiliza a ordem. É dessa tensão que nasce a beleza. Uma beleza difícil.

Referências bibliográficas:

Terry Castle, “Phantasmagoria: spectral technology and the metaphorics of modern reverie”, Critical Inquiry, vol. 15, nº 1, outono 1988, pp. 26-61.

Simone Weil, A Gravidade e a Graça, São Paulo, Martins Fontes, 1993.

 

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