OS INDIGENTES DO BOM DEUS
por Jean Collet


(Les savates du bon Dieu). 2000. La Sorcière Rouge/Euripide Productions/Arte France Cinéma/Rhône-Alpes Cinéma/Canal+/Sofica Sofinérgie 5/La Région Rhône-Alpes/Centre National de la Cinémathographie (106 minutos). Produção: Jean-Claude Brisseau, Frédéric Sichler, Daniel Toscan du Plantier. Produção executiva: Euripide Productions. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Romain Winding, Laurent Fleutot (Eastmancolor). Som: Georges Prat, Brigitte Taillandier, Bernard Leroux. Música original: Jean Musy. Cenografia: Maria-Luisa Garcia Martinez. Montagem: Maria-Luisa Garcia Martinez. Elenco: Stanislas Merhar (Fred), Raphaële Godin (Sandrine), Emile Abossolo M’bo (Maguette), Coralie Revel (Elodie), Paulette Dubost (a avó), Phillippe Caroit (Jacques), Hassan Bellah (Irmão Zaoui 1), Anouard El Omari (Irmão Zaoui 2), Rachid Nemmiche (Irmão Zaoui 3), Fabrice Deville (Di Frasso), Snejana Djokic (Estelle), Mélanie Alessi (a amiga de Estelle), Christian Pernet (o garagista), Romain R’Bibo (Miguel), Samir Fouzari (Marouf), Abder-Kader Dahou (Kamel), Albert Montias (Mangin), Fabienne Poncet (o chefe de segurança), Aurélie Sterling (Mina), Gerard Baume (o chefe de polícia), Marie-Thérèse Eychart (a diretora da escola), Laure Josnin (a orientadora da escola), Noémie Kocher (a professora da escola), Michèle Ernou (a juíza), Pierre André Jay (o advogado), Luc Ponette (o presidente do tribunal), Lisa Hérédia (mulher no correio - não creditada).

Sob esse título intrigante, Brisseau nos lembra de que ele sempre foi um contador. Claro, não nos esquecemos que ele nos fez conhecer - na televisão e depois no cinema - o mal das periferias, a existência paralela de uma juventude fora-da-lei e de uma violência que ninguém via na época (L’échangeur, 1981; Um Jogo Brutal, 1983; O Som e a Fúria, 1988). Mas, nele, o documento social vem sempre inscrito numa narrativa em que a ficção permite traduzir a realidade mais bruta. Sempre houve nos seus filmes um procedimento pedagógico, uma busca de sentido que respondesse à potência absurda do mal. Hoje, quando as ruas e as mídias verificam a cada dia seu olhar profético, Brisseau nos embarca naquilo que poderíamos tomar como um fait divers, mas rapidamente nos encontramos ao lado de Aladim, num conto maravilhoso que decifra, à sua maneira, a realidade social.

Esperamos um filme duro (mas O Som e a Fúria, apesar das lágrimas e do sangue, já era também um conto de fadas); ora, ao calçar “as sandálias do Bom Deus”[1], entramos numa curiosa comédia que mistura com habilidade todos os gêneros. É uma espécie de fábula em que a violência se revela a outra face de uma infância perdida a qual ainda precisa de uma avó e de um “anjo negro” para aprender a crescer. O anjo negro (esse foi o título do filme precedente de Brisseau) não é mais aqui uma figura maléfica; é um personagem Africano extraordinário (Emile Abossolo M’bo), gênio bom, astucioso e vidente, que cai do céu para acompanhar esse incrível “Tour de France de duas crianças”: Fred e Sandrine. Fred (Stanislas Merhar), jovem mecânico, grande coração e pouca cabeça. Sandrine (Raphaële Godin), doce, amante e forte, cuja paciência tenta prevalecer sobre os fantasmas auto-destrutivos do companheiro. Com um gênio absoluto da ruptura de tom, Brisseau transforma a fuga derrisória desse simpático trio em um singular rodeio didático.

Sob as peripécias rocambolescas de um roteiro que escapa a todas as convenções se apresenta um estranho romance de aprendizado, tocante e burlesco, fabuloso e saboroso. A candura e a astúcia, a violência e a generosidade se conjugam ali com um frescor desarmante. A narrativa flui como uma correnteza de ondas matizadas, jorra, repercute, desacelera, tranqüiliza-se em paisagens como que saídas do começo do mundo (ah! O esplendor dos prados de Lubéron), retoma os rumos, infatigável... Corremos, sonhamos, desorientamo-nos sob um ritmo vertiginoso, à maneira de O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou, Jean-Luc Godard, 1965).

Nas entrelinhas dessas imagens idílicas ou febris, a fábula fala bem do real, ou, mais exatamente, das nossas relações duvidosas com o real; do dinheiro, sobretudo, esse mestre pérfido que faz andar o mundo, com pequenas sandálias ou em carros de luxo. Felizmente, na falta do Bom Deus, ainda há às vezes algum mágico astuto para colocar o rei-dinheiro a serviço de incorrigíveis desajuizados; às vezes, até mesmo, algumas avós sábias para permitirem aos pequenos descalços brincar, enfim, com os carros esportivos. No paraíso verde onde se reencontram os amores infantis.

Nota:

[1] Trocadilho com o título original do filme (n.d.t.).

(Études, março 2000, pp. 385-386. Traduzido por Matheus Cartaxo).

 

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