PREFÁCIO


(esta edição é dedicada a Peter von Bagh)


A presente edição começa com uma pauta dedicada à obra do cineasta francês Jean-Claude Brisseau e termina com um texto sobre Cavalo Dinheiro, último trabalho do realizador português Pedro Costa.

Entre as duas extremidades, uma homenagem a Marc C. Bernard, integrante do grupo de cinéfilos parisienses mac-mahonianos, falecido no início deste ano, e a disponibilização de uma tradução inédita para o português do manifesto de Louis Skorecki, Contra a Nova Cinefilia, além de inúmeros textos sobre filmes de diversas épocas que constam no nosso Jornal.

Acreditamos que fazendo esse percurso, o leitor (do mais exigente àquele que nos lê por simples distração, do que nos acompanha desde o início ao que tomou conhecimento do nosso trabalho apenas recentemente) poderá conhecer a obra de cineastas e de outros tipos de personalidades devotadas ao cinema, cujos trabalhos de algum modo se integram, se informam mutuamente, e finalmente se completam (Manoel de Oliveira dedica ao assunto um texto formidável).

Uma leitura detida e atenta poderá detectar ressonâncias e prolongamentos insuspeitos entre as palavras de Marc C. Bernard sobre o filme Propriedade Privada e o tom dos filmes de Jean-Claude Brisseau, ou entre o texto escrito por Carl Dreyer sobre o trabalho efetuado em Ordet e o método desenvolvido por Brisseau de A Vida Como Ela É a A Garota de Lugar Nenhum; entre o que Jean-Louis Noames, pseudônimo de Louis Skorecki à época, escreveu sobre Jacques Tourneur no início dos anos 1960 e o que cabe escrever sobre Pedro Costa em 2014; entre as máximas de Jean Grémillon e as provocações de Luc Moullet, ou ainda entre o “caráter de necessidade incontornável análogo à ebulição da água a cem graus” suscitado por Michel Mourlet para descrever a arte de Raoul Walsh e a materialidade enaltecida por Mário Fernandes no seu texto sobre Wolfram, a Saliva do Lobo, um dos grandes filmes realizados em Portugal nos últimos 20 anos. Inúmeros exemplos, enfim, de elos possíveis que cada leitor se ocupará de estabelecer, de arriscar, de concretizar ou de abandonar.

Não fazemos nada de realmente novo, mas talvez façamos nossa parte de maneira um tanto diversa. Trata-se um pouco não de continuar, mas de fazer ao nosso modo, com as nossas possibilidades (com as nossas limitações), o trabalho que - um exemplo entre tantos - Michel Delahaye fazia em 1967 quando, ao escrever sobre “a urgência da arte” na obra do maior cineasta da época, ousava começar seu texto comparando o epígono ao prógono, Jean-Luc Godard a Sacha Guitry. Se mais tarde as distâncias são estabelecidas e as divergências notadas, isto não impede que o escritor tenha a capacidade de (re)traçar as linhas de força que ligam a inovação à tradição. Oliveira dixit: “(...) quando apareceu o cinema, este já existia desde sempre, não como máquina, mas como cinema. Por isso dizemos que o Cinema é sem tempo, pois que ele é fruto de todas as artes, e do espírito que as anima (...)”.

Annette Michelson, no texto que escreveu sobre 2001, fala sobre o célebre corte que transforma o osso em nave espacial. Ela estabelece uma relação entre o “gesto inspirado” do primata e a “intuição extraordinária” de Méliès, na realização do cinema como “um instrumento da imaginação”. No intervalo entre o primata e a criança estelar temos a história da consciência humana, e é provável que toda e qualquer narrativa possa ser descrita como um ponto entre as duas etapas. É a este intervalo, portanto, que devemos direcionar nosso olhar, e é nele que devemos exercitar nossa liberdade e nosso rigor, perceber ciclos e desenvolvimentos, mas reconhecer também que, “apesar de as coisas poderem ser as mesmas novamente”, elas, graças a alguns filmes, “nunca serão exatamente as mesmas de novo”. A luz da “inovação” pode surgir a qualquer momento, inclusive através do passado, como é o caso justamente com Brisseau e Costa: o que importa é que olhemos para o passado da perspectiva correta, ativamente. Em resposta a alguém que afirmou sabermos mais que os autores clássicos, Eliot disse: “Sim, e eles são precisamente o que sabemos”. É um pouco desta sensação que tentamos dar conta nesta edição.

Quanto ao resto, talvez caiba um ou outro esclarecimento. O arco descrito pela edição dá uma idéia do que entendemos por cinema contemporâneo: Brisseau lançou seu último filme há poucas semanas, Costa tem sido motivo de atenção desde o prêmio obtido em Locarno, Wolfram ainda permanece praticamente invisível, mas não se trata, para nós, de permanecer na superfície, restritos ao “cinema que se faz hoje”, e sim de prosseguir com uma ação em profundidade, ou seja, lidar com todo o cinema feito até hoje. Ao mesmo tempo, uma leitura minimamente desenvolta dos textos de Marc C. Bernard afasta de uma vez por todas o lugar comum que faz com que ainda hoje se veja o mac-mahonismo como um monstro sisudo e limitado, entre Aristóteles e Hegel, quando na realidade essa escola deve tanto a Bataille como a Brecht, tanto a Borges como a Valéry. No mais, o fascínio de Cottafavi por Buñuel, a desilusão que recobre a inteligência viva e penetrante de Skorecki, o desapego iconoclasta de Moullet ou ainda, e talvez principalmente, as palavras justíssimas de Rossellini e de Straub sobre as imposturas de nossa época nos indicam muito melhor quais questões deveriam vigorar uma ampla análise da produção contemporânea que a mera prestação de contas a uma atualidade que nos parece bastante aquém de tudo isso. Ou será que deveríamos nos forçar a falar sobre o que nos desagrada no Tabu de Miguel Gomes, em O Lobo de Wall Street ou O Som ao Redor? Talvez, caso este dispêndio de energia não servisse para aquecer uma máquina publicitária já muito bem alimentada, responsável por um movimento incessante que tudo carrega indistintamente, e ao qual, por isso, preferimos a busca por certos pontos fixos que impeçam de fazer da história dessa arte um acúmulo de fantasmas.

É desta forma que gostaríamos de nos sujeitar ao crivo do leitor.

 

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2014/2015 – Foco