AS SOMBRAS
por Luan Gonsales
Um conto brechtiano de desilusão e perda que se passa em um apartamento de banlieu onde vive uma família numerosa: o terceiro longa-metragem de Jean-Claude Brisseau é um filme claustrofóbico, modesto e cruel quase que inteiramente rodado no mesmo cenário que veremos mais tarde em De bruit et de fureur, Os Indigentes do Bom Deus e nas cenas iniciais de Um Jogo Brutal. Nessa área periférica de Paris, que agrega conjuntos habitacionais às margens do perímetro urbano, Brisseau vai encenar suas lições: esses prédios filmados contra um céu onipresente ganham uma estatura cósmica, entre o homem e mundo; o que lá é retratado, “uma luta pelas coisas brutas e materiais sem as quais não existem as refinadas e espirituais”[1], é nada menos que a história dos homens desde os seus primórdios.
Durante o almoço de comemoração do casamento da filha mais velha a mãe resolve que deixará de lado os afazeres de dona de casa e se dedicará ao sonho perdido de sua juventude: ser uma cantora de sucesso. Tudo, então, virá à tona: o sonho esquecido, a pessoa que se amava, a filha que se vai... A vida doméstica é tida como uma prisão para a mãe, que não consegue escapar de sua situação - financeira, social, espiritual. O pai, proletário, que trabalha dez horas por dia numa fábrica e leva três no transporte público, não sabe responder às questões da filha, que o indaga se Deus existe.
Em Brisseau a beleza do mundo e a tragédia da existência costumam se revelar pela experiência de uma aprendizagem que traz à luz uma verdade até então oculta, e nesse aspecto Les ombres - belo e sucinto título - é mais uma história que narra de que forma a razão precisa passar por uma prova para progredir das sombras rumo à sua própria elucidação. Primeira lição materialista: assim que as aulas de canto começam, a casa entra em colapso - não há dinheiro para comprar comida (as aulas são caras), a casa fica suja, a roupa não é lavada, a cama segue desarrumada (lembremo-nos do percurso das aprendizagens que vemos em Um Jogo Brutal e Céline, para o qual Hegel daria a seguinte formulação: “Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo.”). Tudo em Brisseau, um dos cineastas mais espirituais e religiosos, manifesta-se curiosamente de maneira muito concreta, sem mediações, numa articulação muito bem ajustada entre os personagens, suas relações e uma descrição que se ocupa de todos os pormenores dos seus cotidianos: o filho com o walkman o tempo todo sem se importar com nada; o pai e a filha mais nova tentando ligar a máquina de lavar enquanto a mãe ensaia seu canto; a mãe delirante - o trágico e o cômico surgem de mãos dadas certas vezes - falando sozinha sobre seus próximos passos rumo ao sucesso. Se esse trágico e esse cômico se entrelaçam é porque a personagem é a expressão sintética de sua essência: é visível que a mãe nunca alcançará o sucesso; há qualquer coisa de patético na sua busca e é necessário que isto apareça em cena, de maneira precisa e consistente. Uma moral de cineasta, então, é solicitada e assim se manifesta: jamais reforçar uma idéia com o único fim de prová-la; nenhuma tese levantada somente para legitimar um ponto que mais tarde será abandonado em prol de outro; recusa da demagogia que se sustenta por uma astuta e eficaz manipulação de marionetes; nada do que habitualmente vemos em um cinema bem-pensante, de boa consciência e bem intencionado propensamente “de esquerda”. O trabalho do cineasta consistiria, então, em inscrever com exatidão as discrepâncias da condição humana em todas as camadas da realidade física na qual Brisseau situa o embate fundamental da sua obra: a presença do mundo em toda a sua anterioridade, em toda a sua ancestralidade, a qual fatalmente traz consigo todos os seus fantasmas, choca-se com a degeneração brutal que desviou esse mundo de sua origem. A ordem e a desordem desse mundo (incoerência de toda uma ordem social, conseqüência direta de um sistema econômico sórdido, injusto e irreversível; os contornos da dor individual, que motiva tanto a inquietude que anima algumas vidas como a abdicação com que outras se desapegam de todas e quaisquer determinações) são inscritas num espaço celeste, eterno, litúrgico, que mais tarde reencontraremos em Céline, em À Aventura, e que é o espaço de predileção do trágico no cinema de Brisseau.
Se começamos o parágrafo anterior descrevendo a passagem das sombras à luz, que determina o princípio da conquista da razão no cinema de Brisseau, faltou-nos precisar o que torna possível essa passagem. Papel reservado à poesia: é por ela que se dá o aprendizado em Um Jogo Brutal (Jacques Prévert), O Som e a Fúria (Paul Verlaine), chegando ao cúmulo de em Os Indigentes do Bom Deus vermos o protagonista, um mecânico analfabeto tornado assaltante pelas circunstâncias, aprender a ler mediante leituras da poesia de Prévert. Esse aprendizado presente em todos os filmes reflete o progresso de uma consciência que se descobre pouco a pouco e que, antes de se abrir totalmente para o mundo, precisará confrontar-se com o poder régio do mundo material: o dinheiro. Não se trata, então, apenas do despertar de uma consciência de classes (Indigentes novamente, mas também Coisas Secretas), visto que esta etapa será eventualmente superada pela de um conhecimento maior, mais amplo, último, que corresponde ao próprio papel do homem no universo. “Somos tão pequenos diante de tudo”, diz um de seus personagens...
Mas tudo isso seria postiço ou mesmo artificial se a proposta não se integrasse perfeitamente à forma do filme. Les ombres é, assim, um filme de guerrilha: grande cineasta, Brisseau usa a escassez de meios recorrente nos seus primeiros filmes a seu favor, veiculando com rigor, propriedade e justeza as ambições descritas acima. Somos impressionados pela relação intrínseca entre os meios primitivos e rudimentares utilizados pelo diretor e o alcance cósmico do filme. Em Les ombres ainda não há a luz aurática ou os travellings eróticos e líricos que caracterizarão seus trabalhos posteriores, mas o sentido de necessidade e urgência que também víramos em A Vida Como Ela É, e que mais tarde veremos em A Garota de Lugar Nenhum, já se faz presente, com Brisseau manejando o fundamental de sua técnica (uma construção compacta e lacunar que precipita o drama em um ritmo lancinante) com uma sobriedade admirável, a beleza residindo na precisão com que é descrita a ação. O sistema de produção se funde no próprio sistema estético do filme; aqui, a escassez de recursos, longe de limitar seu método, estimula sua inteligência: cenários reduzidos; simplicidade e planificação melódica baseada no campo/contracampo; vigor de duração, transparência e concisão cênicas; preeminência e nudez do trabalho do ator; ênfase na cena e não no plano; linearidade e consistência. Essa disciplina - que teve seu apogeu no filme de pequeno orçamento norte-americano e que foi revigorada graças ao aporte da Nouvelle Vague, robusteceu-se posteriormente na sua forma mais compacta pelas mãos de cineastas como Luc Moullet, Paul Vecchiali e o grupo Diagonale[2], Rainer Werner Fassbinder e o duo Straub-Huillet -, é ela a verdadeira modernidade dos grandes cineastas de nosso tempo. Privados do financiamento dos grandes estúdios, sem orçamento, os cineastas vão à série B. Em 1982, Les ombres; em 2012, com 62 mil euros, filmando em seu próprio apartamento e pela primeira vez com equipamento digital, A Garota de Lugar Nenhum.
A austeridade desse método de criação, quando cultivada com afinco e na exata extensão que a permitirá frutificar, recompensa a autonomia da imaginação daquele que a semeia. É o que vemos no plano final de Les ombres: após contar seu sonho, a jovem Nathalie contempla o céu. É um raro momento de iluminação neste filme em que ficamos trancados nesta casa descrita como prisão. O céu, o sol, as estrelas: figuras já conhecidas deste cinema onde a absoluta transparência preserva o mistério do homem, do Universo e de suas leis, um cinema onde o mistério e o conhecimento se fecundam reciprocamente, a fim de estimular a energia vital da obra que funda sua grandeza; um cinema de luz e de sombras.
Notas:
[1] Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História, 1940, tradução de Sérgio Paulo Rouanet, in Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp 222-232.
[2] Produtora fundada pelo cineasta Paul Vecchiali. Participou de ou possibilitou a realização de filmes de Jean-Claude Guiguet, Jean-Claude Biette, Noël Simsolo, Marie-Claude Treilhou, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Jacques Davila, Michel Delahaye etc.
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