BODA BRANCA
Noce blanche não é o típico relato do professor que se perde loucamente de amores pela aluna proibida e o conseqüente desafiar de todas as normas da sociedade até a tragédia. Muito menos o reconhecimento de tal impossibilidade e a desilusão da aceitação e regresso à vida rotineira de antes da fugaz aventura. François Hainaut, o professor representado por Bruno Cremer no quarto longa-metragem de Jean-Claude Brisseau, entra no filme a matar com as perguntas sobre o inconsciente e o seu sentido psicológico. Nenhum aluno parece responder coisa com coisa, perante insistência tão cabal, perante aquele quadro que os parece olhar dividido nos conceitos de Descartes e Espinosa. Na cena seguinte, de saída da escola, o professor descobre na parada de ônibus e ladeada de pessoas que a socorrem, a impertinente aluna que ainda na cena anterior tinha perturbado a aula e a sua questão fundamental. Decide tratar dela e por insistência da vítima leva-a para a sua estranha casa. Os caminhos e as relações começam-se a tornar ínvios, a aluna que todos os outros professores querem expulsar decide tornar-se brilhante, a obsessão mútua radicaliza-se e apresenta-se inafastável, a intimidade regrada do professor abala-se em oposição ao desprendimento da aluna.
Se a aproximação é tão abrupta como fascinada e subseqüentemente lenta, como alguém que não quer acreditar no que descobriu, a consumação, o tocar dos corpos nus para uma possessão que não se deixa ver, nesse halo de luz azulada de anjos e demônios que desde a abertura até ao imenso oceano tudo avulta, é menos por um poder erótico e onívoro dos corpos e da sedenta carne, mas de maneira absoluta pela descoberta de um semelhante que se julgava quimérico, construção ideal pela filosofia como disciplina em que os dois estão envolvidos, e daí até à perdição pelo peso inagüentável da verdade que ambos declaram ter acordado advém uma inexorável e fatalista corrida. Apenas com dezessete anos ela já está profundamente consciente da futilidade da vida humana... e parte para o que realmente importa - reconhece inexpressivo o professor à sua esposa, no momento das mais claras e assim mesmo soturnas evidências. Desnudamento e simplificação que torna impraticável a suposta evidência da vida aceitada do professor para se ir deixando entregar ao clamor de outro tipo de evidência superior. O desespero é uma forma de vaidade disfarçada, é ele quem o diz à aluna num momento em que ainda não a tinha vislumbrado inteira, e rampa para a aceitação de um tipo de destino que também lá se tenta definir.
Se desde que se encontraram - mas verdadeiramente depois de se terem claramente visto e revelado - as incertezas não tiveram mais aval nem força, mesmo se ele invocou os paradigmas da sociedade e ela entrou na novela dos ciúmes e logo na devastação, se o Paraíso pessoal na medida e no tempo daqueles cintilantes passeios de barco e montanhas fulgentes para amantes sozinhos os terem acolhido, tal bênção que entenderam como a libertação suprema é a sua condenação. Libertados desde o encontro dessas almas que se espraiam ilimitadamente para lá dos corpos belos ou não, resolutamente condenados. Porque é desde que se começa a escutar as crenças de Nietzsche, essas de que o pensamento puro não existe, da mistificação e do metafísico como alguém que escolheu a morte, que as coisas concorrem para o tudo ou nada. Abriu-se com Freud e as memórias e passados enterrados, ele jurou impossivelmente à sua mulher e ela falou-lhe da Mãe suicida, do Pai psicólogo e dos companheiros clandestinos, passou-se pela Simone Weil da espera de Deus, e acabou-se na invenção de uma moral com M maiúsculo onde se tenta esconder o inconsciente, precisamente. Eu não posso suportar isso. Eu não posso suportar a vida. Então eu invento outra muito concreta, com razões mundanas. Essa construção filosófica toda somente serve para esconder uma existência miserável.
Depois desse olhar para dentro, desse falar para si, dessa conclusão última, ele explode, vai literalmente atrás dela, esbofeteia-a, ignora-a, agarra-a, assume-se. O final já estava escrito nessa condenação dos que viram demais e se queimaram, os tais que ousaram olhar defronte o sol do absoluto. Assim esse quadro integral em que ele a aceita morta por debaixo dos lençóis, no derradeiro vislumbre, só tem par com as grandes composições renascentistas que assumem que a sacralidade do transcendente efêmero só se assume plenamente para além dele. O OCEANO, FRANÇOIS, EXISTE O OCEANO. Escrito deste modo, em capitais, e a passagem para a contemplação da eternidade. O incompreensível, a majestade, toda a justificação por si. Tal e qual como o Raio Verde (Le rayon vert, 1986) de Eric Rohmer que terá assomado a alguns e a outros jamais. Observa e simplifica, é o que diz o mesmo Cremer para a eternidade noutro filme de J.-C. B. E o esplendor. Os altos. A mais incandescente das equações.
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2014/2015 – Foco |