WOLFRAM, A SALIVA DO LOBO, Joana Torgal & Rodolfo Pimenta, 2010
por Mário Fernandes


“Filmagem de fatos. Montagem de fatos. Difusão dos fatos. Agitação pelos fatos. Propaganda mediante os fatos. Murros de fatos.
Tempestades de fatos!
Massa de fatos.
Furacões de fatos.
E pequenos fatos soltos.
Contra o cine-bruxaria.
Contra o cine-mistificação.
A favor de uma autêntica cinematização, um autêntico cine-difusão dirigido aos operários e camponeses da URSS.”

Uma Fábrica de Fatos, 1926, Dziga Vertov.

Nesta maravilhosa e portentosa obra-prima do cinema, o Pimenta e a Joana acompanham o processo de extração e transformação do minério das Minas da Panasqueira. Sem explicações em voz off, sem diálogos, sem cair na confrangedora antropologia audiovisual tão em voga, sem a armadura patética do realizador etnográfico, souberam negar as pretensas e idiotas continuidades narrativas documentais.

Apostaram numa “montagem de atrações”, tributária de Eisenstein e Vertov (ressalvando as diferenças entre os dois realizadores), em que todos os planos criam sensações, ressonâncias emocionais, jogos de elementos, matérias e maquinações que geram estímulos e reações.

Assim, através de metamorfoses sucessivas da matéria, em movimentos ascendentes, descendentes e dispersivos, os dois realizadores fraturam o bloco bruto da matéria em partículas resistentes à análise, ao controle; ninguém do lado de cá consegue juntar as peças nem reconhecer os materiais, só a Beralt Tin dá um peso e uma medida e um preço de mercado como filmam com ironia o Pimenta e a Joana. Na Realidade, o “preço simbólico” ou o “símbolo preçado” é fraturável e não faturável, consome-se em galerias subterrâneas, criptomanias, túneis, tubos de ensaio, cavidades, labirintos, licantropias, máquinas, decomposições, sombras, explosões, ângulos insólitos, curto-circuitos etc... O minério desmultiplica-se numa plural trasladação simultânea. Na “cripta fílmica” da mina os segredos só se revelam pela fratura e a cripta constrói-se pela violência emocional e material dos fragmentos.

Realce-se a verdadeira partitura musical que a Joana e o Pimenta criaram a partir dos sons de todo o processo. Todo o filme é uma deslumbrante sinfonia cinematográfica (vide Walter Ruttmann) porque a montagem tem sempre por base o som emocional característico de um dado fragmento, provocando espetaculares vibrações rítmicas de “work in progress”.

Por oposição à resistência arquitetônica, aqui vemos o fluir da matéria. Assim pululam as formas vivas em todos os planos, porque uma obra de arte, tal como a natureza, só existe como forma, e quem reclama um conteúdo independente da forma só dimensiona a sua real insignificância. No grande filme do Pimenta e da Joana a forma da matéria discursa sobre si própria. Por outro lado, os realizadores provocam bem a clivagem do espaço geográfico para abrir lugar a um espaço mental estonteante: travellings alucinantes nas galerias da mina, os “wolfram’s men” que atravessam os corredores subterrâneos como zombies, a montagem rítmica vertiginosa e uma fabulosa abstração, sem nunca perder o pé na bruta Realidade. Chegamos ao ponto de imaginar todo um processo fílmico, com negativos de película, projetores, bobinas e o laboratório experimental de risco que será sempre a casa moderna do cinema. A montagem do filme é a desmontagem do minério.

Se todo o realizador é um violador de sepulturas, extrair o minério do subsolo também é extrair o imaginário oculto, as forças libidinosas e inconscientes do trabalho (a saliva do lobo), animar os objetos perdidos ou os seus despojos, injetar vida sob a sepultura.

Da arte rupestre à grande pintura abstrata, do traço hieróglifo que comove o espaço ao dispersar de tintas como Jackson Pollock, os dois realizadores transformam o “estúdio da mina” nalgumas das mais belas pinturas que já vi. Talvez a melhor metáfora pictórica do filme seja a mancha de tinta (escória que o caminhão liberta) que se vai espalhando nas escombreiras até formar a silhueta de um homem.

E neste filme de filão inesgotável, ainda há alguns dos mais belos e potentes falsos-raccords que vi e toda a poética industrial de alguns dos melhores trabalhos de Flaherty, Bert Haanstra, Peter Nestler, Vittorio De Seta, Joris Ivens ou Pollet. Bem longe o materialismo de picha murcha de Bitomsky (as bufas B-52) e seus acólitos acadêmicos (vide David Phelps). A Realidade num grande filme como este passa sempre pela transfiguração da sua topografia e a verdade ou é poética ou torna-se folclore para turistas.

Se todo o filme promove a cisão da matéria, evocando a unidade perdida da natureza, no final há uma possibilidade de reconciliação. Se a arte fílmica do “wolfrâmio” compete com a natureza durante todo o filme, no final alia-se a ela. Já não é um “vendaval de volfrâmio” como escrevia Fernando Namora, mas o regresso do vento às árvores nos primeiros filmes de Lumière. É a mais bela redenção da Realidade primordial, com uma árvore queimada tingida de vermelho e a canção comovente dos mineiros.

Na cinematografia recente portuguesa temos realizadores tão diferentes como Pedro Costa, Manoel de Oliveira, Manuel Mozos e Rita Azevedo Gomes. Hoje podemos acrescentar o Rodolfo Pimenta, a Joana Torgal e pouco mais. Meto as mãos no fogo: daqui a 50 ou 100 anos, Wolfram, a Saliva do Lobo será um clássico do nosso cinema. E quem quiser ir mais além, tem de passar primeiro por este filme. Uma câmera. Um tripé. Um gravador. Dois amantes. Fazer um filme é isto: esventrar a mina para encher um ventre de amor.

Filmar. Filmar sempre. Até aparecer no obituário do Jornal do Fundão.

(outubro 2010)

 

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