A pintura e o cinema
Os filmes sobre arte, pelo menos aqueles que utilizam a obra para fins de uma síntese cinematográfica, como os curta-metragens de Emmer, o Van Gogh de Alain Resnais, R. Hessens e Gaston Diehl, o Goya de Pierre Kast ou o Guernica de Alain Resnais e R. Hessens, provocam às vezes, nos pintores e em muitos críticos de arte, uma grande objeção. Eu a ouvi até mesmo na boca de um Inspetor Geral de desenho da Educação Nacional, depois de uma apresentação de Van Gogh.
Ela se reduz essencialmente à seguinte conclusão: para utilizar a pintura, o cinema a trai, e isso em todos os planos. A unidade dramática e lógica do filme estabelece cronologias ou vínculos fictícios entre obras por vezes muito afastadas no tempo e no espírito. Em Guerrieri, Emmer chega até mesmo a misturar os pintores, mas o embuste é pouco menos grave quando Pierre Kast introduz fragmentos dos Caprichos para sustentar sua montagem dos Malheurs de la guerre ou quando Alain Resnais brinca com as fases de Picasso.
Mesmo respeitando escrupulosamente os dados da história da arte, o cineasta basearia ainda seu trabalho numa operação esteticamente contra a natureza. Ele analisa uma obra sintética por essência, destrói sua unidade e opera uma nova síntese que não é a desejada pelo pintor. Poderíamos nos restringir a lhe perguntar com que direito.
Há coisas mais graves: para além do pintor, a pintura é traída, pois o espectador acredita ver diante dos olhos a realidade pictórica, quando o forçam a percebê-la conforme um sistema plástico que a desfigura profundamente. Em primeiro lugar, em preto-e-branco: o filme colorido não trará sequer uma solução satisfatória, a fidelidade não sendo absoluta e a relação de todas as cores do quadro participando na tonalidade de cada uma delas. Por outro lado, a montagem reconstitui uma unidade temporal horizontal, geográfica de certo modo, quando a temporalidade do quadro - à medida que reconhecemos que ele tem uma - desenvolve-se geologicamente, em profundidade. Enfim, e principalmente (este argumento mais sutil é pouco evocado, mas é, no entanto, o mais importante), a tela destrói radicalmente o espaço pictórico. Como o teatro pelo proscênio e pela arquitetura cênica, a pintura opõe-se à própria realidade e, sobretudo, à realidade que representa, pela moldura do quadro que a cerca. Com efeito, não poderíamos ver na moldura do quadro apenas uma função decorativa ou retórica. A valorização da composição do quadro é somente uma conseqüência secundária. Bem mais essencial, a moldura tem por missão, se não criar, pelo menos salientar a heterogeneidade do microcosmo pictórico e do macrocosmo natural no qual o quadro vem se inserir. Daí a complicação barroca da moldura tradicional, encarregada de estabelecer uma solução de continuidade geometricamente indefinível entre o quadro e a parede, isto é, entre a pintura e a realidade. Daí também, como explicou bem Ortega y Gasset, o triunfo da moldura dourada “pois é a matéria que produz o máximo de reflexo e que o reflexo é esta nota de cor, de luz que não traz em si nenhuma forma, que é a pura cor informe”.
Em outros termos, a moldura do quadro constitui uma zona de desorientação do espaço. Ao da natureza e de nossa experiência ativa que orla seus limites externos, ele opõe o espaço orientado do lado de dentro, o espaço contemplativo e somente aberto para o interior do quadro.
Os limites da tela não são, como o vocabulário técnico daria por vezes a entender, a moldura da imagem, mas a máscara que só pode desmascarar uma parte da realidade. A moldura polariza o espaço para dentro; tudo o que a tela nos mostra, ao contrário, supostamente se prolonga indefinidamente no universo. A moldura é centrípeta, a tela centrífuga. Conseqüentemente, se invertendo o processo pictórico, a tela é inserida na moldura, o espaço do quadro perde sua orientação e seus limites para impor-se à nossa imaginação como indefinido. Sem perder as outras características plásticas da arte, o quadro se encontra afetado pelas propriedades espaciais do cinema, ele participa de um universo virtual que resvala de todos os lados. Foi sobre tal ilusão mental que Luciano Emmer se baseou nas fantásticas reconstruções estéticas que estão em grande parte na origem dos filmes de arte contemporâneos e notadamente do Van Gogh de Alain Resnais. Neste último filme, o realizador pôde tratar o conjunto da obra do pintor como um único e imenso quadro no qual a câmera é tão livre em seus deslocamentos quanto em qualquer documentário. Da “rua de Arles”, “penetramos” pela janela “na” casa de Van Gogh, e nos aproximamos da cama com a colcha vermelha. Do mesmo modo Resnais ousa realizar o “contracampo” de uma velha camponesa holandesa entrando em sua casa.
É obviamente fácil achar que tal operação desfigura radicalmente a maneira de ser da pintura e que é melhor Van Gogh ter menos admiradores, mas que escondam exatamente o que admiram - e que essa difusão cultural, que começa por destruir seu objeto, é singular.
Tal pessimismo não resiste, no entanto, à crítica, em primeiro lugar de um ponto de vista contingente e pedagógico, e menos ainda de um ponto de vista estético.
Pois, ao invés de censurar o cinema por sua impotência em nos restituir fielmente a pintura, não poderíamos ficar maravilhados, ao contrário, por termos enfim encontrado o sésamo que abrirá a milhões de espectadores a porta das obras-primas? Com efeito, a apreciação de um quadro e o prazer estético são quase impossíveis sem uma iniciação preliminar do espectador, sem uma educação pictórica que lhe permita realizar o esforço de abstração pelo qual o modo de existência da superfície pintada se distingue expressamente do mundo exterior natural. Até o século XIX, o álibi da semelhança constituía um mal-entendido realista pelo qual o profano acreditava poder entrar no quadro, e a anedota dramática ou moral multiplicava ainda as apreensões para o espírito inculto. Sabemos que não é o que acontece hoje, e o que me parece bastante decisivo nas tentativas cinematográficas de Luciano Emmer, Storck, Alain Resnais, Pierre Kast e outros, é que eles conseguiram precisamente “solubilizar”, por assim dizer, a obra pictórica na percepção natural, de modo que basta estritamente ter olhos para ver, e nenhuma cultura, nenhuma iniciação é requerida para apreciar imediatamente, e poderíamos dizer, à força, a pintura, imposta ao espírito pelas estruturas da imagem cinematográfica, como um fenômeno natural.
Que os pintores considerem que não se trata de modo algum de uma regressão do ideal pictórico, de uma violação espiritual da obra e de um retorno a uma concepção realista e anedótica, pois essa nova vulgarização da pintura não incide essencialmente no tema e de modo algum na forma! O pintor pode continuar a pintar como quiser, a ação do cinema é externa, realista, é claro, mas - e isso é uma descoberta imensa com a qual todo pintor deveria se alegrar - de um realismo de segundo grau, a partir da abstração do quadro. Graças ao cinema e às propriedades psicológicas da tela, o signo elaborado e abstrato reganha para qualquer espírito a evidência e o peso de uma realidade mineral. Quem não vê, então, que o cinema, longe de comprometer e desfigurar outra arte, está, ao contrário, salvando-a com a devolução da atenção dos homens? De todas as artes modernas, a pintura é talvez aquela em que o divórcio entre o artista e a imensa maioria do público não iniciado é o mais grave. A não ser que se confesse publicamente um mandarinismo sem saída, como não se felicitar por ver a obra restituída ao público com a economia de uma cultura? Se essa economia choca os partidários do malthusianismo cultural, que eles pensem na possibilidade de nos permitir, talvez, fazer também a economia de uma revolução artística: a do “realismo”, que para restituir a pintura ao povo se comporta de maneira bem diferente.
Quanto às objeções puramente estéticas, diferentes do aspecto pedagógico do problema, elas partem, evidentemente, de um mal-entendido que faz exigir explicitamente do cineasta algo diferente do que ele propõe. Na verdade, Van Gogh ou Goya não são, ou não são apenas, uma nova apresentação das obras desses pintores. O cinema não desempenha de modo algum o papel subordinado e didático das fotografias num álbum ou das projeções fixas numa conferência. Os próprios filmes são obras. A justificação deles é autônoma. Não se deve julgá-los somente com referência à pintura que eles utilizam, mas em relação à anatomia, ou antes, à histologia desse novo ser estético, que surgiu da conjunção da pintura e do cinema. As objeções que formulei há pouco são apenas, na realidade, a definição das novas leis oriundas desse encontro. O cinema não vem “servir” ou trair a pintura, mas acrescentar-lhe uma maneira de ser. O filme de pintura é uma simbiose estética entre a tela e o quadro como o líquen entre a alga e o cogumelo. Indignar-se com isso é tão absurdo quanto condenar a ópera em nome do teatro e da música.
Entretanto, é verdade que o fenômeno comporta algo de radicalmente moderno e da qual essa comparação tradicional não dá conta. O filme de pintura não é o desenho animado. Seu paradoxo é utilizar uma obra já totalmente constituída e que basta a si mesma. Mas é justamente porque ele a substitui por uma obra em segundo grau, a partir de uma matéria já esteticamente elaborada, que ele lança sobre esta uma luz nova. Talvez seja na própria medida em que o filme é plenamente uma obra e, portanto, em que ele mais parece trair a pintura, que ele a serve melhor em definitivo. Prefiro muito mais o Van Gogh ou o Guernica, do que Rubens ou o filme De Renoir a Picasso, de Haesaerts, que pretendem ser apenas pedagógicos e críticos. Não somente porque as liberdades que Alain Resnais se dá conservam a ambigüidade, a polivalência de toda criação autêntica, quando a idéia de crítica de Storck e Haehaerts limita, assegurando-a, minha apreensão da obra, porém, mais ainda, e sobretudo, porque aqui a criação é a melhor crítica. É desfigurando a obra, quebrando suas molduras, atacando-se a sua própria essência que o filme a obriga a revelar algumas de suas virtualidades secretas. Sabíamos realmente, antes de Resnais, o que era o Van Gogh menos o amarelo? É claro que o empreendimento é arriscado e vislumbramos seus perigos nos filmes medianos de Emmer: dramatização artificial e mecânica correndo o risco de, em última análise, substituir a anedota ao quadro: isso porque o êxito depende também do valor do cineasta e de sua compreensão profunda do pintor. Existe uma crítica literária que é também uma recriação, a de Baudelaire sobre Delacroix, a de Valéry sobre Baudelaire, a de Malraux sobre El Greco. Não atribuamos ao cinema a fraqueza e os pecados dos homens. Terminados os prestígios da surpresa e da descoberta, os filmes de pintura valerão o que valerão aqueles que os fizerem.
(O Cinema: Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 172-177. Traduzido por Eloisa de Araújo Ribeiro)
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