PAIXÃO, Jean-Luc Godard, 1982
por Jean Collet


Falar, sem paixão, deste filme que divide. Há os que saem dele exasperados, os que saem com lágrimas nos olhos. Ultrapassar a cólera ou a emoção. Fugir da polêmica. Descrever. Mostrar o rigor, a força, a beleza. Tentar dizer o que alimenta neste filme. Alimentação rara, talvez vital. Um segredo, um tesouro por descobrir, necessário aos homens de hoje. Pôr-se de acordo ao menos sobre o respeito. É uma obra sincera, humilde, que atesta uma grande coragem. Vejamos.

A música e o ruído. O filme abre com o começo do Concerto Para a Mão Esquerda de Ravel. Vagas sombrias, surdas. Caos líquido que borbulha, incha, sobe, junta forças, procura a harmonia, quebra, explode por fim. Sabemos que Ravel escreveu esse concerto para o pianista Wittgenstein que havia perdido um braço na guerra. Música nascida da enfermidade. Não podemos desde logo ver nisso um padrão que o filme irá desenvolver? A arte nasceria da amputação. Como se fosse necessário perder alguma coisa para se tornar fecunda. Isabelle perde o seu trabalho. Jerzy procura a luz. Por tê-la perdido. Isabelle murmura: “Meu Deus, por que me abandonaste?”

Desde o início uma ameaça pesa sobre o filme. Nem é preciso conhecer a origem desta música: vem da noite, é uma dor que vai cantar. Triunfo da arte sobre a enfermidade. O filme deverá também triunfar sobre a gaguez de Isabelle, a voz freqüentemente rouca de Michel; o francês impreciso de Jerzy, polonês que tenta fazer um filme na França.

A música é cortada por ruídos. Grita-se muito em Paixão (Passion, 1982). Violência pavorosa de todas as situações. O escarcéu das máquinas (a fábrica), das viaturas, buzinadas, acelerações coléricas (ruas), diálogos despedaçados, lacônicos (estúdio, hotel, escadaria).

Pela primeira vez num Godard, fala-se muito pouco. Já não há palavras escritas, nem textos, nem citações. Eis o que se perdeu - entre outras coisas -, a linguagem. Podemos sobreviver quando somos amputados da linguagem? Não, diz o filme. A ver a fábula do índio que admite: “Eu, não compreender.” O que não lhe perdoamos é a ignorância da sintaxe (a regra da linguagem).

Paixão é um filme feito por um índio. Fora-da-lei da linguagem. O cinema, diz Jerzy, é um mundo sem lei. Godard acrescenta: “Mas feito com muita fé”[1].

Sem história. O que conta Paixão? Um cineasta polonês roda um filme em uma pequena cidade. Gostaria de compor quadros vivos inspirados em Rembrandt, Ingres, Delacroix, Goya etc. Como em Fellini Oito e Meio (Otto e mezzo, 1963), tudo corre mal. Desistência dos figurantes, angústia do realizador, ameaças do produtor. Jerzy tem uma ligação com Hanna (Schygulla), dona do hotel que aloja a equipe do filme. Hanna vive com Michel (Piccoli), patrão de uma fábrica onde trabalha Isabelle (Huppert). Isabelle decide despedir-se da fábrica, tenta trabalhar no filme, coisa que Hanna recusa, porque tem de despir-se. Jerzy deixa Hanna e vai para a cama com Isabelle. No final, numa bela manhã de inverno, Jerzy decide regressar à Polônia.

Falar sobre este filme, como vemos, não apresenta qualquer interesse, a não ser para mostrar que ele é, apesar de tudo, narrável. Jerzy - que não é exatamente Godard - manda passear todos aqueles que lhe perguntam: “Qual é a história?...”

Paixão, o filme de Godard, narra fragmentos de “histórias”. Momentos. Mas um filme, seja ele qual for, não é uma sucessão de momentos (planos, cenas)?

Para se contar uma história é preciso aceitar as leis da linguagem (narrativa, espetáculo, cinema). Ora, a arte (a criação) é sempre a procura de outras regras. Paradoxo. O artista é um funâmbulo que arrisca a sua vida - como o índio ou o bandido - pois transgride a lei (andar como toda a gente sobre a terra firme). Deve a sua salvação apenas à descoberta (à aprendizagem) e à ultrapassagem da lei comum. Andar sobre um fio, comer em um prato colocado entre as pernas dobrando o corpo para trás (cf. a servente do hotel), é vencer a gravidade através da graça (cf. diálogo: “Devíamos falar de política, e só falamos disso, da graça”)[2].

Assim não se pode julgar Godard pelas suas recusas, suas transgressões, suas amputações (atitude romântica, esnobe e estéril: é belo porque é diferente). Não, é belo porque se faz outra coisa, e essa coisa resulta[3].

Os mestres. Jerzy encena quadros vivos. Admirável e minuciosa reconstituição de obras-primas. Pregas dos trajes, matizes das cores, rostos, luzes e sombras estão lá, com uma fidelidade estupenda. Com o frêmito da vida, a brevidade da visão. Sem complacência. Sem parar. Em andamento.

Então nos perguntamos: por que este humilde trabalho em que o cinema se limita a reproduzir a criação dos outros (pintura e música dos mestres)?

Lembramo-nos de O Desprezo (Le mépris, 1963, do qual este filme está tão próximo). O jovem roteirista perdido diante da encomenda de adaptação da Odisséia. Perto dele, Fritz Lang, o velho mestre, retomando o trabalho e filmando quadros vivos.

Godard recusa as leis (o modelo) da narrativa para procurar outras regras (de outros mestres), respeitantes à pintura e à música. Vamos mais longe. Contar histórias é sempre, mais coisa menos coisa, “fazer histórias”, reproduzir os dramas e a violência da vida, os mal-entendidos, os “já não te amo”, a crueldade das relações humanas, a desavença, a disputa, o “ruído”, como diria Michel Serres. Tal violência é filmada aqui, mas do lado dos quadros vivos. Temos a vida (a fábrica, os amores) e a arte (o estúdio de cinema). Godard diz: “o mundo e a sua metáfora.” Logo o verdadeiro propósito do filme não tem a ver com as histórias de sexo, nem com as lutas sindicais, nem mesmo com a elaboração de um filme. É o que há entre todos esses elementos. É o que faz com que o caos, o ruído, o horror, a violência se tornem visíveis, apresentáveis, harmoniosos, assimiláveis pelo espírito humano (questão indecente nestes tempos em que a informação = pornografia. O filme choca também por isso).

O réquiem. Para Godard, há de um lado a agitação insensata, o tumulto; do outro, o suspense (a ação retida), um retardamento que imita a morte e o seu repouso (“Agnus Dei, dona eis requiem”, murmura Isabelle)[4].

A arte, que para Godard se confunde com o trabalho, tem “os mesmos gestos que o amor, não necessariamente a mesma velocidade”. Já, em Salve-se Quem Puder (Sauve qui peut (la vie), 1980), ele filmava uma cena doméstica em câmera lenta. O corpo a corpo tornava-se abraço, a violência efusão.

Inventar ritmos. Antes de qualquer linguagem, há a respiração correta, o canto[5]. Paixão deve ser entendido nos seus dois sentidos: humano e místico, sofrimento e passagem, grito e música. A brutalidade da vida, e também essa brutalidade transposta, representada, interpretada em outros lugares, de outro modo. Inscrevendo-se em uma tradição cultural. Sim, o paradoxo da criação está aí: o filme mais novo, e talvez o mais forte, de Godard é também o mais clássico. A tradição é uma coisa totalmente diferente de um patrimônio. É ela que pára a corrida louca do tempo, a sabedoria dos homens dilacerados entre o “carpe diem” e o desejo de eternidade.

Grande, imenso é este filme. Religioso (que religa), mas sem sagrado. Procurando uma resolução não sacrificial da violência, estética e mística. Nele coexistem a violência mais extrema e a paz mais doce. Qualquer coisa que tende para a oração, “a abertura”, do Agnus Dei de Fauré.

Notas:

[1] Durante a conferência de imprensa que deu em Cannes, no dia 24 de Abril.

[2] Em Paixão a referência a Simone Weil (A Gravidade e a Graça, A Condição Operária) é explícita. Isabelle não é uma verdadeira operária (sê-lo-á alguém, alguma vez?...). Está entre a fábrica e o cinema. Simone Weil estava igualmente entre a filosofia e a fábrica. Godard tinha pedido a Isabelle Huppert que lesse Simone Weil antes da filmagem.

[3] O Concerto Para a Mão Esquerda não é belo por ser executado com uma só mão (a performance é o contrário da arte, vulgar, obscena). O que é belo é o equilíbrio entre essa única mão e a orquestra.

[4] Os dois Réquiem (de Mozart e de Fauré) fazem parte da banda-sonora do filme.

[5] “Sim, aproveite enquanto a frase não está ainda feita, para começar a falar, começar a viver.”

(Études, julho 1982, pp. 82-84. Traduzido por José Oliveira. Revisado por Luísa Braga)

 

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