O INVENTOR DO NEO-REALISMO
por Patrick Brion


Um dia Pagnol disse a Gilles Grangier:
“O cinema é um trabalho fodido.
Venha comigo, há ouro em Rhône,
vamos recolhê-lo.” Entretanto,
seus filmes foram triunfos e
reconheceu-se que ele inventou o neo-realismo.


“Do ponto de vista do som, há algo que sempre me incomodou nos meus filmes: são as cigarras. Elas são bastante poéticas, as cigarras: quando não se está gravando, pensa-se num amolador. Mas quando são gravadas, não se escuta mais nada. Assim sendo, cada vez antes de rodar quatro ou cinco maquinistas saiam aos pés dos pinheiros com um bastão a fim de expulsá-las... Mas elas sempre retornaram. Ainda podem ser escutadas em Angèle e Regain.”[1] Esta constatação quase amarga sozinha simboliza a autenticidade do cinema de Marcel Pagnol e o verismo de suas filmagens em som direto!

A partir dos anos 20 Pagnol, o jovem provençal, estabelecido em Paris, está fascinado pelo cinema, o qual ainda não tem o dom da palavra. Doze anos mais tarde ele fundou uma revista de cinema, Les Cahiers du Film, e publica Cinématurgie de Paris, um célebre texto polêmico. Ataca com parcialidade o cinema mudo: “Esta arte enferma desapareceu e é pouco verossímil que jamais renasça. No entanto, veremos mais adiante que sua existência não foi inútil. Se não deixou muitas obras dramáticas de grande interesse, inventou e desenvolveu uma técnica muito preciosa de utilização da imagem, que completa e esclarece o Verbo; criou todos os tipos de equipamentos, de máquinas, de procedimentos, de técnicas que permitiram o nascimento e o triunfo do filme falado.”

Mas não bastava que o cinema fosse falado para Pagnol, pois ele almejava na realidade um cinema dialogado, e suas críticas focam agora a nova forma de arte popular na qual se transformou o cinema falado dos anos 30: “Sob coação e forçados pelo público a se sacrificarem à nova arte, os especialistas do mudo inventaram um tipo de monstro: o filme reticente, ornado do tilintar de colheres, de gemidos, de rugidos, um filme que soluça, suspira, funga, encoberto aqui e lá de palavras anódinas; e eles dizem que são os limites do falado, mas nós sabemos bem por que sua criança era muda: é porque eles não sabiam fazê-la falar. O público desta época estava naturalmente bastante interessado por essas fotografias sonoras: ele teria vindo ver até mesmo um chefe de estação lendo em voz alta o horário dos trens.”[2]

Sem dúvida voluntariamente Pagnol ficou à espreita e serão outros que primeiro adaptarão suas obras para o cinema. Alexander Korda é o primeiro destes e roda em 1931 Marius. Ele adverte Pagnol: “Do filme falado não entendo nada. Quanto a você, você é um dramaturgo, você entende a palavra. Eu componho as imagens, e você o texto.”

Estranha aliança essa entre Pagnol e o húngaro emigrado nos Estados Unidos após uma brilhante carreira no seu país natal e na Alemanha, tendo já realizado cerca de quarenta filmes. O resultado é triunfal e o público, tanto o de ontem como o de hoje quando o filme é exibido na televisão, comove-se com a descrição intimista de Marselha, com o seu barzinho do Porto Velho, as inevitáveis partidas de cartas de César e o amor de Fanny por Marius. Mas o que arrebata o espectador de 1931 é a qualidade e a riqueza emocional do diálogo. Pagnol voluntariamente declarou que “o cinema deveria ser uma estamparia do teatro”, e curiosamente Marius evita as principais armadilhas do teatro filmado. Como e por quê? Com a palavra, Pagnol: “O diálogo é o pai dos burros da arte dramática, é a própria substância da obra. Não digo que é necessário um grande gênio para escrever um diálogo, mas é necessário um dom especial, como para se jogar sinuca, para se interpretar uma comédia ou para ser uma mulher barbada. Aquele que não possui esse dom, a Arte Dramática o rejeita, e o que ele escrever não terá vida. Assim sendo, grandessíssimos escritores, como Flaubert, como Balzac, como Ernest Renan, escreveram peças de teatro. Eram maçantes, não podiam ser interpretadas, não podiam ser declamadas. E os autores de filmes mudos que pretenderam escrever diálogos acreditavam que uma frase é uma réplica, que uma palavra mais rebuscada pode ser dita por qualquer personagem, não importa onde nem quando... Eles não puderam atravessar a barreira invisível que deteve artistas maiores.”[2]

Esta barreira, Pagnol a escalou com facilidade, servido por Raimu, Pierre Fresnay, Louis Jouvet (o primeiro intérprete de Topaze), Orane Demazis, Henri Poupon, Ginette Leclerc e Fernandel.

Mas Pagnol não vai se contentar em deixar Korda, Marc Allégret ou Louis Gasnier filmarem suas peças. Ele mesmo se reservará suas realizações cinematográficas e, paralelamente, ainda trará para as telas uma parte da obra de Giono (Un de Baumugnes tornou-se Angèle, Regain, Joffroi, La femme du boulanger). Fiel à sua teoria de que “tudo que é simples é emocionante e encontra sempre o caminho mais obstinado e duro do coração”, Pagnol será, junto com o Renoir de Toni e o Duvivier de Camaradas (La belle equipe, 1936), o pintor mais justo de uma certa parte da sociedade francesa. Ele opõe a cidade ao campo; a cidade tem ordem estabelecida, tradicional, “laica e republicana”, dirão alguns, uma ordem que Pagnol não detesta mas que é também um universo de compromissos e de concessões. Marius sonha em partir para longe e Topaze descreve um sistema corrompido. Diante da cidade, o campo, ao contrário, significa um retorno à natureza, a esses personagens rousseaunianos capturados em seus elementos e integrados a essa linda paisagem provençal. Raimu e Fernandel têm a força e o verdor de uma árvore inextirpável. Muitas vezes Pagnol foi criticado pelo seu gosto do pitoresco rural, mas no cinema francês quem além dele se vinculou a esse interior e aos seus camponeses? Como disse Gérard Guégan: “Pagnol... há um quê de grego neste homem. De Homero. Com sua desmesura, sua loucura do verbo, seus exageros, suas lágrimas. Ele aceita ser o poeta de um mundo que corre sem se preocupar com o amanhã. Do presente só registra o que evoca um passado harmonioso. As tradições de uma cultura que se desagrega. A destruição é para os outros, os cineastas do amanhã. Ele é o homem que abre um cofre em que tudo não era tão mau, em que a vida era esse combate ao sol entre o destino e os homens. O nascimento, a morte e o amor, sem o qual nada se dá. Trindade eterna.”[3]

As qualidades do cinema de Pagnol parecem se impor e, no entanto, foi necessário esperar anos para vê-las reconhecidas. Bardèche e Brasillach escreveram na sua Histoire du cinéma: “Do filme de arte do pré-guerra a Marcel Pagnol a filiação é evidente: a França busca o teatro na tela do cinema, e que mau teatro.” Por sua vez Georges Sadoul, apesar de reconhecer algumas qualidades no autor de Angèle, o despacha em apenas algumas linhas no seu Dictionnaire des cinéastes entre artigos sobre Marcello Pagliero e Jean Painlevé, a quem dedica um artigo três vezes mais longo... André Bazin será um dos primeiros a examinar seriamente aquilo que chamou de “caso Pagnol” e alguns anos mais tarde André S. Labarthe constatará justamente a propósito dos filmes de Pagnol: “Sua grande popularidade escondeu até hoje sua grande inovação”.

Esta novidade, entretanto, irrompe em todos os níveis. Graças a Pagnol, podemos descobrir um Fernandel assombroso, o de Naïs, Regain e de Le schpountz. Arrancado por Pagnol de seus eternos papéis de recruta cantante, Fernandel se tornaria, como Raimu, um verdadeiro ator dramático cujas qualidades poucos cineastas além de Pagnol compreenderiam.

Em 1948, em busca de todos os aperfeiçoamentos técnicos, Pagnol abandona o hábito do 35 mm. e filma em 16 mm., e a cores, La belle meunière, uma biografia de Franz Schubert interpretada por Tino Rossi, utilizando na ocasião um novo processo chamado Rouxcolor, cuja carreira não durará muito.

A influência de Pagnol foi considerável e Vittorio De Sica admite voluntariamente: “A escola neo-realista italiana, foi Pagnol que a inventou, em 1934, com Angèle.” E não é por acaso que os Cahiers du Cinéma lhe dedicaram em 1965 um número especial. A nouvelle vague fazia uma justa homenagem àquele que havia sido - mas quem o sabia à época? - um de seus mestres. “São muitos os que acreditam que a técnica cria o filme”, dizia ele. “Erro! O que é difícil é saber escolher os seus planos... Dito isto, não existe arte sem lugares comuns, não existe poesia sem pores do sol e serenadas. É muito fácil fazer algo original com um clarinetista pederasta, loucamente apaixonado pelo contrabaixista. Infelizmente, existem leis formais que são tão fixas quanto os dedos dos pés.”

Notas:

[1] Une aventure de la parole, entrevista com Marcel Pagnol por Gérard Guégan, Jean-André Fieschi e Jacques Rivette, Cahiers du Cinéma nº 173, dezembro 1965, pp. 24-37.

[2] Cinématurgie du film, in Les Cahiers du Film, dezembro-janeiro 1934.

[3] L’importun du Midi, por Gérard Guégan, Cahiers du Cinéma nº 173, dezembro 1965, p. 64.

(Magazine Littéraire nº 99, abril 1975, pp. 12-14. Traduzido por Victor Bruno e Bruno Andrade)

 

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