À MARGEM DA VIDA, Paul Newman, 1987
por João Bénard da Costa


Para além dos registros filmados e “video-plays”, esta é a terceira versão cinematográfica de The Glass Managerie, a peça que impôs Tennessee Williams como dramaturgo - em 1945 - e lhe deu a celebridade mundial que se supõe conhecida. A primeira, de Irving Rapper, data de 1950.

Em 1973, um ator - Anthony Harvey - assinou segunda adaptação, concebida (como nessa década se usou) em genuflexão à grande arte de Katharine Hepburn que, nos palcos e entre tantas Amandas lendárias (de Jessica Tandy a Helen Hayes) fora uma das mais aclamadas intérpretes do papel. Katharine é espantosa - é-o e foi-o sempre - mas talvez nesse como noutros “Hepburn vehicules” da década - se tenha esquecido do “fussy” ma non troppo (que Williams recomendava) e possa ser acusada de ter exagerado no modo como se apoderou do personagem para esmagar todos os outros intérpretes (aliás discretos, e escolhidos por ela, para que ninguém lhe ensombrecesse a glória).

Mais recentemente - e sempre nos palcos - Joanne Woodward fez-se aclamar como uma das melhores Amandas de sempre, designadamente na produção do Festival de Williamont, que o filme segue de perto.

E dessa aclamação surgiu a idéia de Paul Newman - como se sabe marido de Joanne - de voltar a filmar The Glass Menagerie com a mulher como protagonista.

Novamente com um ator a dirigir e com Joanne Woodward “above the title” podia-se recear o pior, ou seja uma reedição da versão Hepburn, agora à glória de Mrs. Newman. Quem o pensasse, não poderia - nem deveria - esquecer que Paul Newman (para lá dos seus fabulosos méritos de ator) é um realizador com provas dadas nos belíssimos Rachel, Rachel (68), The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds (72) ou Harry and Son (84).

Se Newman é, como disse George Segal, “the last star” (e disse-o para dizer que depois dele “we’re all just actors”), é também o último ou um dos últimos realizadores fiéis à sua formação “clássica”, ou seja aos “fifties” americanos, a Kazan, a Ray, a Logan, essa grande geração de cineastas formados pelo teatro, mas que o soube converter em cinema “de pura intimidade” e pura dor. E, mais uma vez (apesar de, com bastante miopia, alguma crítica ter falado de “teatro filmado”), Newman consegue, a meu ver, o milagre de em fidelidade absoluta a um texto e a um autor que tanto ama (refiro-me, obviamente, a Williams) ter feito grande cinema. Mais do que isso, julgo eu: ter acrescentado uma peça decisiva na “vexata quaestio” das relações teatro-cinema e do que é ou não é “teatro filmado”.

Não cortando uma palavra ao texto (esta versão tem 134 minutos, contra os 107 minutos da versão de 50, ou os 112 minutos da versão de 73), não saindo do “décor” (e até na Broadway diversos encenadores usaram por vezes projeções e “legendas” para conferir dimensão adicional às memórias do tempo em que a ação se situa: anos 30, Guerra de Espanha, Rooseveltianismo), optando por uma estética de permanente recurso ao campo-contracampo e ao grande plano, Newman deu-me a ver The Glass Menagerie como nunca a vi e fez um filme que, além de belíssimo, dá bastante que pensar em termos de representação teatro/cinema (antes de lá ir, noto só, para quem não conheça a peça, que o recurso ao narrador faz parte intrínseca dela e não é artifício de Newman, para nos fazer esquecer o teatro. Muito pelo contrário, acentua-o).

Normalmente o problema permanente de tantos cineastas ao filmar textos teatrais foi “arejar” a peça, ou seja inserir nela falsas “saídas” para o exterior. Por exemplo, na versão de Rapper de 1950 (para não ir mais longe), havia um “flashback” com o pai, viam-se Tom e Jim no cinema, e acompanhavam-se os personagens em gratuitas deambulações pelas ruas. Esquecia-se o teatro? De forma alguma. Perdia-se era a sua força, sem que o cinema ganhasse nada (já podia eventualmente ganhar - mas era mais efeito do que necessidade -, com os muitos planos dos bonecos de cristal de coleção de Laura e a pontuação dramática do filme, com eles).

Newman, pelo contrário, não sai da rua de Saint-Louis onde a família Wingfield habita e quase não sai de casa (à exceção do plano inicial em que John Malkovitch a ela regressa, enquadrado aliás de modo a que quase se lhe não veja o corpo). Da “glass menagerie” só o unicórnio brilha e quando tem de brilhar. E duplica o efeito teatral numa das cenas da peça que pôs sempre mais dores de cabeça aos encenadores: a cena em que Laura e Jim ficam sozinhos, com o álibi dramatúrgico de que Amanda e Tom estão na cozinha, a lavar a louça do jantar. Passa-se tanta coisa nessa decisiva “cena” (não lhe vou chamar seqüência, porque não é) que só com algum irrealismo podemos acreditar que tudo isso possa acontecer desde que dois dos personagens vão para a cozinha (certamente não muito longe da sala) até que Amanda desta regressa, chamando-as “children”.

Por acaso, cronometrei e são 18 minutos. Em tempo fílmico é muito tempo, como o é em tempo psicológico e dramático, mas para quem fizer as contas verificará não ser inverossímil que tenham sido consumidos a lavar e arrumar louça. Pormenor de todo irrelevante? Não, exatamente porque o excesso de artifício vem do excesso de realismo, como Williams queria e não o contrário. E porque é exatamente quanto mais sentimos o “ato” da peça (artifício do dispositivo cênico) que vemos chegar ao momento supremo do cinema.

E esse surge no grande plano dado ao unicórnio. Peça suprema do “Jardim Zoológico de Vidro” (como por aqui se chamou à peça), “favorite one” de Laura, é exatamente o que Jim mais tem medo de partir. Quando Laura lhe responde: “I’m not of glass”, assume a sua identificação com a peça o que redobra na metáfora da dança. Jim parte mesmo o boneco (“he lost his horn”) e Laura parece não o lamentar. De certo modo, nessa cena, ela perde a sua unicidade (ou a sua virgindade) e transforma-se na mulher tão bonita que Jim beija (volta a ser “my blue rose”) Mas efemeramente: Jim confessa-se e confessa a sua impotência e a sua precipitada retirada é apenas a assunção da feminilidade da “shy and crippled girl” que conheceu e esquecera. A oferta do unicórnio é a última ablação de Laura a Jim, como se lhe oferecesse também o seu corpo já marcado. E tudo se precipita quando a mãe regressa e, percebendo tudo, pela primeira vez se refere à filha como aleijada (palavra que até aí recusara) e destrói também a ilusão da sua família. Através da escala de planos e da mise en scène, Paul Newman - guardando todos os trunfos para essa cena - destrói o “clichê” da “mais otimista das peças de Williams” (lugar-comum de todos os críticos) para a transformar numa das suas versões mais desesperadas.

E isto só é possível - julgo eu - porque é um ator quem olha atores. Olha Joanne Woodward e Karen Allen, mas olha-as através do olhar de John Malkovich que, magicamente transfigurado, ressuscita na sua representação a gênese do Método (os anos 30) e os seus atores mais emblemáticos (Dean, Brando, o próprio Newman). E sempre em coincidência com a peça, olha o teatro com o olhar do rapaz cujas noites se passavam no cinema e que só no cinema encontrava a aventura que lhe faltava. E no único momento em que o olhar não é dele, é que a câmera rodopia nessa genial seqüência em que Laura não consegue abrir a porta, quando se apercebe que o “gentleman caller” é o mesmo que há anos povoava os seus solitários sonhos. E se o mundo de Tom é o do cinema, se o mundo da mãe é o do teatro, o dela é o dos efeitos especiais da “glass menagerie”.

Sem espaço, acabo a chamar a atenção para o quinto personagem do filme, aquele de que só vemos o retrato e que determinou quase tudo: o pai. Reparem como esse retrato pontua a narrativa e depois não me falem em teatro filmado. Reparem, sobretudo, na antológica seqüência da magia, a do véu amarelo, antes das trovoadas e das velas. Pela paixão do teatro e pela paixão do cinema, Paul Newman percorreu os caminhos que ligam um ao outro, neste filme em que ele é - de todos - o mais presente e o mais ausente.

 

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