SIMPLICIDADE DE LEO MCCAREY
Foi efetivamente o que fizemos nos Cahiers, e eu sou um dos co-responsáveis por esta exaltação da expressão mise en scène, porque isso permitia dar um nome ao mistério, mas uma vez que dizemos mise en scène, que queremos dizer com isso? O problema é apenas deslocado, digamos que é nomeado, mas não é resolvido. Efetivamente, a solução ronda a mise en scène, isto é certo, mas o que é a mise en scène?... Vasta questão! (...) Anda à volta do fato da mise en scène ser um trabalho muito preciso, e mesmo se cada um o faz à sua maneira, que felizmente não é igual à do seu vizinho, porque de outra forma não seria interessante, cada um segrega a sua própria técnica mas, ao mesmo tempo, todos parecem falar da mesma coisa. Foi isto que, nos Cahiers - há sem dúvida outros exemplos, mas falo do que conheço melhor: os Cahiers dos anos cinqüenta -, surpreendeu muitas vezes os nossos primeiros leitores: por exemplo Bazin, que ficava intrigado e por vezes embaraçado por nós, mesmo se nos estimava muito e nós o respeitássemos profundamente. “O quê é que vos autoriza a defender simultaneamente Renoir, Rossellini e Hitchcock?” Eis a grande questão: “Como podem conciliar Rossellini e Hitchcock?” (...) Assentemos então, enquanto hipótese provisória, e como base de partida oferecida à discussão, quê o que faz com que um filme seja um filme é o fato de haver, em simultâneo, segredo e obediência à lei, a uma lei que não é forçosamente a mesma para todos os filmes, mesmo que suponha que, profundamente, todas estas leis se encontram. Voltamos à questão de que falávamos no outro dia: o quê é que faz com que possamos admirar ao mesmo tempo Hitchcock e Rossellini?
Jacques Rivette, entrevistado por Hélène Frappat
Em Era uma Lua-de-Mel (Once Upon a Honeymoon, 1942), o apelo à luta contra o nazismo vem se intrometer no esquema de uma comédia americana clássica e se exprime através da tomada de consciência de um personagem tradicional do gênero, e, portanto, não preparado, a princípio, a tais revelações. Em Tentação Diabólica (Satan Never Sleeps, 1962), que poderia ser descrito como uma fuga do Éden invadido, instala-se, quase apesar do autor, uma amargura que já viramos emergir em certas seqüências de A Cruz dos Anos (Make Way for Tomorrow, 1937) ou de Não Desonres o Teu Sangue (My Son John, 1952). Modernos apesar de si mesmos (não é esta a melhor maneira de sê-lo?), esses filmes, que mal conseguem esconder a cólera reprimida do mais pacífico e do mais caloroso dos homens, não exprimem, de uma maneira ainda mais persuasiva que se o autor quisesse dizê-lo abertamente, a dificuldade da felicidade, da harmonia, e como um mundo que seria baseado nelas ainda está longe de ser o nosso, ainda está para ser criado?
Jacques Lourcelles, McCarey, Anthologie du Cinéma nº 70, L’avant-scène du cinéma, novembro 1972
Eles pensam que esta simplicidade é sinal de pouca invenção.
Robert Bresson, Notas Sobre o Cinematógrafo
O que chama a atenção no cinema de Leo McCarey após Diabo a Quatro (Duck Soup, 1933) é justamente seu domínio sobre o tempo. É pela duração de uma cena que o quadro original é ampliado em todas as suas nuances. Na apresentação de Rufus Tirefly como o novo comandante de Freedonia, temos um petardo satírico em que os desmandos futuros do personagem são insinuados por cada pausa e arranque de sua voz (as quais pervertem o sentido das palavras). McCarey acalenta a ambigüidade da cena através de angulações certeiras que criam uma sugestiva síntese, nutrida pela relação entre o décor e as expressões pontuais dos coadjuvantes - mas é o tempo de registro e a velocidade dos cortes que proporcionam as tonalidades certeiras. Certamente de Griffith vem esse cuidado com os encadeamentos, a despeito de um recorte preciso sobre as ações, enquanto a agilidade com que os jogos dos atores é lidada aponta para Keaton.
Como em Griffith e Keaton, no cinema de McCarey “minimiza-se” a importância do roteiro, no sentido em que este é estabelecido tão-somente como um guia estruturado para facilitar a abertura aos impulsos obtidos pela experiência criativa dos atores e dos seus eventuais improvisos. A câmera aqui se limita a registrar em forma de documento dinâmico a ficção teatral. A partir da direção sólida de um grupo de atores anárquicos - a qual se mostra atenta aos seus excessos, capaz de induzir de forma lapidar as tensões e a dinâmica dos irmãos Marx -, estes se moldam à cadência estipulada pelo trabalho de McCarey (por exemplo: o divertido número em que os espiões do país inimigo se passam por Rufus, quando a guerra está prestes a estourar, a fim de arrancarem informações de documentos sigilosos. Toda a duração deste evento demonstra uma depuração entre o nível da sobriedade técnica de McCarey e o apelo cômico dos atores). Com Diabo a Quatro, McCarey desponta como um cineasta extremamente arrojado, capaz de intercalar a aptidão do cinema clássico para a concentração e sua iconicidade com os novos recursos que sucederam o uso do som: uma superfície mais ampla ao invés de únicos e profundos “pontos de fuga”, que surge através da maleabilidade dos efeitos de vocalização e suas conseqüentes modulações.
Em seus melhores filmes (A Felicidade Bate à Sua Porta [Good Sam, 1948], O Bom Pastor [Going My Way, 1944], Diabo a Quatro, A Cruz dos Anos, Cupido é Moleque Teimoso [The Awful Truth, 1937], Os Sinos de Santa Maria [The Bells of St. Mary’s, 1945]), há uma respiração, um acordo pelo qual um sentimento de liberdade se estende por toda a duração das cenas, como se testemunhássemos um roteiro que lentamente se molda às necessidades da filmagem, às tendências naturais dos atores no câmbio de seus registros mais espontâneos (problemática surgida com o advento do cinema sonoro), além da descontinuidade narrativa em função da acumulação de registros e uma distribuição enriquecedora dos ímpetos em cena. Se há um nome que pode estabelecer um forte parentesco com cineastas como Godard, Jerry Lewis, Rivette e Eustache, há décadas de antecedência, este certamente é o de McCarey: o diretor depreende das ações um sugestivo raio de nuances e complexidades que, reverberadas pela sua visão, imprimem e escavam na obra uma concepção das personagens aberta ao improviso sob as regras dramáticas. Segredo e obediência à lei, como disse Rivette.
Para quem encara o cinema clássico como uma grade de filmes realizados com planos abertos, composição acadêmica, linhas horizontais construídas num apreço pictórico que se confunde com polidez e atores teatrais, insistimos que veja uma obra como A Cruz dos Anos: onde a câmera aparentemente comedida e a singeleza que paira nos traços dos protagonistas, em progressão, criam distâncias justíssimas às palpitações dos atores. Verdadeira aula de como a mise en scène é uma articulação entre potências individuais e não uma edificação de vontades individuais.
Depois dos trabalhos com Laurel e Hardy, Harold Lloyd e os irmãos Marx, passando pelo lançamento de Vamos à América (Ruggles of Red Gap, 1935), onde a mescla dos tempos do melodrama e da comédia atingem consonâncias experimentais nos efeitos visuais e na sincronia das falas, percebemos com o passar dos anos uma tendência em McCarey para depurar ainda mais a acumulação e a gradação dos sentimentos em cena. Essa tendência atinge seu ápice em 1937, com Cupido é Moleque Teimoso e A Cruz dos Anos. Há neles, inclusive, uma mudança de tom: embora não isenta de passagens com humor (bastante refinado e leve nas suas implicações mais cáusticas), é a atmosfera de desagregação da família e dos valores que a América assume com o seu progresso que dá a tônica da narrativa.
O enredo se estrutura na “quebra” financeira da família de George durante a Depressão, que decide levar a sua mãe para morar com a esposa e a filha, enquanto o pai passa a morar com uma das suas irmãs. Em uma temática sobre a velhice e a re-significação da vida, que veio a ser tema de filmes como Do Mundo Nada se Leva (You Can’t Take It with You, Frank Capra, 1938), Morangos Silvestres (Smultronstället, Ingmar Bergman, 1957) e Era uma Vez em Tóquio (Tôkyô monogatari, Yasujirô Ozu, 1953), McCarey mostra uma propensão a acompanhar e implicar os gestos mais esparsos de seus personagens. O uso do som na cena em que a nora de Lucy recepciona seus convidados expõe bem como a direção de McCarey assume sua autonomia em relação à literalidade do roteiro: o próprio ressoar da cadeira da sua sogra soa antiquada aos novos padrões de etiqueta da sociedade. Olham para ela com a tristeza resoluta de alguém que já não sobreviveria a esse novo mundo, e nesse momento ela é contaminada por seus olhares, captados num maravilhoso jogo de latência, que varia da educação que julga ao compadecimento mais sincero (sobretudo do seu filho George, que alimenta consigo sentimentos de vergonha, culpa e ternura em limites um tanto borrados).
É emblemática, em A Cruz dos Anos, a orquestração da construção climática, da qual tomamos como exemplo a lua-de-mel revivida pelo casal de idosos ao final do filme, às vésperas de uma nova separação. O modo um tanto desajeitado com que eles flertam e se permitem a prazeres juvenis de outrora ganha uma dimensão inesperada de romantismo, em declarações de afetos sutis, na ciência de que, provavelmente, não se veriam mais.
Essa cena se desenvolve na forma de suspensões e crescendos difíceis de serem descritos, tamanha é a integração dos atores à força com que McCarey extrai do tempo exterior de seus jogos. Um verdadeiro vibrar de cordas pontuado pelo espelhamento de suas expressões fundamentais - condutoras do sentimento permissivo e, ao mesmo tempo, retraído do casal -, que ganham em particularidades com o trabalho estrutural dos elementos que envolvem a aventura: o passeio em um carro de luxo, quando tomados como um casal milionário por um vendedor ganancioso, que lhes rememoram os anos de expectativas mais promissoras; a sensação de estarem sozinhos um para o outro e sem obrigações familiares quando se percebem levemente embriagados, no hall do hotel da sua primeira lua-de-mel; e, por fim, o beijo tímido que acontece após ser ensaiado durante algumas trocas de olhares mais pausadas. A hora da separação chega e os acenos que separam o casal os implodem de uma dor resignada, tão imensa que se demonstrada poderia estragar a certeza expressa em seus últimos sorrisos de que se amaram de verdade. Os figurantes, o movimento interno e o contexto de cada ação, que surge na desenvoltura dos diálogos, estabelecem uma ponte perfeitamente integrada a filmografias de outros grandes encenadores modernos, como Pialat e Blain, que dos seus atores também extraem gestos e expressões que visam um afinamento bastante adaptado a possibilidades de interpretação que interseccionam motivações (ação interior) e seus arremates (ação exterior).
Se há uma coisa que precisa ser entedida, de uma vez por todas, é que a maior parte da produção do cinema, assim como as demais artes, é nula, repetitiva e vulgar. Não interessa olhar para o cinema dito clássico ou moderno com linhas gerais de expectativa. Em todas as artes o que sobra é a exceção, o frescor de uma produção que evolui (e se moderniza) unicamente pelas suas próprias obras artísticas e não no âmbito cultural (mesmo porque aí já fugimos do âmbito artístico, bem como dos seus méritos). É preciso repensar toda a concepção vulgar de modernidade que surgiu e se intensificou com a nova cinefilia. E aqui nos permitimos uma provocação aos espectadores mais ortodoxos de um cinema atualmente dito e tido como moderno:
Tira-se as cartelas, o trabalho de edição e as disjunções entre som, imagem e cartelas e o que resta nos filmes de Godard é o bom e velho “6-4-2”, isto é: precisamente a decupagem mais associada aos anos 30, a mais supostamente “clássica” que existe (decupagem rohmeriana; ver L’organisation de l’espace dans le Faust de Murnau). Aos que atentam tão-somente às cartelas, ao trabalho de som e às disjunções, pergunto: partindo disso, como Bresson seria moderno? Ora, é-se moderno unicamente em relação à própria técnica. Não existe uma modernidade externa à obra artística. Se esta existe, é da cultura, e aí já saímos (repetimos) do âmbito da arte (téchne).
McCarey prova com seus filmes que a discrição (A Cruz dos Anos, como anos mais tarde Não Toque no Machado [Ne touchez pas la hache, 2007] de Rivette) e a descrição (Diabo a Quatro, mas também A General [The General, 1926] de Keaton e Bruckman, For Ever Mozart de Godard, Os Amores de Astrea e Celadon [Les amours d’Astrée et de Céladon, 2007] de Rohmer) nada têm a ver com falta de vigor ou inventividade. Como a simplicidade, elas são o mais difícil de se obter pelas mãos de um artista, porque requerem consistência, segurança e economia; e isso só se atinge com muita ciência de seu ofício. Ela é o segredo. |
2014/2015 – Foco |