MOCINHO ENCRENQUEIRO, Jerry Lewis, 1961
“À minha volta, nas origens, só havia a Língua das fraudes instituídas,
das ilusões devidas, que as primeiras angústias de um menino, as paixões pré-humanas,
já impuras, não exprimia. E quando, adolescente, conheci neste país algo que não era a
alegria de uma vida de criança - num país provinciano, mas para mim absoluto, heróico - foi a anarquia.”
Pier Paolo Pasolini, La ricchezza
Este filme, O Mensageiro Trapalhão (The Bellboy, 1960) e O Terror das Mulheres (The Ladies Man, 1961) propõem a imagem insólita de um classicismo ao mesmo tempo quintessenciado (e inerente, de certa forma, ao trabalho de um jovem cineasta já acomodado e familiarizado à maquinaria complexa dos estúdios hollywoodianos no momento em que realiza seus primeiros filmes) e em pleno processo de uma decomposição que, diferentemente do que pode ser visto em outros filmes do mesmo período (dentre os quais poderíamos citar Onde Começa o Inferno [Rio Bravo, Howard Hawks, 1959], Herança da Carne [Home from the Hill, Vincente Minnelli, 1960], Clamor do Sexo [Splendor in the Grass, Elia Kazan, 1961], Vício Maldito [Days of Wine and Roses, Blake Edwards, 1962], O Homem Que Matou o Facínora [The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962] e Marnie, Confissões de uma Ladra [Marnie, Alfred Hitchcock, 1964]), acaba completamente submetida no nível da forma à regência do seu próprio espetáculo. Ao contrário do que, e vale notar que longe de Hollywood, Godard fará dois anos depois em O Desprezo (Le mépris, 1963), ao sobrepor esse classicismo às pompas de sua própria cerimônia fúnebre, Lewis, aqui, o celebra sob a forma de caricatura. É durante a brilhante seqüência pré-créditos, a qual remete igualmente ao filme de Godard (mas as semelhanças param por aqui), que esse classicismo tem os limites de seu universo circunscritos e seus deslimites sugeridos e explorados: os planos em que a meca do cinema é filmada de um helicóptero reforçam esse aspecto documental da obra, pois se servem “da realidade para que a ficção, digamos a sátira, torne-se ainda mais realista” (Straub sobre Machorka-Muff).
Por mais que dê de cara com os semblantes da inocência e da simplicidade, o olhar de Lewis sobre o universo de Mocinho Encrenqueiro (The Errand Boy, 1961) acaba por afastá- lo da noção amplamente difundida, e amplamente equivocada, de um artista casto e mero boa praça (cf. a reação do personagem de Lewis, ele mesmo no papel de espectador de cinema, ao final da seqüência com a starlette). Pois se a simplicidade e a inocência existem para além das aparências nesse universo, será necessário vasculhar e revirar todo um estúdio de cinema para encontrá-las (nas duas cenas sublimes em que o personagem de Lewis interage com os fantoches de um palhacinho e de uma avestruz, talvez o ponto máximo de sua obra como diretor). Não deixa de ser isto o que, como que por um triplo espelhamento entre personagem, realizador e espectador, Lewis faz: na medida em que sua arte modifica os fins do espetáculo sem alterar ou atribular seus meios (um cinema da transparência que será desmantelado por Lewis nos filmes seguintes), ela perverte toda a estrutura lógica da aparelhagem hollywoodiana, e conseqüentemente do que esta produz, sem no entanto degenerá-la ou denegri-la. Embora Lewis retrate dos bastidores e em forma de caricatura o cotidiano de todo o massacrante aparato dos estúdios - como sintetizado na cena do casal das telas que também o é na vida real -, sua inclinação de humorista e poeta lúdico busca suscitar ilogicamente, ainda mais por fazê-lo no meio de toda a realidade desumana de um complexo industrial, o lirismo pela potência da fascinação. Ao invés de uma simples descrição, a natureza da arte se compraz, aqui, na sua única função: algo se estabiliza, algo que equilibra a “percepção do contrário” no “sentimento do contrário” de que fala Pirandello, algo que procede da riqueza que Lewis restitui pela doçura aos aspectos mais variados do universo retratado. Essa arte da sublimação da caricatura pela poesia da forma, como não poderia deixar de ser, chama-se generosidade.
Com O Professor Aloprado (The Nutty Professor, 1963), O Otário (The Patsy, 1964) e Uma Família Fuleira (The Family Jewels, 1965) esse classicismo sobre o qual Lewis fez assentar sua juventude de realizador passa por uma inflexão a princípio incompatível com a proposta de qualquer classicismo, uma inflexão que pelas vias da degeneração e da disjunção precipitou e fez colidir no próprio interior de seus filmes o cômico com o grotesco, a infância com a malícia, a anedota recatada com o detalhe escabroso, e mais especificamente o quadro de integração e submissão da parte ao todo comum ao classicismo com os esplendores manifestos da exacerbação barroca. A destruição teatral de um estúdio de cinema sob a forma de espetáculo burlesco em Mocinho Encrenqueiro talvez permaneça a figuração ideal e premonitória do que os filmes tardios de Lewis representam em relação à porção inicial de sua obra e, exceção feita a Samuel Fuller, a todo o cinema hollywoodiano da época. Seria esse o coroamento e o paradoxo de uma obra que, a despeito de sua extravagância e do extenso trabalho crítico que dela se depreendeu, ainda permanece suficientemente enigmática? Trata-se, mais simplesmente, da radicalização da proposta poética desses primeiros esboços, nos quais o prazer lúdico do jogo era compartilhado entre realizador e espectador, antes de ser abstraído por um desenfreado e elaborado delírio plástico em que o cineasta ultrapassa definitivamente o público, literalmente arremessando-se - e a nós nada mais resta que segui-lo - num universo sucessivamente mais e mais desvairado de audácias e invenções absurdas. O princípio norteador dessa abstração, que culmina no êxito absoluto e terminal de O Fofoqueiro (The Big Mouth, 1967) antes de se renovar sob a forma quase ensaística de As Loucuras de Jerry Lewis (Smorgasbord, 1983), é suficientemente flexível para que em Mocinho Encrenqueiro Lewis seja capaz de extrair dele seus mais belos frutos ao mesmo tempo em que apenas começa a cultivá-lo. Deparar-se com um cineasta que já no seu terceiro filme é capaz de gravitar suas formas somente com os ângulos, as geometrias, a luz, os corpos, o tempo, a atmosfera, o ritmo, a música, a beleza, a alegria e a liberdade que participam ativamente na mise en scène é nada menos que impressionante, comparável ao que Paul Newman conseguiu somente a partir do seu quarto filme (A Caixa de Surpresas [The Shadow Box, 1980]), Bresson no seu quinto (Pickpocket, 1959), Michael Mann no sexto (Fogo Contra Fogo [Heat, 1995]) e King Hu no sétimo (O Destino de Lee Khan [Ying chun ge zhi Fengbo, 1973]). Lewis, na sua obra-prima, suscita pelo candor da magia hollywoodiana a perversão da arbitrariedade que, como em todos os grandes filmes, nutre a verdadeira abstração, aquela de que falava o velho Aristóteles quando dizia que nada está na inteligência que não tenha primeiro estado nos sentidos. |
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