HENRY KING, O ADMIRÁVEL
Há muitas razões para se apostar que, comparada às de seus contemporâneos e de seus pares (citemos apenas quatro: Dwan, 1889-1981; Ford, 1895-1973; Walsh, 1889-1982; DeMille, 1881-1959), é a obra de King (1888[1]-1982) que suscitará nos anos por vir o maior número de comentários. A imensidade e a variedade dos territórios percorridos, quase impossíveis de se apreender sinteticamente ou globalmente, um rigor constante, inimigo das idéias preconcebidas e de toda e qualquer ideologia, uma austeridade voluntária, sinônimo de tédio para alguns, manifestada até nos assuntos mais acessíveis e mais espetaculares, por muito tempo desencorajaram e retardaram a exegese. Essa defasagem parece sanada, como testemunham o trabalho gigantesco realizado por Thierry Lemoine, assim como a coletânea de textos reunida no grande volume bilíngüe (espanhol-português) que acompanhou a retrospectiva King no Festival de San Sebastian de 2007. Físico de profissão, Thierry Lemoine dedicou por mais de quinze anos seu tempo livre à análise em detalhe e em profundidade da obra de King. Ele freqüentou assiduamente as principais bibliotecas em que podem ser consultados os arquivos do cineasta e aqueles do seu estúdio de predileção, a Fox. O resultado é um estudo de novecentas páginas infelizmente inédito, cuja publicação é de urgência, pois conta a história de cada filme de King desde a sua primeira forma escrita até o lançamento nas salas. É a biografia de uma obra ao invés da de um homem, e é isto, creio, o que seria apropriado para King. Uma das incontáveis qualidades da obra é a de sempre especificar a contribuição, freqüentemente essencial, de King na elaboração do roteiro em curso. Esses dois trabalhos, que sucedem uma bibliografia extremamente insuficiente do nosso autor, abrem um novo período no conhecimento de sua obra.
Dito isso, é difícil não ficar surpreendido ou intrigado pelo fato de uma obra tão rica não ter sido capaz de vencer os obstáculos que representam, para o espectador um pouco desatento, certas características que lhes são próprias. Intrigado, com as devidas proporções, como é, por exemplo, Borges a propósito de Quevedo, grande figura do século XVI literário espanhol, e daquilo que ele chama sua “glória estranhamente incompleta”. É também este o caso da obra de King, é o mínimo que se pode dizer! Borges tenta explicar essa estranheza por dois fatores que dizem respeito também, numa certa medida, ao nosso autor. Resumidamente: a recusa do sentimentalismo - o que certamente não impediu King de ser o autor de vários dos mais belos melodramas da história do cinema americano: Stella Dallas (1925), ou o episódio O Presente dos Magos (The Gift of Magi) em Páginas da Vida (O. Henry’s Full House, 1952) - e o fato - retomo aqui a proposição de Borges - de que não cunhou nenhum símbolo pelo qual pôde apanhar a imaginação do público. Sua propensão a narrar vidas excepcionais, a tratar personagens fora do comum, que eu havia ressaltado há muito tempo[2], poderia tê-lo feito existir na memória de inúmeros espectadores de seus filmes como uma espécie de Plutarco do cinema. Não foi esse o caso, e a diversidade de suas fontes de interesse sem dúvida encobriu essa tendência unificadora parcial.
Por fim, acrescentemos que nada na sua obra nos esclarece, a priori, sobre tal ou tal aspecto íntimo do seu ego - e, sobretudo, nada sobre um aspecto romântico desse ego. Quanto à sua conversão ao catolicismo dos anos 1940, ela tem um alcance acima de tudo universal na sua obra e não auxilia na feitura do seu retrato. Contrariamente aos seus pares que, cada um ao seu modo, dedicaram-se abundantemente ao tema - e à postura - da nostalgia (nostalgia do Éden em Dwan, das origens e da Terra natal em Ford, de um tipo de vida livre e natural, incompatível com a vida moderna, em Walsh), King, mesmo tendo abordado bastante freqüentemente o passado, o fez muito mais como historiador que como poeta e como passadista. E nós retornaremos mais adiante sobre esse ponto - o qual diz respeito a King ser considerado de maneira bastante redutora por alguns de seus compatriotas como o especialista para uso interno do americana (descrição enternecida da América rural de outrora) - que não bastou para lhe assegurar uma glória durável; é verdade, também, que nesse gênero bem limitado ele por vezes se satisfez em perder a pista. Na maior parte de seus filmes, sobretudo nos melhores, dir-se-ia que somente o real, o tangível e inesgotável real o interessa, que ele se dedica a descrever acumulando a frieza, a serenidade do ensaísta, do historiador, e a sensibilidade polivalente de um grande romancista.
Mas no momento nós não buscaremos considerar a obra de King na sua totalidade. Trata-se somente de assinalar aqui um dado fundamental e recorrente do seu gênio, a saber: ele é, muito mais do que os seus pares, um moderno. Eu não ignoro - infelizmente - que a partir do momento em que a palavra moderno é pronunciada, os mal-entendidos começam. Para alguns, moderno é simplesmente sinônimo de atual, de contemporâneo, e exprime, no melhor dos casos, uma tendência que possuem certos artistas de ser, um pouco mais que os outros, sensíveis aos ares dos tempos e de ter a função de mata-moscas que intercepta as idéias, os clichês que parecem, em certo momento, novos, mesmo sendo de uma total superficialidade e destinados, por isso mesmo, a um rápido desaparecimento. Para outros (e para mim), o termo moderno só pode ser utilizado, sobretudo no cinema, com a mais extrema prudência e só deve ser aplicado a um minúsculo número de cineastas, cuja intensidade de seus olhares ou a singularidade de seus pontos de vista confere-lhes um papel de pioneiros não apenas nas suas visões do real, mas também nas maneiras com que utilizam suas artes. Desse papel eles geralmente não possuem consciência alguma, o que não facilita a tarefa do analista. Tenho, como qualquer pessoa, uma pequena lista de cineastas “modernos” aos quais dedico um culto particular (Yevgeni Bauer, Naruse, Jacques Tourneur, Rossellini, Werner Herzog, King certamente e alguns outros que não citarei aqui). Penso igualmente que, a partir do momento em que a noção de “moderno” é realçada, o termo exige ser sustentado, justificado, a fim de se demonstrar, pelo menos, que se tem razão em utilizá-lo. É o que eu gostaria de tentar fazer a propósito de alguns filmes de King.
Observemos primeiro, e um pouco mais de perto, o método com que aborda suas personagens, principais ou secundárias, as quais representam, como para qualquer cineasta, sua visão da humanidade. Para julgá-la, nada melhor que o exame de um “pequeno” filme produzido com meios bem limitados, como O Órfão do Mar (Deep Waters, 1948). Inédito na França mas visto na televisão, o filme se passa em um pequeno porto do Estado do Maine, de onde o autor do romance aqui adaptado, Ruth Moore, é nascido. A rodagem se deu integralmente nos próprios locais da ação, algo bastante freqüente no caso de King, a busca pela autenticidade (e particularmente da autenticidade local) sendo para ele consubstancial ao ato de filmar. O tema mais aparente de O Órfão do Mar é um curto período da vida de um adolescente de catorze anos (interpretado por Dean Stockwell, mais jovem que o personagem o qual interpreta) cujo pai e tio são mortos no mar e que arrisca, por ausência de acompanhamento, tombar na delinqüência; é pelo menos o que pensa uma parte dos personagens do filme, mas jamais o espectador. O adolescente (a criança) foge de vários estabelecimentos em que havia sido colocado, e no começo do filme uma assistente social (Jean Peters) decide confiar-lhe a uma mulher da aldeia (Anne Revere) ao mesmo tempo austera e sensível, na esperança de que ela saberá cuidar dele. Ele conseguirá se integrar à aldeia? Essa é a interrogação pela qual começa o filme. Haveria aqui matéria-prima para um drama cerrado e bastante linear, mas não é essa, em absoluto, a direção que o filme tomará.
A se notar inicialmente que, em quase todas as seqüências, a narrativa lança notações sobre a atitude ou o estado de espírito de diferentes personagens que dizem respeito à vida desse lugar, evidentemente dominado pelas atividades marítimas. Na primeira cena, sem relação com o menino, a assistente social rompe com o seu noivo (Dana Andrews) unicamente porque ele se recusa a deixar seu emprego de lagosteiro para ir, como ela gostaria, trabalhar na cidade. Do menino, saberemos logo que suas fugas têm por único propósito aproximá-lo do mar. Em uma outra seqüência do início, a assistente social acolhe no seu carro uma velha mulher bastante inquieta pela ausência prolongada do seu marido no mar. A assistente consegue tranqüilizá-la, porém ela mesma permanece bem inquieta. A assistente só reverá a mulher na passagem do cortejo fúnebre do marido desta. O menino rapidamente conhece dois marinheiros, velhos amigos de seu pai e de seu tio: trata-se do lagosteiro da primeira seqüência e de um colega dele, português (interpretado por Cesar Romero), que sonha em trabalhar na terra e coleciona os anúncios de publicidade de trabalhos agrícolas. Nós o veremos especialmente tentando em vão criar galinhas e mais tarde coelhos, dos quais ele infelizmente possui apenas dois espécimes masculinos, insuficientes para assegurar uma descendência.
O garoto, para a sua maior alegria, obtém a permissão para trabalhar um dia por semana com os seus dois amigos, mas não tarda para que essa permissão lhe seja retirada pela assistente social, que repreende o lagosteiro por ter conduzido sem o seu consentimento a criança em alto mar. Ele roubará uma máquina fotográfica a qual tentará revender para reunir a soma necessária para fugir rumo a Boston; ele fracassará. Em seguida ele rouba um barco e se vê em perigo mortal durante uma tempestade da qual lhe resgatarão in extremis seus dois amigos marujos. O menino deverá retornar à casa de correção. Após inúmeras peripécias, a assistente social reconhecerá o seu erro de ter querido reforçar nele o medo quase patológico que lhe inspira o mar. Um pedido de adoção será enviado pelo lagosteiro ao juiz e receberá satisfação (as audiências que levam a essa decisão são de uma verdade e de uma atualidade assombrosas). O garoto poderá viver com os dois marujos, com o segundo prometendo-lhe renunciar de uma vez por todas às suas tentativas agrícolas.
O conjunto de notações agrupadas na história sobre a atitude dos aldeões, graças a um tipo de unanimismo ao mesmo tempo bastante sóbrio e bastante eficaz, leva o filme a viver sob o ritmo das inquietudes, mais ou menos secretas, e das atrações, mais ou menos fundamentadas, que os personagens sentem em relação ao mar. O binômio atração-repulsão, com todas as nuances intermediárias que se conectam, define o próprio coração dessa comunidade de onde se destaca - escassamente - a história do órfão, da qual King conserva apenas aquilo que a assimila e a religa à totalidade dessa comunidade. Assim é tratado em forma de eufemismo todo um aspecto romanesco e violento da ação (que poderia ser enfatizado no plano dramático e emocional), pois isso levaria a insistir naquilo que separa o jovem herói de sua comunidade. Ele extrai da narrativa as seqüências dos dois roubos do menino (máquina fotográfica e barco), assim como o seu breve retorno à casa de correção. Há de fato um climax no filme (cena da tempestade), mas ela se situa paradoxalmente no meio do filme e não ao fim. Para King, seu pequeno herói, longe de ser um estrangeiro no contexto do vilarejo, é aquele que permitirá fazer sentir ao público a pulsação dessa comunidade. Esse aspecto coletivo e global para King tem primazia sobre a descrição individual dos diferentes participantes. Na realidade, a imbricação desses dois aspectos constitui para King o assunto real do filme. Todavia, notemos que, se ele atenua ao máximo o que seria aos seus olhos uma dramatização sumária dos fatos, ele não se nega a sondar aquilo que constitui o conflito fundamental do filme, o qual transcorre nitidamente, mas em águas profundas, e opõe a paixão hereditária e quase genética da criança pelo mar à aversão patológica e irracional pressentida pela assistente social. Conflito exposto aqui longe de toda superficialidade e de todo artifício de narrador.
Se agora considerarmos um filme às antípodas de O Órfão do Mar, pelo seu orçamento e suas ambições, a saber, Jesse James (1939), nós constataremos que o método permanece o mesmo. Notemos primeiramente a importância do prólogo, no qual vemos Jesse James no meio de paisagens da sua terra natal, entre os seus amigos, não cedendo às intimidações físicas e psicológicas que alguns capangas da companhia ferroviária Midland infligem aos seus vizinhos para obter suas terras por um valor derrisório. Rapidamente James reúne os camponeses da aldeia e propõe que eles se associem para financiar os serviços de um advogado. O retorno dos capangas que não se admitem vencidos provocará a morte da mãe dos dois irmãos James, que por sua vez engendrará a vingança de Jesse e o levará a saquear os viajantes da Midland, a fim de lhes levar a se revoltar contra os métodos de seus dirigentes. Até aqui, Jesse apenas reagiu às provocações e à desonestidade de seus adversários e ainda não se separou radicalmente do grupo de que faz parte (os camponeses de uma aldeia do Missouri). Até aqui, ele permanece ligado à sua comunidade pela popularidade advinda da ação que executou com precisão. Vemos a manifestação concreta quando ele se dirige a uma igreja para desposar sua noiva: “Você é bem-vindo como a chuva para as flores”, dir-lhe-á o pastor do vilarejo, traduzindo em termos poéticos a simpatia coletiva dos habitantes a seu respeito. É apenas após cair na armadilha deixada pelo seu inimigo, o diretor da Midland, que se tornará um ladrão de trens profissional, um tipo de lobo selvagem que somente o nascimento do seu neném enternecerá por um instante antes que decida sacrificar toda vida familiar como algo incompatível com suas atividades de fora-da-lei. A partir daí, não é mais a comunidade de seus próximos que é juiz de Jesse, mas a opinião pública com os seus excessos e os seus mitos ambíguos. A partir de então, cortado de suas raízes, ele interessa muito menos King, e, se por vezes é muito difícil perceber as características pessoais do homem King, o que o interessa exatamente se define sempre com nitidez na narração, de modo que, na medida em que conhece o cineasta, o espectador acaba por conhecer o homem com o seu senso moral e suas exigências: é a dialética que se desenvolve em geral, para o nosso prazer tanto quanto para a nossa instrução, na maior parte de seus filmes.
Na última parte de Jesse James, King se aplica sobretudo a esculpir o retrato de Zee, a mulher de Jesse, dando à luz solitariamente o seu bebê. Ao fim do filme nos deparamos com esse epílogo espantoso em que o jornalista amigo de Jesse, que havia seguido, relatado e aprovado - por vezes com excesso - Jesse ao longo de todo o seu percurso, faz a sua elegia com palavras ao mesmo tempo vagas e cheias de sentido: “Não resta dúvida, diz ele, Jesse era um fora-da-lei. Um criminoso. Um bandido. Mesmo aqueles que o amam não dirão nada contra isso. Mas nós não tínhamos vergonha dele. Eu não sei por que, mas acho que a própria América não tem vergonha de Jesse James. Talvez porque ele era ousado e rebelde como por vezes amamos ser. Talvez porque entendemos que não podemos culpá-lo pelo que sua época fez dele. Talvez porque durante dez anos ele levou cinco estados à falência. Ou talvez porque ele se excedia na sua especialidade. O que sei é que foi um dos mais enérgicos, dos mais audaciosos cowboys que cavalgaram através dos Estados Unidos da América.” Vê-se que esse texto relativamente mesurado, colocado na boca de um personagem que durante o filme não o foi, contém uma condenação e depois um elogio de Jesse em que a comunidade de visões e de ação entre ele e seu país não é mais considerada como o motor de sua vida agora concluída, mas serve como uma espécie de circunstância atenuante à imagem violenta e sangrenta que permanecerá dele. Estamos aqui, como durante todo o filme, longe da hagiografia. O destino de Jesse James visto por King é o de um homem enraizado na sua comunidade e no coração da América que será pouco a pouco separado dos seus e de todos (“Ele não possui mais nenhum amigo, lamenta a sua esposa) pelas circunstâncias, pelo seu caráter e por uma espécie de fatalidade que faz dele um ser infinitamente sedutor e atraente que devemos, contudo, in fine, mais desculpar que admirar.
Em Na Velha Chicago (In Old Chicago, 1937), outro grande orçamento de King e filme perfeito, se existe um - na sua construção, no seu movimento, na sua serenidade de tom e no relevo das figuras que o constituem -, nosso autor faz um retrato de grupo, o da família O’Leary, que representa as diversas tendências sociais, morais e políticas que agem em Chicago e que, ao mesmo tempo, nelas participa e as influencia. Uma dupla linha de força em particular anima o filme através da pintura contrastada de dois irmãos O’Leary, Jack (Don Ameche), advogado idealista que morrerá em serviço, e Dion (Tyrone Power), empreendedor ganancioso, realista e cínico, que dará a impressão de poder triunfar sobre tudo, salvo, evidentemente, a catástrofe final (incêndio e inundação) que devorará todos os seus êxitos, seus projetos e a própria cidade. Através desse personagem complexo, King proporciona uma imagem ao mesmo tempo sedutora e fascinante da duplicidade em operação; poder-se-ia mesmo falar em “triplicidade”, uma vez que nos seus diferentes empreendimentos Dion O’Leary deseja satisfazer sua própria avidez, obter conforto e bem-estar à sua família, e, ao seu modo, servir sua cidade. Desta forma, nas suas múltiplas ramificações, a família O’Leary é a cidade - ambiciosa, movimentada e vítima in fine de um desenvolvimento muito acelerado. Notemos também que o filme desenvolve uma reflexão muito atual sobre o caráter não natural das catástrofes ditas naturais.
Seja na sua descrição de uma pequena aglomeração da Nova Inglaterra (O Órfão do Mar), de um herói nacional e anti-nacional (Jesse James), de uma família e de uma grande cidade (Na Velha Chicago), King não aparece, pelos seus métodos e suas convicções, estranhamente próximo de um movimento como aquele dos Anais, e da Nova História, que sonhava em aceder a uma História total, a um conhecimento global do passado, apoiando-se em todos os aspectos da realidade social e nas suas interações, e que preferia o estudo das comunidades, dos grupos e das mentalidades àquela dos grandes homens e das grandes batalhas? A respeito disso e para dar a justa medida das coisas, poder-se-ia dizer que se a preferência por heróis fora do comum faz de King um adepto da antiga História, sua apreensão tão ampla, tão autêntica e tão múltipla das ligações existentes entre os seus heróis e suas comunidades, transformaram-no pouco a pouco em um adepto, sem dúvida inconsciente, da Nova História.
Eu gostaria agora de evocar dois filmes, Estigma da Crueldade (The Bravados, 1958) e Almas em Chamas (Twelve O’Clock High, 1949), nos quais King lançou seu ator preferido (Gregory Peck) em zonas desconhecidas e o conduziu a encarnar personagens submetidos a experiências limites, que não poderiam ser mais originais e insólitas.
Estigma da Crueldade é uma obra estranha na filmografia de King, nem que apenas pelo seu pertencimento ao western, o único gênero em que, após a guerra, King se permite ser verdadeiramente sombrio e violento. Exteriormente, Estigma da Crueldade é um espécime bastante ordinário do gênero, sem ambição particular, de orçamento médio. Se você assistiu a cem westerns, sua originalidade corre o risco de lhe escapar; se você assistiu a mil, ela saltará aos seus olhos. Tudo começa por uma introdução bastante longa (quarenta minutos) de atmosfera carregada, tonificada de religiosidade, mas uma religiosidade sem calor, embora coletiva. Um homem retorna à aldeia de Rio Arriba (Novo México), a qual abandonou há muito tempo. Quatro condenados à morte formando um grupo devem ser enforcados. O homem é primeiramente tomado pelo carrasco vindo fazer seu trabalho, o que ele não é. Ele deseja simplesmente assistir ao enforcamento como espectador. Avisam-lhe que a aldeia está interditada a qualquer estrangeiro até o dia seguinte do enforcamento. Sua obstinação, que supomos ser imensa, quase ilimitada, permite-lhe ultrapassar muito facilmente esse obstáculo. Consegue até mesmo, um pouco mais tarde, autorização para visitar o grupo na prisão. Ele perseguiu os quatro homens - dois brancos, um mestiço, um índio - durante seis meses sem conseguir apanhá-los. Ele olha um por um os prisioneiros e depois deixa a prisão. Em seguida participa, em uma igreja, de uma festa religiosa noturna. Plasticista magistral, King dá a essas primeiras cenas uma grandeza ao mesmo tempo ameaçadora e enigmática, que deve tanto aos locais como à personalidade do herói e a essa estranha festa religiosa que de alguma forma serve como vigília fúnebre precedendo uma execução capital. Durante esse tempo, o carrasco chega, algumas horas adiantado - na realidade trata-se de um cúmplice dos bandidos que tomou sua identidade - e consegue libertar os prisioneiros ao ferir o xerife que o abate. Um dos quatro homens levará consigo uma jovem garota da aldeia, ao mesmo tempo para possuir um refém e porque já tinha olhos para ela. Como os condenados conseguiram escapar, todo o trabalho precisa ser retomado do zero, e é isso o que o visitante tem a intenção de fazer. Ele dará seus conselhos à patrulha formada enquanto prefere, por razões estratégicas, não participar dela. Fim da introdução.
Seguindo só o seu caminho, ele persegue e mata três dos quatro homens, aos quais apresenta antes de aniquilá-los o retrato de sua mulher assassinada. Nenhum admitirá conhecê-la. Discutindo com o quarto homem, ele compreende que nenhum membro do grupo é o assassino dela. O culpado foi assassinado pelo grupo, e foi ele que invadiu a casa do herói e matou a sua mulher antes de tomar posse de um saco de ouro. A busca do vingador, aturdida pelo seu erro monumental, está terminada. Epílogo: ele retorna ao seu vilarejo atormentado, abatido. É aplaudido por todos. Ele encontra sua filhinha, que ele deixou sob custódia, e uma jovem mulher a quem em outra ocasião havia recusado o casamento e que, pouco a pouco, substituiu-se à sua esposa defunta. Ele se confessa ao padre e pede para que este reze por ele.
A vingança é um dos temas recorrentes do western. Ela é geralmente condenada sob o plano moral e mais ou menos compreendida sob o plano psicológico. Aqui, a vingança é uma vingança para nada: o herói afogou no sangue um erro gigantesco e traçou de uma ponta à outra, assim como o espectador, um itinerário falso, pois é habitual no western moderno (Anthony Mann, Nicholas Ray etc.), por mais ambíguo e complexo que seja, que o herói, no caminho que toma, permaneça o herói enquanto guia dramático da história contada[3]. Em Estigma da Crueldade, ele é destituído desse poder e desse estatuto. Seu erro, uma vez conhecido por ele, conduz-lhe a uma vacilação interior próxima da que conheceu, por outras razões, o herói de Almas em Chamas. Vacilação nos limites de um abismo moral, visto que todas as peripécias que viveu, ao invés de adquirir um sentido, perdem-no e deixam esse herói vazio e impotente. Pode-se contestar que se trata apenas de uma variação suplementar no seio de um contexto ‘westerniano’. Ainda assim ela é vertiginosa, ainda mais porque ela se completa numa nota de derrisão (bastante rara em King) nas últimas seqüências, em que o herói (ou anti-herói) se vê, em um mal-entendido completo, aclamado pelos seus erros e pelos seus crimes durante um dos happy ends mais perturbadores da história do western.
Alguns anos antes, King embarcou seu ator fetiche na aventura de Almas em Chamas, sem dúvida o melhor filme de aviação do cinema americano, confiando-lhe o papel do general Frank Savage. Em 1942, ele deve assumir o controle de um esquadrão de bombardeiros especializado na técnica ultra-perigosa do bombardeamento diurno onde as perdas e as derrotas se acumulam, as quais os membros chegam a explicar somente pelas adversidades. Tendo formulado seu diagnóstico quanto ao fracasso do líder que deverá substituir (“excesso de identificação com os seus homens”), ele toma uma série de medidas drásticas. Ele substitui o navegador que havia cometido um erro de pilotagem, e que se suicidará logo depois. Ele se erige contra todo rompimento de disciplina e da segurança no quartel. Ele anula todas as permissões. Ele fulmina o coronel que, segundo ele, deveria ter ajudado o oficial que Savage substitui hoje e o faz sentir vergonha de sua conduta, indigna do herdeiro de uma longa dinastia militar; ele o rebaixa de patente militar e o obrigará a batizar seu bombardeiro “A colônia de leprosos”, onde serão reagrupados todos os soldados que mais ou menos falharam na sua missão. Em um discurso endereçado aos membros da esquadrilha, aos quais ele se recusa, mesmo sendo bastante jovens, a se referir de outra forma que não como adultos, ele declara enfaticamente: “Parem de chorar por vocês mesmos... Considerem-se como já mortos.” Esse regime da ducha fria contínua fortalece a moral dos homens e faz com que voltem a ter uma maior confiança em si mesmos e na sua unidade, a qual passa a obter mais êxitos em seus vôos. Ao mesmo tempo, Savage atrasa ao máximo o envio dos pedidos de transferência que todos haviam assinado. Para coroar os seus progressos, que se encontravam limitados ao território francês, chega uma ordem de missão que estende pela primeira vez seu campo de ação à própria Alemanha. Mas um dia o general, que já havia participado de numerosas missões, não tem mais forças para subir no seu avião. Ele começa a delirar e depois cai em um mutismo do qual ninguém consegue lhe tirar. “Estado de choque, colapso total”, diagnostica o médico do grupo. No sentido etimológico: depressão nervosa. Anteriormente, o superior de Savage havia atentado para o fato de que ele agora era vítima daquilo que havia tanto repreendido naquele que teve que substituir, a saber: uma hiper-identificação com os seus homens. A crise aguda de Savage durará apenas pelo tempo de uma missão.
Assim, a história de Almas em Chamas é a de um homem que contrai a “doença” daquele que ele havia diagnosticado e criticado. Essa “doença”, ou antes, essa deficiência, se é que se pode falar em deficiência, é de ordem psicológica, afetiva. Ela parece poder ser evitada por todas as medidas ao mesmo tempo eficazes sob o plano militar e terrivelmente impopulares sob o plano humano que tomará o herói. Mas finalmente, é essa “doença” que - por um breve momento - triunfa. Após essa experiência, pode-se crer que o herói estará vacinado pelo resto da vida contra ela. É, por conseguinte, uma história paradoxal, moderna, de ensinamentos ao mesmo tempo teóricos e práticos, e à qual somente a força da interpretação dará sua credibilidade e sua grandeza. Levando as reações de seu personagem aos seus limites extremos, King define também uma arte poética, o que não é o menor mérito deste filme magistral. Peck representa para ele, sabemos, o ator ideal, “um ator totalmente desapegado do seu papel, que tenha em relação a esse papel uma atitude fria e objetiva” (cf. a entrevista com Pierre Guinle já citada). Qualidades preferidas por King: distanciamento e sangue-frio total. Não são também as qualidades que ele esperaria encontrar no espectador ideal de seus filmes? Em todo caso, raramente as características do seu estilo (austeridade, concentração, precisão na disposição dos aspectos técnicos da ação) terão suscitado uma tal aprovação e uma tal qualidade de emoção no público, que acabou por fazer desta obra um triunfo. Quanto aos profissionais concernidos, Thierry Lemoine nota que “a US Air Force e a Royal Air Force utilizarão Almas em Chamas como ferramenta de instrução nos postos de comando e de treinamento contra o stress”.
Eu gostaria, finalmente, de fazer um comentário sobre um filme assombroso de King, Cavalgada de Paixões (Wait Till the Sun Shines, Nellie, 1952), ou cinqüenta anos (1895-1945) da vida da pequena aldeia de Sevillinois, Illinois, a cento e cinqüenta quilômetros de Chicago, vistos através da loja de um cabeleireiro. Tenho quase vontade, para dar uma idéia de sua verdadeira originalidade (que pode parecer, como a de Estigma da Crueldade, escondida sob os hábitos e as convenções de um gênero, neste caso o gênero americana), de qualificar esta obra de perversa, tanto Henry King perverteu deliberadamente a relação entre o que um público tem direito de esperar de um gênero e aquilo que colocou realmente. No seio de uma crônica teoricamente reconfortante, comovente, nostálgica, King situou o retrato de um egoísta arisco e obstinado, que dissimula aos seus próximos suas intenções, decide por eles o que é bom ou mau, acredita sempre estar correto e na verdade e por causa disso provoca - direta ou indiretamente - várias tragédias. Completando, tal como uma peça indispensável, o puzzle de toda obra de King, o filme mostra como a expansão natural e necessariamente positiva de uma comunidade durante meio-século (assunto que interessa King especialmente) se nutre de decepções, de dramas, de tragédias e, mais geralmente, das vidas aniquiladas de um certo número de seus membros. Original de ponta a ponta, King demonstra acima de tudo sua virtuosidade em descrever e em enquadrar toda essa abundância de vida em dois ambientes principais, um tão diminuto quanto o outro: a ponta de uma estação de trem e a sala de espera de um salão de cabeleireiro.
Será possível, ao término de uma tão breve descrição de alguns de seus filmes, evocar, como numa nota, a figura, a estatura desse grande criador? Mesmo no coração de Hollywood, King soube preservar sua vida privada e deixar aparecer de si mesmo apenas algumas características, além de tudo marcantes: o cavalheiro do Sul, elegante e um tanto altivo, os olhos claros - um dos mais belos olhares do cinema americano -, educado num meio protestante (metodista), depois convertido tardiamente ao catolicismo (anos 1940), tendo na sua juventude participado como ator em todos os tipos de espetáculos (“burlesco”, “vaudeville”, no sentido americano desses termos, circo, repertório clássico) antes de se tornar, e por muito tempo, o homem da Fox.
A Fox: a firma dos metteurs en scène (Walsh, Borzage, Murnau etc.) nos próprios dizeres dos hollywoodianos; a firma que, associada desde 1935 à Twentieth Century de Schenk e de Zanuck, verá o papel deste último aumentar consideravelmente e criar um estilo de uma alta sofisticação técnica cujos filmes de Preminger são o ponto culminante, a firma também dos grandes afrescos históricos, de Entre o Amor e o Pecado (Forever Amber, Otto Preminger, 1947) a Capitão de Castela (Captain from Castile, Henry King, 1947), a firma por vezes do duplo sentido, produzindo ocasionalmente filmes que exprimem o contrário do que parecem dizer (Clube das Moças [Take Care of My Little Girl, Jean Negulesco, 1951]). Na Fox, King pôde elaborar uma obra muda considerável ainda que pouco comentada - da qual Stella Dallas, Beijo Ardente (The Winning of Barbara Worth, 1926) e David, o Caçula (Tol'able David, 1921), onde consentiu em infiltrar alguns elementos autobiográficos, são os títulos mais conhecidos -, depois uma obra falada um pouco mais conhecida, alternando pequenos orçamentos e superproduções colossais, o todo só podendo existir graças ao encontro de um cérebro criador fora dos padrões e o de um organizador superdotado (Zanuck), ademais o melhor leitor de roteiros de Hollywood. Durante décadas, a confiança mútua e a estima recíproca dos dois homens terão sido perfeitas. A notar que King partilha apenas muito raramente do estilo sofisticado da Fox - cf. o primeiro plano de A Canção de Bernadette (The Song of Bernadette, 1943), que mostra a família desta última dormindo na mansão -, mas permanece fiel à decupagem clássica, fundada sobre a encenação dos planos e a passagem invisível de um plano a outro.
Como fundador de Hollywood, é um clássico; pela acuidade e a variedade de sua curiosidade, pelo seu gosto por extremos, é um moderno recorrente, sem rótulo ou pretensão. Sua obra, que imerge nas raízes de Griffith e afilia-se, duas gerações mais tarde, à de um Werner Herzog, é uma das mais longas a percorrer a história do cinema. É verdade que King enquanto artista é mais um agrimensor, sempre em busca de outra coisa, que um proprietário de temas e de visões de mundo (e isso explica também “sua glória estranhamente incompleta”). De visões do mundo, há quase tantas quanto os títulos de sua filmografia, e o público, que o conheceu pouco, mas adorou os seus filmes, sabia que cada um deles seria pleno de fatos, de informações, de espaços, de psicologia, de moral.
Clássico, moderno, mas acima de tudo anti-barroco, tal foi King. Ele detestava o martelar, a redundância, os efeitos. Para ele o estranho, o inesperado, o comovente, o espetacular deveriam vir das profundezas do assunto e de sua mise en scène. Ao longo de toda a sua vida, ele desempenhou sua partitura como Gide desejava que desempenhassem as de Chopin, ou seja, “sem nenhuma busca por efeitos, com muita simplicidade, mas com uma nitidez implacável e perfeita”.
Notas:
[1] Seus biógrafos atribuem quatro datas de nascimento a King (1888, 1892, 1894 ou 1896), mas a mais antiga permanece a mais provável.
[2] “Um Cineasta da Eternidade”, Écran nº 70, junho 1978, pp. 34-38.
[3] Precisemos que Henry King é o responsável único por essa modificação efetuada no roteiro original de Philip Yordan. Escutemos King: “A propósito de Gregory Peck, foi unicamente pela amizade dele que aceitei rodar Estigma da Crueldade, roteiro que inicialmente recusei por tê-lo achado sem pé nem cabeça. Mas Peck o amava tanto que eu disse a mim mesmo que não o abandonaria. Tomei meu avião e parti rumo ao leste, levando o roteiro que Buddy Adler havia pedido para que eu lesse. Durante o meu retorno, parei em pleno deserto em Winslow, Arizona, e o reli. Inicialmente, tratava-se de quatro bandidos que violam uma mulher, matam-na e em seguida são presos pelo assalto de um banco. O marido da mulher assassinada vem vê-los na prisão, mas eles fogem graças a um cúmplice. O marido os caça e os mata um por um, exceto o quarto por ele ter mulher e filhos. Achei completamente idiota o sujeito poupar um assassino simplesmente porque este tem mulher e filhos. Então ponderei: supomos que nenhum desses homens seja culpado. Havia no roteiro original um personagem bastante desenvolvido: um vizinho que intervinha numa cena e que informava os bandidos fugitivos. Então disse a mim mesmo: por que não fazer deste homem o culpado, por que não fazê-lo atribuir o seu crime a esses desconhecidos que passam por sua casa? Contei minha idéia a Buddy Adler, que a achou muito boa. “Mas o que dirá Peck?” ele me perguntou. “Não tema nada. Ele adora tudo que é insólito e inabitual.” (Entrevista realizada por Pierre Guinle, Écran, nº 70 e nº 71.)
(Trafic nº 76, inverno 2010, pp. 126-136. Traduzido por Bruno Andrade e André Barcellos)
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