JEAN-LUC GODARD OU A URGÊNCIA DA ARTE
Godard só rodou três filmes em 1966. Nisto ele é menos fecundo que Sacha Guitry, que, há trinta anos atrás (em 1936), rodou 5, entre os 3 do ano anterior e os 3 do ano seguinte. Mas Godard possui esta outra fecundidade: suas duas últimas obras são gêmeas - gag, desafio e experiência. De qualquer maneira, a régia independência-Godard de fabulação e de fabricação é, na produção de hoje, o que era a régia-Guitry na de seu tempo. Acrescentemos outros pontos de contato: o gosto por apresentações requintadas, a parte de auto-narração (em Guitry prolongamento desse divertido jogo de ostentação que era a máscara de seu pudor; em Godard o desmascarar desse mesmo pudor) e o gosto pelo discurso, em todos os dois manejado de maneira radicalmente diferente. Aqui, outro parentesco: o espírito de provocação e de subversão, já incluído no próprio processo de criação.
Mas a grande diferença está no ambiente de onde os dois surgiram, o qual eles restituem. O cinema de Guitry era um cinema de entre-guerras, o de Godard é de entre-mundos. O tempo, então, parou[1], não se sabia para onde se ia. Agora, sabe-se, o tempo enlouqueceu. Na época de Guitry era o desperdiçar eufórico de substância e a profunda, mas encantadora, tristeza das épocas terminais. Agora são as turbulências, no seio das quais um mundo agoniza e outro nasce. Em sangue e dores, certamente.
Em suma: nós estamos no fim desta longa transição que foi marcada por duas ou três coisas como Hitler, Stalin e Mao. O problema, agora, será indiscutivelmente, com toda a simplicidade, o apocalipse. No sentido em que Céline dizia: “Os Pithecanthropus mudam de mito. O sangue vai jorrar.”
E em Godard o sangue jorra. Seqüência do Masculino-Feminino de ontem, caldeirão de cultura do qual surgiu o germe da Chinesa de amanhã, eis aqui com Made in U.S.A. e Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela as hemorragias conjugadas de sangue e de sentimentos nas conturbações do nosso tempo - conturbações que são o motor desses filmes, radicalmente moldados.
Made in U.S.A. é um filme variegado como uma estaca de tortura. Com as cores de Pierrot, sem dúvida, mas com duas ou três gotas a mais que fazem transbordar o recipiente. E com a trama (polícia e política) de O Pequeno Soldado, mas cujas malhas transformam o motivo e cuja resolução súbita - extraída, fugida - nos faz desembocar repentinamente em pleno ar condicionado (ou talvez isto seja oxigênio puro, como nas cabines das missões Apollo?), em suma, nos faz mergulhar em uma preparação previamente estabelecida.
Sem dúvida alguma nós passamos para uma outra dimensão. Para a dimensão da aposta, análoga (salvo o automóvel, aqui um 404 ao invés de um Ford U.S.) àquela que encerra Alphaville, hipótese a se arriscar (de artista, de sábio) sobre uma sociedade, a tentar sobre esta como se tentou sobre aquela. Duas ou três coisas que se tenta sobre ela. Nós veremos bem.
Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, ele, segue com o mesmo combustível (sexo e sociedade) de Uma Mulher Casada e Masculino-Feminino. No sexo e na construção, nada funciona. E eis aqui o indivíduo, o casal, a cidade, a política... todos elementos que são incorporados ao longo do caminho por esse motor que, sendo de dois tempos, passa muito rapidamente a três movimentos e quatro velocidades. Eis, portanto, toda a cadeia social (os sinais e as malhas do tempo desenhando um no outro, cada um por si, as suas histórias), recolhida em um gênero e em um estilo que Godard, após ter fornecido dois ensaios, encerra. Por outro lado, a história que Made in U.S.A. retoma, Godard já a havia retomado e realizado precedentemente (salvo que ele a amputa aqui de algumas coisas, as quais ele substitui por outras), e de qualquer forma, faz parte do seu estilo ser, também, clássico.
Mas há um ponto em comum entre os dois filmes. É a jovem torturada de olhos vendados de Duas ou Três Coisas, que poderia se encontrar perfeitamente em Made in U.S.A. (e se encontrar também em todos os Godard nos quais nos parece agora que seu lugar, vazio, a aguarda), vítima de algum ajuste de contas sexual, econômico, político - sendo o dinheiro, causa da prostituição universal, o denominador comum.
Se, agora, nós nos lembrarmos daquilo que foi dito em O Pequeno Soldado sobre o tempo da reflexão e o tempo da ação (e daquilo que foi dito por Godard sobre o cinema lhe conduzir à vida), vemos que a urgência de mostrar e de dizer (em obra desde os primórdios, com as fulgurantes incursões de Godard nos campos das manchetes e outros sinais do nosso tempo, agilmente captados por suas antenas) desemboca na urgência de subversão formal, econômica ou política. E isto nos leva a essa outra expressão do mesmo Soldado, da qual os O.A.S. e os F.L.N. se serviam de seu elemento comum Lênin: “às vezes, é necessário abrir o seu caminho com um punhal.” Ora, Godard, nos seus gêmeos, faz uso não só do punhal como também da lança (e em Duas ou Três Coisas até mesmo de saltos agulha U.S.), ambos de todas e as mais diversas espécies. Sem dúvida, deve-se escavar feridas e abscessos - esvaziar o corpo de um veneno -, a menos que não se deva esvaziá-lo de todo o sangue para alguma transfusão completa, ou esvaziá-lo, por que não?, de qualquer resquício de vida. Agora, que sabemos que as civilizações são mortais, pode-se pensar que, às vezes, é necessário ajudá-las a morrer. Outra aposta. Por qual melhor ou qual pior?
Em tempos de punhais, deve-se se tornar um pouco punhal? Ou digamos: em tempos de cegos, cegueira - modo possível de “cegado”? Ora, então nos tomarão por guias. Como se toma os cegos por guias nos passeios noturnos de Emmanuel Delahaye ou (para tomar em Luc Moullet o aspecto diurno da mesma idéia) como as Brigittes tomam o cego por guia quando elas querem atravessar as transparências da urna O.R.T.F.
Assim, a melhor maneira de acender a luz de um povo embrutecido pela inundação contínua e inflacionária da imagem-som - informação e publicidade inclusas - é (através uma operação do tipo homeopática- a menos que se considere o raio luminoso do aparelho de projeção como o instrumento - bisturi a laser - de uma lavagem cerebral) a própria imagem-som.
Nós tivemos a primeira etapa da operação nos Cahiers nº 184, quando Elia Kazan dizia, após falar sobre a televisão: “Neste ritmo, nada mais tem significação...” De onde: “O quê, então, deve fazer o artista, se não isto: forçá-los a ver, forçá-los a sentir, porque eles não querem ou não podem mais sentir por si próprios... Parece-me que o quê um artista deve fazer é: Parem! Venham! Parem! Olhem! Olhem isto! Sintam isto!...”
Cuidar da inquietação pela inquietação, eis o que permite situar o sexo na obra de Godard. Nosso mundo tende a se colocar sob o signo da sexualidade (sonho de um paganismo perdido), mas só alcança a obsessão doentia. Por quê? Porque nos libertamos mal de (ou nos acorrentamos mal a) outro sonho: o sonho do angelismo, que nos foi imposto pela neurose judaico-cristã. Ora, Godard é de formação cristã, mas é justamente no interior desse meio (o protestantismo) que, a partir de um puritanismo sui generis, ele paradoxalmente termina por alcançar um certo tipo de equilíbrio entre a recusa e a aceitação do mundo como ele é: sexuado. Aqui, novamente, podemos constatar que a exata expressão da sexualidade somente é feita por cineastas de formação protestante. Ingmar Bergman, ou, entre nós, Roger Leenhardt, quando em Le rendez-vous de minuit ele condena a licenciosidade pelo emprego da livre obscenidade. Devemos dizer que a censura foi rápida em trazer o episódio ao nível do licencioso, pela mesma operação que a fez trazer ao mesmo nível O Silêncio de Bergman - filme este projetado em sua íntegra em todos os países protestantes.
Mas, no domínio da sexualidade, Godard nos provoca duplamente. Diante das nossas obsessões, por seu puritanismo (sua pintura feroz da chamada “civilização do cu”), diante das nossas inibições, ao exprimir livremente o amor sexual e ao exprimir a necessidade dessa expressão. Puritanismo e franqueza andam de lado a lado. Tanto nos atos como nas palavras. Pensemos no Pequeno Soldado quando, diante das recusas da moça, ele diz: “Não se deve oferecer os braços aos homens quando não se quer fazer nada com eles.” Eis agora, em Duas ou Três Coisas, o teste que o rapaz faz a moça passar sobre a fraqueza e a inibição na expressão do sexo. E isto nos remete às lições e exercícios de linguagem que encontramos em todos os Godard, todos assombrados pela mentira.
Se pensarmos que foi o cristianismo que, com o seu sonho maníaco de angelicismo, engajou o mundo na via do que nós chamamos progresso e história, ou seja (o anjo eventualmente fazendo o papel de besta), na via do materialismo, podemos perceber o poder de subversão que possui a operação franqueza. Pois a mentira e a hipocrisia (com as quais era necessário preencher a lacuna que se instaurou entre os dois pólos, dos quais nenhum era habitável) se tornaram os próprios elementos constitutivos desse mundo, um mundo que não resistiria por muito tempo à franqueza dos atos e das palavras.
É curioso que seja um sonho de paganismo - consciente e deliberado - o que encontramos, também, em Picasso (mesmo que ele tome também por tema de uma de suas obras um fato político-policial - Guernica), além desta decomposição e recomposição precisa do mundo efetuada pelo seu punhal-pincel, instrumento demiúrgico de uma monstruosa e maravilhosa teratologia.
É não menos curioso notar que Picasso provocou por muito tempo, ele também, muito ódio e desprezo. Deve-se, contudo, notar, igualmente, reações de uma outra ordem: a tristeza, ingênua ou racional, de ver que o mundo de Picasso, separado do nosso, se arrisca a dividir-se.
Ora, justamente, o cinema - arte fundamentalmente realista, arte que vos obriga, em todos os estágios, a lutar contra o peso das coisas e das pessoas - só pode, por sua própria natureza e funcionamento, prender-vos duplamente ao real - ao mesmo tempo que o figura, ou o transfigura. É a isso que remete Jean Pierre Lefebvre (Cahiers nº 186) quando ele liga “a duração da vida, a duração da realidade, do concreto, a duração do próprio cinema”. E é isso que Godard ilustra quando diz que se pode se ver pintores ou escritores enlouquecerem, mas nunca cineastas: “O cinema impede o enlouquecimento.” Ele impede o enlouquecimento, e ele próprio não pode enlouquecer, como o que se observa de vez em quando em alguns cuja arte, por querer refletir-se a fórceps (porque na sua vergonha de se saber nu acaba se recobrindo de espelhos para remeter a esta imagem), acaba somente remetendo (suprema obscenidade) a si mesmo. Delírio angélico de círculos puros, logo viciosos: é, bizantino ou babélico, o apocalipse semântico. Assim, o cinema, cujo realismo vos preserva de desmesuras adversas da fuga ou da incrustação, é a arte que melhor pode enunciar, denunciar, deflagrar a hipocrisia radical dos angélicos materialismos.
É também o realismo do cinema que pende a mola dos seus mais belos movimentos. Pois quando, tomando a realidade como base, o cinema tende a se afastar dela mesmo que por um fio de cabelo, ele alça seus vôos mais fulgurantes. Quando ele aterrissa pelo mesmo fio, o impacto é não menos fulgurante. Godard, justamente, é o vôo e a aterrissagem, sem cessar, sob todos os ritmos e amplitudes possíveis. É de se acreditar, por momentos, que nos arrancam do mundo, mas com dificuldade dizemos a nós mesmos que somos reconduzidos, no mesmo movimento, em um mergulho de kamikaze, como se o piloto quisesse esmagar a base de onde acabou de decolar.
Justamente: esses movimentos que fazem tremer a câmera em toda a sua carcaça - e nós junto - até o limite da desintegração, são talvez experiências, tentativas, testes, em vista de uma outra reintegração. Trata-se de se testar o vaso, ou o seu conteúdo para, a partir de um, modificar o outro. Ao limite máximo (Alphaville): “Mudar as palavras do sentido, ou os sentidos das palavras.” Porque se deve começar pela linguagem, como se observa através de todas as reflexões lingüísticas de Godard, mais o pequeno exercício de teratologia linguística que nos faz, em Made in U.S.A., um caminhoneiro bastante brigitteano, exercício que funda, pelo absurdo, o seguinte: este, já mencionado, de Duas ou Três Coisas.
Desses dois exercícios, pode-se dizer que o primeiro nos faz sair da realidade e o segundo nos faz voltar a ela. Mas não é também o inverso?
Em suma: nós temos neste caso um dos movimentos de trocas que não cessam de animar o campo comum da obra e da realidade, esse campo cujas mensagens são captadas pelas mesmas antenas que permitem receber o real e o cinema (isto é verificável, por sinal, todos os dias porque aquele que não sabe captar um não saberá captar o outro). E o mundo é vivido, e feito, por aqueles que captam.
Entre esses, alguns podem também emitir. Eles, então, descrevem aquilo que se mexe, ou, pelo menos, tentam explicá-lo. Às vezes são jornalistas, raramente sociólogos; às vezes sábios, raramente filósofos. Alguns outros, criadores, podem também extrair dessa realidade uma obra que dela é, ao mesmo tempo, sua mise en forme e sua superação. Ora, Godard é daqueles que percorrem sem cessar e nos dois aspectos acima expostos os diferentes graus dessa escala, alternando sem cessar os dois tempos: o da recepção e o da emissão. Notemos que o ano de 1966 (que vai de Masculino-Feminino a Duas ou Três Coisas) é precisamente o ano em que o mundo começa a tomar consciência de um certo número de mensagens (que apenas, há poucos anos atrás, dois ou três ostrogodos com antenas particularmente afinadas percebiam). Assim, o mundo começou a tomar consciência das vontades da juventude, e a juventude, de suas vontades. O que ela quer: que essa civilização morra - a qual, para o bem ou para o mal, tem os E.U.A. como último pilar. Por aí nós regressamos a Made in U.S.A. ou Duas ou Três Coisas, as duas etapas da escalada que vai de Masculino-Feminino a A Chinesa.
A operação escalada se faz aqui com o auxílio de decomposições precisas e de recomposições formais. Os processamentos e as bariolagens das duas obras não são mais arbitrários que a estaca de tortura. Godard extrai, cauteriza, recorta o essencial, retira dele fragmentos significativos (alguns reencontrados de filme a filme, diferentemente posicionados e enquadrados), e esses fragmentos são suficientemente conectados para que cada um possa reconhecer o seu real, e suficientemente desconectados para que descontinuidades se estabeleçam, margens que a imaginação deve povoar, animar, como ela anima (vivendo-a, recriando-a a partir de suas regras - precisas, não nos esqueçamos) o discurso de um mito, feito ou por se fazer.
E é essa a operação simples e fundamental de todo espectador que participa da obra que lhe é oferecida. Operação que é neste caso mais elementar já que Godard só exprime o simples e o fundamental. E, ao mesmo tempo, complexo, é claro, como se pode ver na xícara de café de Duas ou Três Coisas que, em um mesmo movimento (muito Um Corpo Que Cai e muito Victor Hugo), exprime, do micro ao macro, todo o cosmos, nós incluídos, pois vivemos a ação da contemplação - e o inverso. Desta visão primeira e universalmente compreendida, nós temos aí o primeiro grande equivalente no cinema. Cabe a cada um vê-lo e compreendê-lo como o vê. Aceitá-lo e aceitar-se dentro dele. Aqui como em outra parte qualquer. Porque em qualquer outra parte também as idéias de Godard, as grandes ou as pequenas, participam da natureza evidente e simples desta. Evidentemente, pode-se sempre recusar. Pois bem. Logo, recusa-se a entrar e a participar do jogo. Pouco depois, se sai furioso.
Mas claro! O jogo continuou sem você: Ah! Mas é exatamente isto que irrita: queria-se jogar. Somente que em um outro jogo. Ok então, mas nesses casos é melhor se prevenir. Deve-se saber o que se quer. E fazer com que se saiba. Regras na mesa. Mas inútil insistir quanto ao jogo e quanto aos jogadores. Regras na mesa, diz-se: eu jogo bridge, não poker. Mas ninguém se mete numa mesa de poker com a idéia de aplicar as regras do bridge, botando tudo a foder, gritando com os jogadores e declarando que seu jogo é idiota. Pode-se, sim, talvez, preferir um outro, porque o jogo deles é o único. Só que ele, esse jogo, é ele e não um outro, e se não se quer jogá-lo, deve-se dirigir-se à mesa ao lado.
Godard não é o único, e ele não fez tudo, ele não disse tudo totalmente sozinho, o tempo todo. Ele é apenas ele, Godard, e isso já não é nada mal. É um pouco daquilo que disse Claude Lévi-Strauss (que, aliás, não gosta muito de Godard, nem de Jung, nem de Picasso - que o admira bastante, ainda assim): “Àqueles que me dizem que há uma outra coisa, eu só posso responder: muito bem, faça o que quiser. Eu só peço que não se caia no dogmatismo. Faz-se o que se pode, lá onde se pode.”
Nota:
[1] Referência ao filme de Ermanno Olmi, O Tempo Parou (Il tempo si è fermato, 1959) (n.d.e.).
(Cahiers du Cinéma nº 187, fevereiro 1967, pp. 26-33. Republicado em Jean-Luc Godard, seleção de Haroldo Marinho Barbosa, Coleção “Arte do Espetáculo”, Gráfica Record Editora, 1968, pp. 75-84. Traduzido por Marcos Ribas. Revisado por Bruno Andrade)
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