JEAN-LUC GODARD E A INFÂNCIA DA ARTE
por Michel Delahaye


O cinema de Godard é, indiscutivelmente, o que há de mais ousado, de radical, de mais belo nos dias de hoje. Vida, obra: é a mesma marcha, uma pesquisa total; é o mesmo movimento de viver para ensinar a viver, a mesma aventura. E esse movimento chama, suscita, engloba todo o resto, que surge por adição, a outra dimensão da vida: seu estilo, que a faz poesia, música, arte... tudo, enfim. E tudo está sempre em contato com Godard, tudo se estabelece e se encontra nele próprio. Tudo pode sempre surgir, entrar, nascer... É necessário, portanto, dizer que seu gênio é, ao mesmo tempo, ser e deixar ser, fazer e deixar fazer. Deve-se dizer, também, que ele começou por fazer e por deixar nítida a sua posição.

Assim, Masculino-Feminino é extremamente simples, tudo recomeça do zero: nada além de um filme sobre nada além da vida. E é, torna-se, ao mesmo tempo, jornalismo, televisão, ficção atualizada ou atualidades reconstituídas, ensaio, poema... Mas entremos na obra por um viés ainda menor: pelas reações diante do filme das pessoas filmadas, que dizem, como os negros diante de Eu, um Negro: Eu não!... Rouch os captou mal, Godard também, eles são tudo menos isso. Por quê?

Um indivíduo, um grupo, sempre têm esta reação de recuo e de defesa em relação a um retrato justo deles. É porque não se vê nem se sabe tudo de si próprio, e, sobretudo, do que implica e desimpede seu comportamento, e que, além disso, não se pode impedir de comparar esta imagem de si que vimos (que foi tomada e contra a qual nada mais pode ser feito) àquela que se queria ou se gostaria que fosse. Tudo isso, realmente, provoca muito transtorno. Incluindo isto: a verdade que Godard extrai dos seres é uma verdade que se estira entre o documento e a ficção. Esses seres são eles mesmos, sempre e nada mais que eles mesmos, mas Godard os faz percorrer toda a escala de seus comportamentos - reais, possíveis, prováveis, no máximo: hipotéticos -, os faz atualizar algumas de suas virtualidades próprias, os faz significar, ao mesmo tempo, o que eles são e o que eles tendem a ser. Por isso vê-se desenhar-se a figura daquilo que, através deles, o mundo tende a ser.

Dessa forma, o que Godard fez foi um pouco de ficção-consciente[1], ou o flash-forward de uma ação já em decurso, ou o trailer de um filme ainda em mixagem, exceto que “o nosso próximo espetáculo”[2] é aqui o próximo (e melhor) de nossos mundos.

Isso não significa que Godard se lisonjeia ao predizer tal coisa. Ele quer somente ver e dizer de forma justa. E isto, inegavelmente, já é muito. É até mesmo tudo, pois o resto é conseqüência disso. A forma vindoura de um mundo, de um ser - destino, se quisermos -, já está inscrita no mais profundo de si. Tudo se encontra ali, é só analisarmos profundamente. E é exatamente por ver profundamente que Godard desconfia de certas superfícies. Se ele insere em seu filme a sondagem da opinião pública (e todos os seus filmes têm, em alguma medida, um pouco de enquete) e se serve disso, ele não deixa de nos convidar (esse recuo que ele freqüentemente nos incita em virtude daquilo que ele nos mostra) a desconfiar de seus resultados (graças aos quais alguns se vangloriam de poder predizer). Seja como for, o que ele faz (e nisso ele alcança e ultrapassa todo mundo) é a sondagem da alma.

Aqui, eu penso em um homem de que muitas vezes se disse (para elogiá-lo ou reprimi-lo) que falava profeticamente: Bernanos. Ao que Bernanos respondia, justamente, que se contentava em ver bem as coisas, e que talvez fosse por isso que ele via algo além das coisas: aonde elas levam. Que se chame isso de profetismo ou de lucidez, não importa, é sempre a mesma coisa. O importante é que Godard possui isso.

Ele possui a lucidez, a intuição, que opera em doçura, ou por efração, esses relâmpagos que iluminam, por instantes, as profundezas, as faces escondidas dos seres ou das coisas. Viver a Vida era todo feito dessas iluminações, para citar um filme cuja heroína tinha um porte de Mouchette.

Remontemo-nos aqui ao Pequeno Soldado, que começava com uma citação dos Enfants humiliés, e este outro ponto comum impressiona: Bernanos fala muito sobre política e sobre juventude (em Enfants humiliés, entre outros), ele dizia inclusive coisas que só agora começamos a perceber. Ora, O Pequeno Soldado é também o filme que nos permite verificar, sob um ponto de vista limitado mas preciso, o que é, na verdade, a lucidez Godard. Como em todos os seus filmes, o que era capturado era o espírito, o tempo e a aventura - o espírito da aventura do tempo, o espírito do tempo da aventura... - mas tudo isso se ligava, naquela ocasião, através de eventos aparentemente marginais: ações limitadas e localizadas de grupelhos mal organizados e que tinham um nome de romance de aventuras: A Mão Vermelha. Isto, mais tarde, se transformaria na O.A.S.[3].

O Pequeno Soldado era também a tortura, hediondez cuja repetição equânime no filme fez com que fosse vaiado, pois ninguém, tanto de direita como de esquerda, queria reconhecer tal coisa como extensiva a seu respectivo grupo. Donde a exagerada e uníssona reprovação. Aqui, outro pensamento para Bernanos (tem-se tão poucos para ele, hoje em dia), que teve uma longa prática com imbecis.

Ora, Godard dizia a respeito da tortura: “É monótona e triste. É difícil de falar sobre ela, e por isso falarei pouco.” Assim ele definia um aspecto capital de sua atitude e de sua visão: por um lado, não falar daquilo de que não se pode falar; por outro, falar daquilo que é, na realidade, o mais terrível: a banalidade do atroz, e a atrocidade desta banalidade.

O horror não é mostrável: mostra-se e só se pode mostrar muito ou muito pouco. O suficiente para se fazer o espetáculo, para fascinar, repelir um pouco, ou habituar um pouco, mas ou não é suficiente ou já é demais, caso seja necessário iluminar a consciência. Tanto isso acontece que o horror, na maioria das vezes, aparece como o produto mais ou menos excepcional de seres ou de circunstâncias mais ou menos excepcionais. É aqui que Godard faz o seu jogo, inscrevendo o horror no banal e o banal no horror. Isso pode ser mostrado e, inclusive, todas as possibilidades morais e materiais se conjugam aqui, as quais permitem que se mostre tudo.

E que Godard, também, mostre. Por um lado, como mesmo aquilo que o horror contém de excepcional (a tortura) se inscreve nos gestos, nos reflexos, nos hábitos de cada dia (hábitos esses inseridos no meio de outros hábitos: o torturador, as roupas de baixo, a banheira etc...); por outro lado, em Tempo de Guerra (a partir de seres com consciências já obscurecidas, diferentemente dos primeiros que se obscureciam por justificações), como se pode, de maneira corriqueira, viver o horror: a guerra.

Godard nunca sugere o horror. Ele o mostra em fragmentos, mas que representam a totalidade daquilo que ele é. Ele desenquadra certas perspectivas, mas é para, com isso, abrir outras, insuspeitas, vertiginosas, e, em todo caso, para nos lançar no essencial: o ponto de fuga, aqui igualmente o ponto de não-retorno.

Sigamos o fio. Nós temos em O Demônio das Onze Horas as propostas e os gestos felizes (e musicalmente felizes - uma volta de parafuso) de um casal na madrugada, num quarto com armas, ao lado de um cadáver (o cadáver e o passante de Acossado). E Viver a Vida: a porteira recusa a dar a chave para Nana. Sem quarto. O porteiro a arrebata, pequeno beijo em sua mulher. Fim. (Teríamos aqui um grau a mais ou a menos no atroz, que se tornando menos caracterizado - e mais insidioso - caracteriza um maior número de seres?). E ainda: Nana descrevendo ao comissário a cena da denúncia: “Acho isso tudo lamentável...” (e a denúncia de Acossado). Mais longe ainda: é Pierrot ao pequeno garagista - simples constatação: “Você bem que gostaria de um carro como esse, não é? Pois bem, você nunca terá um”. Com isso, o atroz perde ainda mais sua caracterização. Ele alcança agora uma extensão maior. Simples fato social. Ele se encontra em toda parte. Como em Tempo de Guerra. Simples fato social. É a guerra... Nós só fizemos mudar de nível. Mas os níveis se comunicam em diversos pontos. Há permutadores desses níveis aqui, eis um deles: é Ulysses, que quer comprar o carro grande, com a carta à guisa de dinheiro. “Não, isso não vale...”

Mais longe ainda (ainda... eco de Tempo de Guerra): basta alguns gestos, palavras, entonações, olhares (desses que penetram Michel Piccoli em O Desprezo). Uma Mulher é uma Mulher (comédia musical): o casal que se destrói. O “Eu não te amo”, proferido propositalmente (embora ela pense: Eu te amo). Eis aí uma das gêneses, uma das infâncias do mal, tanto vertigem como enrijecimento que nos obriga a prolongar um pouco mais, e mais um pouco, o prazer, a dor de fazer o mal, ou de se fazer o mal (e O Desprezo: a provocação de Bardot, que enumera palavrões friamente). Rigidez, desafio, endurecimento, complacência (vícios supremos: os do espírito), a engrenagem é diversa, mas sempre com a tentação da 491ª vez (caso se possa pecar 70x7 vezes): aquela a mais, aquela que nos faz ultrapassar o ponto do não-retorno. E seu nome é sem dúvida: pecado contra o espírito, pois, na verdade, o espírito morre: esta coisa que achávamos fascinante, sobre a qual nos debruçávamos, ou que desafiávamos, um dia ela nos possui, e, então, a palavra que melhor nos define é talvez: alienados.

Chama-se também alienação o estado em que se encontram aqueles que são mais vítimas do que autores do obscurecimento de suas consciências - simples resultado de simples fatos sociais. Estamos novamente em Tempo de Guerra, onde a engrenagem da guerra é sustentada e reprisada por seres já reduzidos à miséria. Outro ponto de contato: nossos soldados matam porteiros: os alienados se matam entre si...

A miséria. Eis o metrô de Bande à part (e Masculino-Feminino) e sua canção (e jukebox, café: as de Uma Mulher é uma Mulher e Viver a Vida), e, através do desespero, do abandono, da amargura, da ternura, em grandes pinceladas que condensam belezas até então dispersas, alguma coisa floresce em direção à alegria (um outro pensamento para Bernanos, outro para Dreyer, outro para Bergman).

Mas sempre floresce alguma coisa. Mesmo em Tempo de Guerra - pequenos lampejos fugazes. No olhar de Ulysses para uma jovem senhora floresce um plano em que se capta a consciência, na recitação do poema diante dos fuzis, vê-se os rostos dos fuziladores iluminarem-se. E há, certamente, em Alphaville os primeiros arrebatamentos da consciência de Anna, sobre os poemas perdidos.

Os dois filmes acima citados - Alphaville, Tempo de Guerra - são fábulas, mas feitas a partir de elementos inscritos no espírito e na carne de nosso tempo. Dois mundos tangentes ao nosso (um pouco como o de O Pequeno Soldado lhe era tangente, antes de ser inscrito nele), mundos diferentes, na medida em que são diferentemente repartidos o real, o provável, o possível, o hipotético, mas mundos comunicantes: o nosso serve de permutador.

Com Alphaville, eis de novo o horror habitual. Aqui, sob uma forma limite (obtida se dando uma volta de parafuso em algumas atualidades): o assassinato (liquidação dos irrecuperáveis), dado habitualmente como espetáculo, o assassinato, fato e rito social. (Um pouco do que se encontra nesta outra “science-fiction”: La journée du meurtre, de Siniawski). Alphaville é, também, em Godard, o único mundo absolutamente perdido. Após a luta sem piedade de Lemmy contra os robôs, um único justo será salvo. De seus outros mundos, nenhum que mereça, por motivo algum, ser amado, nem mesmo o de Tempo de Guerra. Nenhum onde nos sintamos totalmente perdidos. Reconhecemo-nos. Estamos entre nós. Entre crianças perdidas.

Para ir assim, do mesmo passo, da dureza à ternura, vivê-las, mostrá-las, por dentro, por fora, tomar, recusar - e escapar das armadilhas da complacência (e são muitas, como também o amor, podemos nos perder) para viver essas dificuldades, é necessário muita força. Eu quero dizer com isso - caso se deva insistir - que não se saberia colocar Godard tanto entre os otimistas como entre os pessimistas. Aqueles que se designam assim são os fracos, os que não souberam resistir às dificuldades e eventualmente inclinaram-se para o lado mais atraente. Ficaram assim. Anquilosados. Especializados. Bernanos dizia do otimista e do pessimista que o primeiro é um imbecil feliz e o segundo um imbecil triste.

A verdade é que - por temperamento, experiência ou hipótese - o desespero é o motor principal da obra de Godard. E é assim que ele se coloca na linha dos Grandes Taciturnos: os Swift, Chamfort (não La Rochefoucauld, imbecil triste), Fritz Lang (Fúria: filme impiedoso, onde a justiça e a vítima acabam por tornarem-se mais odiosos que o foram os carrascos e a injustiça, filme do qual apenas agora se começa a compreender tudo o que anunciava), Louis-Ferdinand Céline, todos, tanto quanto sejam provocantes, exaltantes, revigorantes, euforizantes, nossas armas da última chance, o grande remédio, drástico, para atravessarmos o cabo da desesperança. E a propósito de terapêutica, penso no que certos psiquiatras praticam às vezes, em desespero de causa e de ortodoxia, sob o nome-código de “terapia-pé-na-bunda”.

Mas fechemos nosso círculo. Nós estávamos nas crianças perdidas. É curioso: eu penso aqui em Bernanos, que diz da juventude (em uma época e que ela ainda não era - pelo menos nesse grau - o “problema” do mundo) que ela o vomitaria um dia, esse mundo impossível de se viver, o lançaria ao ar, pois ela seria suficientemente forte (se ela encontrasse o seu profeta e lhe ordenasse se arremessar pela janela) para ir até o fim e fazê-lo. E os imbecis, que não têm esta têmpera, não podem nada contra os que têm essa força.

A juventude tem a diligência total. Cuja beleza é inerente ao fato de que o ser inteiro está sempre prestes a se colocar em jogo. Como fazem os “pierrots” de Godard. E le fou é o mais belo, que se lança, de desgosto, para fora da sociedade, enquanto ela e ele, mal ou bem, se aceitavam, louco ao ponto de fazer para si (através do amor) um destino de morte. O pequeno soldado, por sua vez, para escapar de um outro destino, experimentava uma outra loucura: provocar esse destino - arremessar-se pela janela. “Só se tem a chance que se merece”. Mas em todos os casos é a corrida para a vida: abandonamo-nos, abandonamo-la: à morte.

Isso, a aventura?... E todas as aventuras seriam belas?...

– Todos aqueles que se arriscaram totalmente partilharam, de algum modo, do mesmo espírito. A feiúra é aquilo que não é habitado por este espírito.

A corrida pela vida é também imitar a vida, a verdadeira, a ideal, aquela cujos filmes ou romances fizeram sonhar. Belmondo, Bogart; o pequeno soldado, guerra da Espanha; os Arthur, westerns; Pierrot, os Robinsons - que são dois - Jules Verne no centro - e Céline entre eles.

Robinsons. Sonhos da natureza. Como surgem essas nostalgias da comunicação, da comunhão totais? Não há necessidade de referências, nem a um longínquo outrora, nem ao mais próximo Rousseau. Basta um passeio pelas ruas. Nada além de solitários. Diz-se que as pessoas são separadas; é bizarro, algo deveria fazê-las ser uma só. Diz-se isso, precisamente, em Bande à part. Onde Godard diz, por Arthur, Franz, o que eles não podem formular de saída, como o fantástico, próximo disto. Rimbaud, Poe; o Barco, o Pym. Poe (que gostava muito de Jules Verne) é reencontrado em Viver a Vida com o seu retrato do artista.

Sim, nós dizemos: eles são ingênuos. E Godard também. E os que o amam também. Há uma outra coisa de que Bernanos falava muito: o espírito da infância. E este se encontra lá onde sonhar, ver, crer, fazer, viver fazem parte de um mesmo movimento ingênuo, que toma o controle da rapidez, os problemas de surpresa, e se acha no coração das coisas. Isso está em Godard: é isso o que nos mostra, mas para a maior parte das pessoas, não o é. Nele, é exatamente disso que sofremos. Então nós quebramos tudo, ou tudo se quebra. Ou, ao contrário, retrucar, desaparecer. E escolhemos nada quebrar, nada tocar, mesmo. E que nada nos toque. Nós: a inquietante, patética pequena fauna de O Pequeno Soldado.

Ela incuba. Ela vem à tona. Toma sua forma. Suas formas. Ela fascina, ela amedronta. Alguns velhos dizem: nós, ao menos, éramos apaixonados, e gritam diante da indiferença (mas quando eles se agrupam para os seus grandes encontros: ficam loucos), outros, que têm em vista certas paixões precisas, gritam diante da despolitização. Em suma, eles partem disso: o falta, o vazio (eles também o herdaram - de seus antepassados), e eles parecem não querer alcançar grande coisa a não ser, talvez, uma certa forma de conforto nirvânico. (E a propósito: o fenômeno beatnik agrupava - sob a sua forma original - os párias cuja ambição era alcançar o nada: retorno curioso a uma velha mística). Seja como for, eles provam que a atonia amedronta a sociedade tanto quanto a revolta. De fato: as duas atitudes, totais, são a manifestação de uma mesma e perigosa recusa do mundo.

Pois tudo se passa como se eles tivessem nascido alérgicos a este mundo. Como se esse mundo fosse um veneno para eles. Uns reagem por uma revolta quase visceral de todo o organismo - um vômito. Diz-se então que são doentes, e nós tentamos tratar esta doença: a delinqüência. Outros decidiram engolir o veneno. Digeri-lo. A imunização ou a morte. Outros ainda encontraram a salvação no ectoplasma. Eles reduziram sua substância. Nada os afeta mais. Tudo os atravessa. E ele, o mundo, atravessou-os. Ele se esvaziou através deles, como se esvazia a água do crime em uma banheira de Hitchcock, com um barulho de descarga, em círculos concêntricos.

Há também os doentes: aqueles que tomaram a medida exata de veneno, o suficiente para se intoxicarem, o suficiente para aquilo que eles chamam: viver. Godard mostrou estes no início de O Demônio das Onze Horas: a recepção. Após isto, inútil voltar. Mas os outros, era bom ele vir e vir de novo. Era necessário que ele introduzisse este último avatar, igualmente a última e mais perigosa variação em sua obra, feita de uma tensão, ou ruptura, entre esses dois pólos: a atonia, a revolta. Esta: Léaud. Sozinho e perdido, com seu coração enorme e suas pequenas revoltas. E não suficientemente forte para ser ele mesmo. Perdido em seus contratempos, esforçando-se para brincar de sexo e de política. Que se torna militante como quem se faz delinqüente, e comete atentados à pintura. Preso no tráfego das idéias como o pequeno soldado, ou como Pierrot no tráfico de armas. Mas eles eram suficientemente fortes para serem sós. Ou suficientemente fracos: em todo caso, eles eram coerentes em sua loucura. Léaud tem a dele, e sua beleza: tentar o contato. Mas os outros não funcionam na mesma freqüência.

Os outros não nos eram desconhecidos. Da América (onde, como na Escandinávia, o que ainda subsistia aqui já se manifestava) Godard já havia trazido Patricia, pequeno ser frio, ávido e indiferente, pequeno marciano longínquo, para tantalizar o Belmondo de Acossado, que se perdia ao procurá-la. O sexo, pelo menos? Muito pouco. Somente uma moeda de câmbio. Um pouco desvalorizada: lá, onde ela mora, havia inflação. Agora, aqui. E Léaud não se reencontra. Ele se mata em procurá-los, os outros. Mas eles lhe são tão mais estranhos do que eles lhe deveriam ser mais próximos. Pois, eles são, num sentido, parecidos com ele, e não mais apáticos, talvez, em suas esferas próprias que ele, na sua, não é revoltado. Mas em suas esferas, é necessário poder viver. Eles têm o que é necessário, ele colocou neles uma capa de idoneidade. Ele, neste vazio, não recupera o seu fôlego, sente-se estufado, não é pressurizado. “Não se pode viver sem ternura, é melhor se matar”. Mas eles, os outros, talvez tenham, em suas esferas, uma forma só deles de ternura. Ele devia fornecer uma (mas qual?) a esses mutantes.

Godard, em Masculino-Feminino, realiza seu filme mais atroz e mais terno, a partir, como sempre, de uma íntima penetração dos personagens, sempre eles mesmos, do documentário à ficção, sempre amados. Eis como o pesquisador os viu: “Pelo fato de sua juventude, eles permanecem naturais. Eles se encontram no exato momento que vão se formar, em que ainda são inocentes e generosos. Mesmo condicionados, eles guardam a inocência em seus condicionamentos. Eles não têm medo de serem julgados - mal ou bem - eles não são nem hipócritas, nem covardes”.

Ao mesmo tempo, Godard, em sua sondagem, foi muito além, e ele os amou muito mais, sem piedade. E seu filme é sereno, justo, generoso, mas terrível. Para eles, para nós, para os engajados, para os alienados, todos. Em comparação, O Demônio das Onze Horas é o nascimento de um mundo harmonioso e que nos preenche. O Demônio das Onze Horas envelheceu. Oh! admiravelmente! É um grande clássico, magnífico, que nos faz sonhar com a época em que ainda existiam tais palavras, tais mortes. Já Léaud nem mesmo teve sua própria morte. Ele desapareceu. Restou-lhe apenas uma coisa: aprender em vida a não ser. Passar por onde passaram os mutantes. Lá também ele não devia saber como se portar. Desde o primeiro mutante, Patricia, há poucas heroínas de Godard que não tenham pelo menos feito uma referência a um outro mundo (e até a Bardot de O Desprezo, em seus décors à Jules Verne). A mulher é radical. Ela ama e é tudo. Um dia, o homem faz ou diz uma besteira - tudo está terminado. Rompido. Todo amor é posto à prova. Já é um outro mundo. E de fato: só se pode sentir como o mais estranho possível o que é feito para ser o mais próximo, só se pode sentir a menor ruptura ou distorção nas relações homens-mulheres como o próprio tipo da catástrofe: cósmica.

Godard é assombrado por todas as distorções que afetam a comunicação, a linguagem. É a lição da palavra (viver, falar) de Brice Parain em Viver a Vida, são as palavras que mudam ou desaparecem em Il nuovo mondo ou Alphaville. E em Uma Mulher Casada: Leenhardt fala uma linguagem totalmente diferente da nossa, sobrevivente de uma outra época. A catástrofe (caso-limite: a ruptura no primeiro “fato” de Masculino-Feminino - a mulher mata o homem para ficar com a criança) é - seria - este outro limite da distensão ou da distorção, insidioso, generalizado, de todas as conexões, que se manifesta sobretudo através das relações de casal. Antonioni, Bergman. Também em Godard as amarras parecem rompidas. E é a mulher que é o ponto de referência pelo qual se mede a deriva (seus mutantes quase sempre são femininos). Ela alcançou outras águas, onde as correntes, os ventos, as ondas, a maré não são mais os mesmos. Não se alcança mais. Isto não responde mais. Indiferença, frigidez, mentira (as palavras ainda?)... Ela capta, talvez emita, uma outra linguagem (Uma Mulher Casada, tal qual a de Il nuovo mondo). Sempre a mesma carne, mas que encarna um outro verbo.

Sem dúvida alguma ela é mais sensível que o homem nas relações com a sua época, no que esta veicula - condicionamentos, doenças, venenos do século, tráfico de idéias, de palavras, de canções -, e que ela se impregna mais rapidamente, pois ela radicaliza. É que ela é mais maleável que o homem, ou seja, mais fraca, mas também mais flexível, o que é uma força. À prova: ela vive, ele explode.

Qual é o novo mundo que nos espera? Pergunta fabulosa. Ridícula. E o que é esta parábola?... - Mas Godard se contenta em ver, e ele vê o que se anuncia. É verdade que nada jamais anuncia nada àqueles que não tem a “faculdade divina da atenção”, para retomar de Bernanos essas palavras que ele devia a Poe.

A atenção: receber tudo do mundo, e guardar tudo: o apego. E o descompromisso: ser como se não se encontrasse no mundo. E esses dois outros tempos que mencionava o pequeno soldado: o da ação e o da reflexão, as duas faces, ou fases (sincronia, diacronia, poder-se-ia dizer, à Saussure) do movimento Godard. A ação: lançar o filme, compô-lo e deixá-lo se compor, mas no quadro (o do filme, o da vida) bem estabelecido pela reflexão - sempre em marcha entre dois filmes - e com os elementos que ela, desde há muito, liberou. Todos difíceis de se trabalhar. Sempre susceptíveis de se ver integrar um outro que está por surgir, ou de se passar por outro, repentinamente esgotados: prestes a tomar, prestes a abandonar, Godard vive também seu filme com descompromisso. Como Brice Parain dizia que se devia viver a vida - eco daquilo que era a última ambição do pequeno soldado: “Só me restava uma coisa: aprender a não ser amargo”.

O descompromisso é também, em Godard, a reflexão sobre o próprio modo de expressão a que está vinculado. Fotos no filme, câmeras, filmes: meios de sondar, de fixar a alma, de fazer sonhar. Em Pierrot: dirigir-se ao espectador, e o “nesse momento figurante de cinema”, em Tempo de Guerra: a infância do cinema e a infância do espectador. E também: os cartões postais-títulos de propriedade, apropriação da vida por seus substitutos (sonho de turista ou de colecionador maníaco): a reprodução do mundo, aqui, conduz ao encadeamento.

Ora, aqui, de fato, o que esta seqüência dos cartões projeta fora do filme, acaba por libertar o espectador. A coisa é justa: isto é um meio para Godard (um entre outros) de romper com as tentações da fascinação, da identificação, da complacência, de fazer viver o filme e morrer o espetáculo.

Evidentemente, isto não acontece sem conflitos, e é por isto que alguns espectadores se consideram provocados. Pois sempre alguma coisa em Godard vem destruir uma pequena harmonia que estava a ponto de nascer (algo que em relação a ela vai, ou vem, muito longe, por muito, muito tempo, muito além; a menos que isso não seja uma falta, um buraco súbito, lá onde se esperaria simetria equilibrante ou casal antagônico), mas isto acontece porque nós somos convidados a irmos além, a ascendermos à harmonia superior. Mas, para se chegar lá, Godard nos pede para fazer uma viagem. E ele não nos poupa as colisões e as separações de ascensões ou quedas. Ele próprio se projeta assim em cada filme, se abandona em seu movimento, como se se abandona às ondas colossais, às suas correntes - mas correntes que ele calculou e nas quais ele aprendeu a nadar. O espectador não tem que fazer tantos esforços ou cálculos. Ele só tem que fazer a viagem do filme, não a que Godard teve que fazer para concluir o mesmo filme. O espectador se encontra neste banco de passageiros que reproduz fielmente, no solo, as condições de vida no satélite. Só se pede a ele para permanecer. E ter confiança. Isso significa também ter confiança nesse excedente que faz que um filme de Godard seja mais que um filme: a própria arte. E isso vai muito longe. Você não sabia, mas as condições de vida em um satélite continuam a ser, lá em cima, tão fielmente reproduzidas que você julgaria estar na Terra. Você não sabia disso: você está em órbita.

Mas, o mais bonito é que o grande público se presta admiravelmente a Godard. Ele se emociona. O grande público é simples e é sensível, em Godard, à simplicidade. Ele é capaz de ver as coisas uniformemente como elas são (como as crianças, ágeis, abertas, disponíveis, estão sempre prestes a viajar - são os adultos anquilosados que recusam os V.O., os filmes surpreendentes e as montanhas russas) e, por outro lado, como ele as viveu, ele reconhece em Godard a vida. Sua vida. As pequenas coisas, as grandes: tudo lhe é familiar, ele se apega, ele se deixa levar, e assim acaba ascendendo igualmente a outros lugares que talvez lhe fossem pouco familiares, mas que agora ele reconhece. E Godard se justificaria - caso chegasse a fazê-lo - por esse único critério: sua fecundidade. Pois qualquer coisa que ele aborde, ele obriga as pessoas a repensar sobre a coisa, e o cinema junto. E é também notável que toda uma juventude tenha encontrado nele o equivalente daquilo que tradicionalmente ela encontrava na literatura: um guru.

Com esse dom de evidências que vão direto ao ponto, de achados que pulverizam os problemáticos, Godard, através do espírito da infância, descobre a infância da arte. Um pouco daquilo que descobriram Stravinsky e Klee, os quais, para além da mais extraordinária elaboração, reencontram uma bruteza esquecida. Ou Le Corbusier, com suas gigantescas casas rústicas, ou Edouard Leclerc, que reinventa o comércio, criança que brinca de vendedor e que semeia o pânico nas companhias de má índole.

Godard é também a infância do cinema. O tempo redescoberto de quando o cinema era simples e necessário. Inicialmente, devia se mostrar que isto se movia, depois que isto narrava. E a consciência do cinema se dissolvia na fascinação da história-espetáculo. Têm-se, às vezes, a nostalgia dessa época, hoje que o cinema, sua inocência perdida, sabe que ele é o cinema. Godard ultrapassou este conhecimento e encontrou do outro lado a simplicidade e a necessidade. Com ele, a consciência do cinema se confunde com a consciência da vida. E ele faz o público entrar em sua terceira fase; diz-se agora: isso vive, como já se dizia: isso se move.

Fecha-se o círculo? Ou ciclo percorrido que permanece aberto? Nós somos tentados a pensar no que advirá da literatura. O quê escrever? O quê ainda é possível fazer após Roussel, Joyce, Faulkner, Céline? Exemplar Céline: toda esta vida para chegar a essas últimas estranhas coisas que têm tanto do romance como da autobiografia e do poema. E nisso tudo não está Godard um pouco definido? Será que ele agora irá se dizer: o quê ainda é possível filmar?

Mas é talvez o contrário: tudo começa. Pois uma outra comparação é verdadeira (para permanecer no campo literário): os filmes de Godard (fragmentos ou não, com ou sem intertítulos) reencontram o tom das primeiras ficções: parábolas, contos morais, fábulas... E depois, por que permanecer no campo literário? Nós estamos tratando de cinema, o cinema é a vida; ora a vida, até que se prove o contrário, continua.

Mas a aventura Godard só é possível porque ele a vive se abandonando nela, após ter tudo abandonado, até e inclusive o cinema. Ele passou pela morte da vida sem cinema - diria Brice Parain - agora, do outro lado, ele se encontra lá onde vida e cinema são uma coisa só.

Notas:

[1] Referência ao artifício cervantino da ficção que tem consciência de sê-lo (n.d.e.).

[2] Referência à forma como os filmes eram anunciados em trailers antigamente (n.d.e.).

[3] Organização paramilitar clandestina francesa que se opunha à independência da Argélia (n.d.e.).

(Cahiers du Cinéma nº 179, junho 1966, pp. 64-73. Republicado em Jean-Luc Godard, seleção de Haroldo Marinho Barbosa, Coleção “Arte do Espetáculo”, Gráfica Record Editora, 1968, pp. 57-74. Traduzido por Marcos Ribas. Revisado por Bruno Andrade)

 

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