FEROZ
por Jean-Marie Straub


O que mais admiro nos filmes de Dreyer que pude ver ou que revi nos últimos anos é a ferocidade em relação ao mundo burguês: a noção de justiça deste mundo (Præsidenten, também uma das construções narrativas mais espantosas que conheço e um dos filmes mais griffithianos, logo um dos mais belos), a sua vaidade (os sentimentos e os cenários de Mikaël), sua intolerância (Vredens dag, estupefaciente pela sua violência e dialética), sua angélica hipocrisia (“Ela morreu... Ela não está mais aqui. Ela está no céu...”, diz o pai em Ordet, e o filho responde: “Sim, mas eu também amava o seu corpo...”) e o seu puritanismo (Gertrud, por isto mesmo tão bem recebido pelo público parisiense dos Champs-Elysées[1]).

Ademais, Vampyr (“aqui não há nem crianças nem cães”) continua a ser para mim, treze anos depois de tê-lo visto na Cinemateca da rua d’Ulm, o mais sonoro de todos os filmes. E em 1933 Dreyer lançava esse apelo que, a não ser por Gianni Amico e Bernardo Bertolucci, os cineastas italianos atuais fariam bem em entender finalmente: “... quem se esforça para criar um espaço realístico deve fazer a mesma coisa com o som. Enquanto escrevo estas linhas posso ouvir sinos badalando, percebo o ribombo de um elevador, o tinido distante de um bonde, o relógio da prefeitura, uma porta que se fecha... Todos esses sons existiriam também se as paredes do meu quarto, ao invés de verem um homem trabalhando, fossem testemunhas de uma cena comovente ou dramática, em contraponto da qual teriam, talvez, até mesmo um valor simbólico. Seria justo, então, deixá-los de fora?... No verdadeiro filme sonoro a real dicção será - paralelamente ao rosto sem maquiagem num cômodo autêntico - a linguagem comum e cotidiana como pronunciada por pessoas comuns...”.

E neste momento em que tantos jovens autores sonham apenas em impor nos seus filmes suas idéias e suas pequenas reflexões, em seduzir e violar (brechtismo de proteção ou utilização dos métodos publicitários e de propaganda da sociedade capitalista), ou ainda em desaparecer (colagens etc.), escutemos Dreyer: “O escritor dinamarquês Johannes V. Jansen define a arte como ‘uma forma interpretada pelo espírito’, definição que me parece perfeita. Chesterfield vê o estilo como ‘o vestuário das idéias’, outra definição simples e precisa, contanto que o vestuário não se destaque demais. O que caracteriza o bom estilo, ele mesmo simples e preciso, é que ele entra em uma combinação tão íntima com o conteúdo que acaba formando uma síntese. Se é muito audacioso e tenta chamar a atenção, ele cessa de ser estilo para se tornar sobretudo maneirismo...

“O estilo de um filme, se este é uma obra de arte, é o produto de um grande número de componentes, como o jogo do ritmo com o enquadramento, as relações de intensidade entre as superfícies coloridas, a interação entre luz e sombra, o deslocamento mesurado da câmera. Todas essas coisas, associadas à concepção que o metteur en scène tem da sua matéria, determinam o seu estilo...

“Eu também não subestimo a equipe técnica, os operadores, os técnicos de cor, os cenógrafos etc.; mas, no interior dessa coletividade, o metteur en scène deve permanecer o motor de inspiração, o homem por trás da obra que nos faz escutar as palavras do escritor, que faz sobressair sentimentos e paixões, a fim de nos mover e nos tocar.

“Eis como compreendo a importância do metteur en scène e de sua responsabilidade.

“... mostrar que existe um mundo para além do naturalismo maçante e entediante, o mundo da imaginação. É certo que a transformação deve se fazer sem que o metteur en scène perca seu controle sobre o mundo da realidade. Sua realidade remodelada deve sempre permanecer algo que o público possa reconhecer e na qual possa crer. É importante que os primeiros passos rumo à abstração sejam transpostos com tato e discrição. Não se deve chocar as pessoas, mas guiá-las suavemente rumo a novos caminhos.

“Cada assunto implica uma certa via (voz?). É a isto que se deve dar atenção. E deve-se encontrar a possibilidade de se exprimir tantas vias (vozes?) quanto possível. É muito perigoso limitar-se a uma certa forma, um certo estilo... É algo que eu verdadeiramente tentei fazer: encontrar um estilo que seja válido para um único filme, para esse ambiente, essa ação, esse personagem, esse assunto.

“No cinema, não se deve interpretar o papel de um judeu, deve-se ser um.”

O fato de Dreyer nunca ter podido realizar um filme a cores (arrastou este desejo por mais de vinte anos) nem o seu filme sobre Cristo (sublime revolta contra o Estado e as origens do anti-semitismo) vem lembrar-nos que vivemos em uma sociedade que não vale o peido de uma rã.

Nota:

[1] O filme foi pessimamente recebido à época de seu lançamento (n.d.t.).

(Cahiers du Cinéma nº 207, dezembro 1968, pp. 34-35. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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