O ESTILO DE FRITZ LANG
por Georges Franju


Lang traduzindo (ou não) Thea von Harbou parece continuamente sonhar com a justiça e o equilíbrio superior.

Abordando nos seus primórdios contos e lendas à maneira da escola alemã de então, o grande realizador alemão já não pode, apesar das suas disposições sociológicas, aplicar à humanidade, considerada como árbitro de si mesma, sua mania de igualdade, nem impor sua vontade de reforma ao realismo da ditadura judiciária.

Simbolista e extra-terrestre, o autor de A Morte Cansada (Der müde Tod, 1921) coloca neste filme, e pela primeira vez, o eterno problema que figura a balança. Esta obra filosófica conta-nos a história de uma jovem (Lil Dagover) cuja grandeza de alma triunfará sobre mil emboscadas e que no fim de uma terrível prova comoverá a autoridade celeste.

Afirmando assim o julgamento de Deus como protótipo e como exemplo, Lang, no seu segundo filme, Mabuse, o Jogador (Dr. Mabuse, der Spieler - Ein Bild der Zeit, 1922), passa à agressão por intermédio de um cientista niilista. E Metrópolis (Metropolis, 1927) dá-lhe a ocasião de operar sobre um conjunto, sobre um mundo organizado, a cisão que coloca o homem diante de sua realidade. É o primeiro estágio da evolução sociológica do tema...

Cinco anos depois, tendo-se reservado, no momento adequado, opor a justiça às leis que a determinam, revela-nos a idéia fixa do tribunal. Mas de um tribunal aberto, diante do qual todas as causas serão ouvidas e graças ao qual Fritz Lang se imiscui na atualidade que ataca frontalmente.

A luta organizar-se-á de agora em diante em terreno descoberto contra o oficial que representa a autoridade, contra a autoridade ao serviço da justiça, contra a justiça regida pelas leis, contra as leis protegendo os privilégios, a tradição, a estupidez.

Tribunais em que serão sediadas competências de todos os tipos, serão instituídos; os decretos, os códigos, as regras serão revistos e muitas vezes darão lugar a argumentos violentos, por conseqüência repreensíveis: e os extraviados, os enfermos e os ladrões, rejeitados para as margens da sociedade, terão por missão construir uma outra.

Lang simpatizará sempre com o homem de baixa condição, qualquer que seja a sua perversidade e na medida em que, não importa por qual meio, esse homem tenha combatido os dogmas de uma civilização embrutecida.

Ser-nos-á necessário chegar à obra falada, M (já que não poderia ser questão das obras menores realizadas entre Metrópolis e M), para encontrar a confirmação daquilo que afirmo. Conhecendo o estado de espírito do grande cineasta e apesar da sentença de morte pronunciada contra o sádico (que me parece ser uma sentença de concessão), notar-se-á que não somente Peter Lorre dispõe de um defensor, mas que poderá defender a si próprio em termos que não deixarão de tornar responsável uma sociedade incompreensiva e fechada. Menos preocupado em evocar a desculpa do seu estado mental que, em altas instâncias, constituiria uma circunstância atenuante, do que em mostrar as suas chagas à luz do dia, Lorre revelar-se-á ao mundo da burguesia e da burocracia que o olha como o triste símbolo da criação. No fim do filme, o “Vampiro” é arrancado dos juízes improvisados para comparecer diante de um tribunal regular, mas não sendo os magistrados, segundo Lang, qualificados para a arbitragem, o seu veredicto não será conhecido.

Prosseguindo a sua obra destru-construtiva, agressiva e crítica, Fritz Lang reeditará do velho e terrível Dr. Mabuse um Testamento (Das Testament des Dr. Mabuse, 1933) que, segundo a própria expressão do filme, constitui um Evangelho (segundo São Mabuse) tendendo a lutar contra os preconceitos, o embrutecimento e as injustiças fundamentais por um sistema de sanções bastante enérgica.

A se notar que ainda nesse caso, e por causa da sua loucura, o culpado (Klein-Rogge) está marcado pela impunidade (Mabuse escapa à guilhotina graças ao manicômio) e se beneficia, como precursor de uma moral autêntica, da estima revolucionária.

Liliom (baseado em Molnar), contudo, conduz-nos ao período heróico idealizado pela justiça do céu. Preferindo o suicídio à prisão, Liliom Zadowski evitará, ele também, a intervenção dos homens de toga e é no céu que um comissário angélico e competente o reabilitará aos nossos olhos moral e socialmente.

Penso que o exemplo de Fúria (Fury, 1936), o último parto da produção de Lang, e mal nascido na minha opinião (mas isso é outro assunto), está demasiado fresco na memória para que nos seja útil pôr em relevo as preocupações jurídicas que nele passam. Alguns viram no filme um protesto contra o linchamento; de minha parte vejo nele também um apelo contra a prisão arbitrária, profundamente responsável pelas circunstâncias dramáticas que dela decorrem.

Seja como for, Spencer Tracy declarando diante dos juízes: “mataram a mim a crença na justiça”, resume uma das preocupações que fazem a originalidade e a força da obra de Lang.

DECUPAGEM: PRINCÍPIOS

O essencial de um roteiro bem construído, bem decupado é evidentemente ser estabelecido segundo regras imutáveis de relação de imagens, de sucessão de planos, de medidas rítmicas etc. É necessário, contudo, reconhecer nas narrativas de Lang uma noção que ele foi o primeiro a aplicar - tanto quanto sabemos - desde 1921, quer dizer numa época em que os melhores se limitavam a seguir o desenvolvimento ordinário da narrativa ou procuravam o alargamento artístico no expressionismo da interpretação ou no impressionismo da câmera.

Quero falar da decupagem intuitiva, cujo exemplo mais simples se situa na abertura de A Morte Cansada.

Abertura em íris... Sobre um cruzamento
frente ao qual aparece um homem.
Fundido encadeado... sobre uma moita...
Uma diligência no caminho...
Sub-título: não importa onde, não importa quando, um par amoroso em viagem de núpcias.

Eis tudo - e o que mais seria necessário, aliás? - para prever que, assim justaposta, a diligência, deslocando-se no espaço, será obrigada a encontrar o homem na sua rota.

Obtido pelo agenciamento condicional dos planos, situação no espaço que decorre unicamente da decupagem, o caso citado acima não é isolado. A prova está na recordação que nos fica do começo de M que pede do espectador uma interessante contribuição, no sentido em que o trabalho intuitivo da sua parte, ordenado e dirigido, deveria tocar os limites da emoção dramática.

Porque se, após uma hora de atraso anunciada no relógio, ainda se podia esperar o regresso da pequena Elsie, se em seguida à visão insistente do seu prato e da sua cadeira abandonada se podia apenas esperar, eu afirmo que no momento em que a câmera fica sobre o vão da escada é impossível admitir que a criança voltará ainda para casa da mãe. A visão desse vão tão íngreme, tão pobre, tão sombrio, é decisiva. Prevê-se: nunca mais a pequena Elsie voltará a subir a escada e os acontecimentos que se seguem confirmam nossos pressentimentos. Mas neste sistema comportando diferentes aplicações, podemos encontrar certos mecanismos que, contrariamente ao caso examinado acima, já não agem mais pela narrativa, através do raciocínio, mas pela ruptura narrativa, através do reflexo.

Talvez esse movimento tenha sido inovado em A Morte Cansada (cena do albergue), encontramo-lo em todo o caso, além das passagens já citadas, em M (cena da chegada da polícia ao esconderijo), no Testamento do Dr. Mabuse (cena do anfiteatro) etc.

A MISE EN SCÈNE
A este subtítulo acrescenta-se: O DÉCOR

Se Os Nibelungos (Die Nibelungen: Siegfried/Die Nibelungen: Kriemhilds Rache, 1924) parecem depender de concepções propriamente cênico-teatrais, elas mesmas ligadas à escolha do décor, deveremos esquecer que este monumento da lenda transposta se submete inteiramente às regras essenciais do cinema e a um trabalho de câmera cuja sobriedade em nada atenua a ação efetiva? Poderá sinceramente pensar-se que um teatro, por mais bem equipado que fosse, conseguiria dar deste tema uma visão comparável? Espero pelo décor que venha igualar em força evocativa a imagem filmada do tesouro dos Nibelungos entrando na corte do castelo de Worms (força que é unicamente função do ângulo de tomada de vista em plongée), ou a visão magistral (porque em plano afastado) da caça na floresta e aquele outro inolvidável da pluma da ave caindo em ralenti sobre a espada de Siegfried (close). Puros produtos da objetiva, intraduzíveis por qualquer outra coisa que não seja o olho artificial de uma câmara.

E por qual sistema material se poderia transportar para os palcos de um teatro tudo aquilo que faz a própria atmosfera do filme! A petrificação dos seres, a ambiência vaporosa das florestas, a grandeza do plaino ardente...

Assim que M saiu, os críticos não deixaram de considerar a cena do tribunal como um defeito no filme e, embora a reconhecendo como particularmente dramática, negavam-lhe qualidades cinematográficas, julgando que essa cena não tinha outra razão de ser senão o efeito pelo efeito.

Será que um tal despojamento, numa imagem, de forças estáticas e decorativas, poderia agir sobre a emotividade pública com tanta força, se não fosse o argumento final lógico, inevitável, a conclusão mais cênica do que teatral de todas as forças animadas e imóveis?

Não se pode negar que as reminiscências cênicas sejam gritantes na obra de Fritz Lang: o “Vejo três agentes ciclistas” de Liliom (cena do túnel) que se encontra em M quando o jovem mendigo, lançado na pegada de Peter Lorre, diz ao cego: “Estou a vê-lo, parou, lá vai outra vez”, são exemplos bastante significativos e da melhor tradição cênica, mas por que é que uma cena cênica não seria cinematográfica?

Intitulei este artigo O Estilo de Fritz Lang. São, portanto, todos os elementos componentes deste estilo que serão examinados aqui, mas se o procedimento é acessível à análise, os imponderáveis sentem-se, mas expõem-se mal. É necessário, por isso, muitas vezes tomar dos fatos aquilo que neles é mais evidente. A obra espiritual de Lang mostra uma inquietação primordial: a busca de energia. Sem dúvida, esta investigação está na origem de certas criações que, com Metrópolis ou A Mulher na Lua (Frau im Mond., 1929), forneceram-lhe, pelo livre campo da antecipação, um teatro de operações para espetáculos explosivos.

Não vou me deter sobre certos fragmentos carregados de força que, como a inundação de Metrópolis ou a partida do foguete interplanetário de A Mulher na Lua, estão entre os mais belos momentos do cinema de sempre. Há uma observação a fazer, contudo: todos os acontecimentos espetaculares de caracteres violentos e criminais foram explorados por Lang e patetizados ao limite. As inundações (Metrópolis, Mabuse); as explosões (Os Espiões [Spione, 1928], Mabuse); os incêndios (A Morte Cansada, Fúria).

O décor de Lang é um grande ator. Olhai a imagem da vitrine do ortopedista, situada no meio de M, e face à qual o vampiro se detém, espreitando uma menininha.

Esta vitrine, notável graças a uma espiral negra e branca que gira até ao infinito e cujo movimento giratório é contrariado pelo de uma flecha que sobe e desce com regularidade, é um detalhe decorativo significativo do estilo de Lang. Tal como a vitrine com o manequim despido da Ópera dos Três Vinténs (Die 3 Groschen-Oper, 1931) era típica do estilo de Pabst e a vitrine da modista do Um Chapéu de Palha da Itália (Un chapeau de paille d’Italie, 1928) simbólica do estilo de René Clair.

A INTERPRETAÇÃO

O extremismo na atitude, a energia fundamental na expressão, o nervosismo no gesto são as bases sobre as quais repousa para Lang o sistema da interpretação. É difícil determinar as personalidades exploradas ou descobertas por ele. Seja como for, o encanto horripilante mas atrativo de Brigitte Helm, o magnetismo de Bernard Goetzke, a potência de Klein-Rogge, a força de Peter Lorre, marcam uma vontade de impor pela violência menos atores de talentos variados, do que personagens-forças selecionadas à medida. O que naturalmente exige do físico um certo poder radiante ativo (Rogge-Mabuse) ou passivo (Sidney-Fúria). É sem dúvida difícil encontrar atores que se enquadram perfeitamente com o personagem, mas trata-se também de rejeitar as práticas inaceitáveis do conservatório, fortes em elocubrações “matizadas”. Para Lang, efetivamente, o papel não se inscreve em si mas sobre si. O cinema é, afinal, menos uma arte de exteriorização do que de exterior, pouco importando a sinceridade de um intérprete desde que ele faça verdadeiro, mas verdadeiro absolutamente.

E reenvio à encarnação do personagem da morte que Goetzke interpretou em 1921 e que é uma resposta magistral aos que confundem a “verdade aparente” com “a aparência de verdade”.

Um arrombador de cofres-fortes, por exemplo, não é no conjunto mais notável do que o primeiro acadêmico que apareça. Só as suas mãos são particulares à sua profissão. Por isso é a elas e só a elas que incumbe a tarefa da interpretação (M, o arrombador de cofres-fortes).

É certo que o cuidado com a verdade está marcado nos detalhes da chancela pessoal do autor cujo estilo ela representa. Notamos já as afinidades de Lang com a ralé - se é que há ralé, quando a honorabilidade é o pior - mas devemos notar que tudo bem é pensado, que não se trata de simples afinidade, esse sentimento sendo insuficiente para justificar a glorificação do roubo e do crime. Ora, sem distinção, Lang diviniza por assim dizer a gatunagem, da qual tem a mais alta opinião e devemos fazer-lhe justiça de ver que nunca os intérpretes dessa súcia foram vulgares, fracos ou indolentes.

Frequentemente até, certos intérpretes estão revestidos de um verniz aristocrático pelo qual Lang se apaixona e é assim que certo chefe de bando será mostrado de luvas negras (M) ou sob a silhueta cruel, muito “jovem de boa família”, de um crápula distinto. E quando o grosso da figuração está reunido, essa massa inteligente organizada, admiravelmente organizada... dá uma tal impressão de força e de raça que a sua onipotência não pode ser posta em causa.

Indivíduos voluntariosos, conjunto potentemente magnético, voltamos sempre ao mesmo ponto: a Energia, a Energia espiritual e física, que toca algumas vezes o coração e sempre os nervos.

Esta rubrica mesmo poderia chamar-se Os nervos ao limite.

Recordo-me de um simples movimento de intérprete, um signo, um gesto: Sylvia Sidney angustiada batendo com os punhos na cabeça (Fúria).

Este gesto que reencontramos executado da mesma maneira, ao mesmo ritmo de golpes, na mesma posição encarquilhada dos dedos, desde A Morte Cansada, passando por Os Espiões (cena do táxi), A Mulher na Lua (cena do foguete), O Testamento do Dr. Mabuse (cena da tipografia), não será um testemunho de precisão do realizador? A característica de um parti pris maníaco, a afirmação de concepções muito pessoais manifestadas cinematograficamente pelo Estilo.

(CINEMAtographe, março 1937. Revisto por Georges Franju e republicado na edição nº 101 dos Cahiers du Cinéma, novembro 1959, pp. 16-22. Traduzido por M. S. Fonseca; transcrito por Lucas Baptista; revisado por Bruno Andrade)

 

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