BUÑUEL, O HOMEM, DEUS E O VALOR DA BLASFÊMIA
por Vittorio Cottafavi


Acredito que neste ponto do nosso discurso seria bom destacar a contribuição dos ateus a uma temática religiosa no cinema de hoje. E proponho de imediato um caso limite: o filme de Buñuel, Simão do Deserto (Simón del desierto, 1965). Caso limite no sentido de que todo o filme tem como único assunto Deus, Satanás, o homem, ou antes os homens, uma vez que Buñuel, na luta que se combate em torno do santo eremita Simão, introduz os mais variados exemplares humanos, do frade teólogo ao pastor ignorante, da mãe aos beatnik da boate nova-iorquina. Creio que em nenhum filme se tenha falado tanto de Deus como neste espetáculo de apenas 58 minutos. Se em seguida o filme zomba da fé, ou melhor, de certas fés, se exala a impiedade mas claramente não a heresia, parece-me um fato secundário diante do fato essencial de que o ateu Buñuel fala longamente, coerentemente e dialeticamente de um Deus que, segundo ele, não existe. E fala com um ímpeto e uma paixão que habitualmente possuem apenas os ateus, com uma certa carga emotiva, uma vontade de clareza que deixa o espectador perturbado, mas não desconcertado: um espectador que agora não poderá interromper o discurso mas que deverá continuá-lo em si mesmo com um impiedoso exame da própria consciência. Por outro lado, até na história do pensamento e das letras os ateus tiveram em muitas ocasiões uma função catalisadora: foram os martelos que bateram na bigorna surda da submissão indiferente, do conformismo religioso e, sobretudo, da caridade congelada das condições sociais de privilégio. Se a relação entre homem e Deus tem como primeiro grau a prece, como segundo grau tem a blasfêmia: a indiferença não cria relação entre homem e Deus, e, portanto, a blasfêmia já sinaliza o primeiro passo do itinerarium rumo a Deus. E penso que é justo nesse sentido que Simão do Deserto ocupa um lugar importante entre os filmes de temática religiosa, uma vez que, porventura, é a mais fervorosa e apaixonada “blasfêmia cinematográfica” já realizada.

(Transcrição de uma intervenção de Vittorio Cottafavi durante a convenção anual de Assis sobre cinema, organizada pela Seção Cinema da Pro Civitate Christiana, em AA.VV., Dio nel cinema d’oggi, Assis, 1967. Publicado em Ai poeti non si spara - Vittorio Cottafavi tra cinema e televisione, Edizioni Cineteca di Bologna, 2010, p. 154. Traduzido por Bruno Andrade)

 

VOLTAR AO ÍNDICE

 

 

2014/2015 – Foco