SEMEANDO A ILUSÃO, Luigi Comencini, 1972
por Danièle Dubroux


Luigi Comencini é um grande cineasta popular. Freqüentemente, é preciso reconhecer, ficamos bem felizes - o que prova que um certo frescor foi mantido apesar do que pensam alguns - em descobrir que ainda se pode desfrutar com um prazer sem subterfúgios um filme aclamado pelo grande público e mesmo, ó milagre! rir junto com o público.

Claro que as pessoas se surpreendem, imaginando coisas, por exemplo que os Cahiers foram comprados moralmente e financeiramente por Autant-Lara e que essa é a razão de um artigo escrito pelo seu pseudônimo, J.-C. Biette, elogiar Gloria, esse melodrama. Dino De Laurentiis chegou a deslizar um suborno a S. Toubiana para que este dissesse que o segundo King Kong não era indigno do primeiro, fazendo protestar todos os cinéfilos intransigentes. E até mesmo Luigi Comencini em pessoa reconheceu que se tratava propriamente do seu filme, um filme para crianças antes de tudo, no excelente artigo de J. Narboni sobre a marionete, artigo exposto neste momento no Museu do Homem (Cahiers nº 265)? Pode ser que não, porque ele ainda não pagou nenhuma quantia. Espero que ele o faça após ler meu artigo sobre o seu filme mais recente, em que vou tentar mostrar que Semeando a Ilusão (Lo scopone scientifico, 1972) é um grande filme popular no sentido mais nobre do termo, ainda que essa qualificação tenha sido mais que degradada, vulgarizada, banalizada, sobretudo numa época em que fronts culturais são erigidos um pouco por todos os lados como farol e receptáculo (concentração) desta famosa cultura tão cara aos nossos corações. Verificou-se nos últimos tempos que o povo não gosta da concentração. Ele continua a amar o cinema em certos lugares, na Itália por exemplo. E nós também, apesar do que é dito.

Lo scopone scientifico, grosseiramente “traduzido” para o francês como L’argent de la vieille (t.l.: O Dinheiro da Velha), parte de uma história que supostamente se repete há oito anos, exatamente da mesma maneira: uma velha bilionária americana, Bette Davis, vai passar o verão numa suntuosa villa na periferia de Roma e adora jogar o scopone, um velho jogo de cartas. Ela convida quase todas as noites um casal da favela vizinha, que possui a reputação de serem bons jogadores, a disputar uma partida com ela e o seu motorista, Joseph Cotten.

Mas após oito anos esta velha maligna infalivelmente consegue reaver os milhões que ela oferece generosamente no início da partida.

No entanto há cada ano a esperança, que faz viver o povo, a esperança de ganhar renasce nos dois corações bastante unidos desse casal de seis filhos, Alberto Sordi e Silvana Mangano, e eles aguardam impacientemente o retorno da velha como se esperassem a primavera ou a chegada do Salvador.

Os dialéticos iluminados poderão se deixar deslumbrar pela luminosidade da metáfora política, a saber: a velha, o capitalismo-imperialismo americano; Peppino e Antonia, vinculados à favela, o povo oprimido pelo grande capital, mas participando deste por pura necessidade vital (ou infraestrutural, se preferirem).

É no entanto bem essa tomada de consciência que o professor em materialismo científico tenta lhes fazer alcançar, quando ele lhes explica: “Deve-se destruir cientificamente a velha”, “aprenda já a odiá-la”, implicitamente: como um inimigo de classe. Mas eles não podem, “eles gostam muito desta velha”.

Seria portanto um pouco ousado interpretar o terreno no qual se encontram a bilionária e os sem recursos como o da luta de classes. Não se descobre nada na relação explorador-explorado, dominador-dominado se tramando através de determinações sorrateiras. Ou então seria necessário ver no filme essa idéia escandalosa de que as vítimas consentem e pedem mais, enquanto esperam pelo som da campainha (uma chamada telefônica da velha), para poderem se arremessar nos braços do capital.

Não, esse terreno é outro. Ele possui um espaço bem específico, bem delimitado, que é o espaço do jogo. A mesa de jogo é de fato o único lugar possível onde podem se sentar e se enfrentar, juntos, os dois extremos mais antinômicos da escala social: a bilionária e o catador (não nos esqueçamos que Peppino recolhe o que encontra em sotãos e porões com seu triciclo motorizado). O único espaço, dizíamos, porque, como a relação fundamental do poder é da ordem do simbólico, é por essa relação que se põe em jogo efetivamente (porque simbolicamente, devo repetir) a relação do mestre e do escravo - em italiano diz-se habitualmente de um homem que trabalha duro para ganhar dificilmente a vida que ele é “lo schiavo” - em um intercâmbio recíproco, o desafio à morte, onde o que está em jogo é ir aos limites da destruição do outro. A americana não se deixa enganar: ela sabe qual sedução, qual truque, que ela precisa utilizar para exercer o poder (ter a mão do jogo), eis por que ela utiliza a chantagem afetiva para desafiar seus parceiros a pôr em jogo todos os seus ganhos, ou então se faz de morta para fazê-los acreditar em uma ilusória vitória sobre ela.

Mas quem na realidade leva o desafio para as extremidades mais delirantes, aos dois pólos do par mestre-escravo? Pois bem, são as duas mulheres, são elas que conduzem o jogo e a dança frenética das cartas distribuídas sem cessar. Elas são ao mesmo tempo as duas líderes e os dois treinadores do combate; em certos momentos o salão parece um ringue de boxe e vemos Antonia de um lado e a velha de outro enquanto preparam (e galvanizam) os companheiros de equipe exaustos antes do próximo round.

As mulheres dirigem no filme, nada de mais lógico em uma ficção como Semeando a Ilusão, onde a tradição da linguagem popular é tomada ao pé da letra, aquela que faz com que homens digam: minha burguesa para descrever suas esposas. O Doutor Lacan que se conhece também como popular observou ele mesmo: “O popular - eu o conheço... O popular chama sua esposa de burguesa. É isso o que isso quer dizer. É ele que se submete à esposa, e não o contrário.”

Pois, muito freqüentemente elas detêm os cordões da bolsa, as rédeas da carruagem: a velha americana fez de seu ex-amante um motorista à rés de seu dinheiro e aos seus pés e Antonia está pronta para sacrificar o amor de Peppino pelo dinheiro do apartamento. A submissão em questão não é aquela dos judiciosos jogos de esgrima, dos quais os camponeses foram banidos. Nenhuma submissão secreta em Semeando a Ilusão, nada além dos seus golpes (e dos custos) visíveis, públicos, mais e mais enormes: a montanha de dólares que se acumula sobre a mesa, alguns arroubos também: o cinzeiro jogado no crânio do motorista.

Jogo resplandescente dos personagens: liquefação da velha, fratura do motorista, tensão frenética de Antonia, desmaios de Peppino, mímicas e caretas de conluio, mise en scène e iluminação (a luz que incomoda os olhos de Peppino) na mesma linha.

É, em suma, mais uma vez, tudo o que diferencia um teatro da retenção, da conservação, da unidade (as três unidades do teatro clássico) de um teatro burlesco, o qual não está isento, deve-se notar, do trágico (cf. a pequena filha Cleopatra, guardiã da consciência do povo e da sua lucidez).

No centro da ficção a cena do espetáculo (o salão da americana) com seus atores maquiados (Bette Davis excessivamente mascarada), fantasiados (o robe inverossímil de Antonia) e seus espectadores (os empregados) instalados no camarote, atrás da porta de vidro, que olham sem se misturar ao espetáculo, separados deste por essa barreira invisível que no teatro chama-se a ribalta.

Mais adiante, não conseguindo enxergar praticamente nada do espetáculo, como acontece com espectadores de galinheiro (que preenchem as lacunas com o seu próprio entusiasmo), contando a história graças a uma comunicação mantida permanentemente pelo telefone (os binóculos no teatro): aqueles da favela em praça pública. E como sempre nas representações populares, o espetáculo se dá (também) na sala. Os episódios de intriga são retransmitidos, amplificados, mitificados (“Eles ganharam 7 bilhões!”... quando a aposta do jogo está em apenas 25 milhões), reproduzidos de um modo lúdico e paródico pela plateia em júbilo.

Porque não se deve esquecer: são dois deles que estão na corda bamba da cena, como na feira quando o mágico convida um futuro espectador a se comparar para fins de riso ao invencível Senhor Músculo ou ao quebrador de correntes: aqui trata-se apenas de uma velha, aparentemente, mas “ela é invencível como a morte”.

Passagem do fundo da platéia ao palco, tradicional, portanto, mas o extraordinário, o espetacular é que aqui, contra todas as possibilidades, o transeunte que inverte os papéis se torna o verdadeiro herói do espetáculo: Antonia e Peppino vencem. Essa reviravolta inesperada na ordem habitual das coisas faz com que todas as peças entrem em uma excitação desmesurada, a vitória dos dois protagonistas se comunica a cada um deles (e a cada um dos espectadores do filme); eles se tornam ao mesmo tempo espectadores e atores, vencidos pela onipotência mágica que tomou conta de seus representantes. Por isso essa espécie de movimento frenético que os faz se deslocar da praça pública às grades da villa, à cabana de Peppino. Em certos momentos a janela aberta da cabana cria o quadro improvisado de um pequeno teatro de rua, onde Peppino e Antonia reproduzem para o público os momentos importantes da partida que lhes opõe à velha. O público é assomado e convocado a tomar parte como no Guignol, ele deve participar e se pronunciar sobre quem é o melhor, quem é o simplório do casal.

Esta forma de teatro - falávamos de improvisações burlescas, de espetáculo de feira, de Guignol - situa-se entre a mímica e o real, o povo participa nela, e excede o seu próprio papel.

Todas as formas de jogo, que o sempre atual Bathkin[2] chamou de cultura carnavalesca[3]: essa concepção estética particular de representação da vida durante as celebrações de carnaval.

“Precisamente o que coloca as pessoas em tal estado de exaltação louca durante o carnaval é a irrupção de um mundo totalmente invertido: a miséria torna-se opulência, a servidão se transforma em liberdade irrestrita. O povo vivia a reencarnação de um retorno à Idade do Ouro”.

É algo desta ordem o que acontece aqui. O estado de exaltação inabitual que toma conta da favela vai durar o tempo de um ciclo de 24 horas, o tempo em que Peppino e Antonia ganham. Desposar a velha americana de sua fortuna é de fato penetrar magicamente, para o catador e sua companheira, e utopicamente para toda a população em uma nova vida de abundância e de prodigalidade. Revanche temporária dos pobres sobre os ricos.

Como no realismo burlesco, os temas mais graves da existência são objeto de escárnio; para além da personagem da rica americana é da velhice, da doença e da morte de que mais se zomba, pois a morte é pregnada pela renovação nas imagens do carnaval; a vitória sobre ela não é somente sua eliminação abstrata mas seu destronamento, ela é reduzida à trivialidade de um corpo: material que se despoja para o benefício daqueles que permanecem (daí a expressão que é retomada no decorrer do filme: “Deve-se roubá-la”); a morte reduzida também à medida de um corpo com uma fita métrica para se confeccionar o caixão.

Semeando a Ilusão é um grande filme popular e, no entanto, não acho que Luigi Comencini teria feito uma pesquisa de campo para registrar a loquacidade dos subúrbios, ou mesmo que ele está fadado às noites de discussões com catadores ou com comitês de inquilinos (sobre esse tema bem preciso, cf. Des enfants gâtés de Tavernier) de favela para estudar qual era a relação deles com a moradia, o dinheiro, as crianças. O que ele insere em seu filme são os elementos de espetáculo ligados organicamente a tradições populares ainda vivas; não o auto-proclamado vivido das massas, mas os modos de representação, as convenções de jogo que lhes são próprias[4]. O cinema permanence um tipo de meditação e prolongamento do teatro cômico popular.

Esta questão poderia também ser colocada aos cineastas que fantasiam com um público “de massa” e sobretudo pensam falar em seu nome: diga-me o que você introduz no seu filme (em Semeando a Ilusão o teatro de rua, o Guignol, o carnavalesco) e eu te direi a quem tu falas.

Quando é a filarmônica e a semiótica (Pai Patrão [Padre padrone, Paolo & Vittorio Taviani, 1977]), pode-se rir e dizer-lhe: tu não nos farás engolir que queres tocar um público popular, a menos que, por um subterfúgio, tu queiras fazer com que esse público esqueça a sua própria cultura ao falsificá-la sob uma outra que tu decidiste que deverá a partir de agora ser a dele... na perspectiva de um “socialismo avançado”.

Impossível não levar em consideração ao fim a identidade, a nacionalidade dos protagonistas da partida. Bette Davis e Joseph Cotten de um lado, Silvana Mangano e Alberto Sordi do outro[5]. O cinema americano (o Primeiro, o Rico, o Modelo) e o cinema italiano (o Popular, o Cômico, o Neo-realista mesmo). Inusitado confronto, pode-se dizer, esse face a face não tem nada a ver com a vontade crispada de um Bertolucci de se comparar - e mesmo de se medir (cf. J. Narboni sobre a pica de Sterling Hayden em Novecento [Bernardo Bertolucci, 1976]) - ao mestre (à metragem?), assim como nada tem a ver com o ato de amor louco dinamizado por Wenders em O Amigo Americano (Der amerikanische Freund, 1977). Nem crispação, nem devoção, nem fascinação. Mas uma convocação à farsa e disfarce de cada um com os ouropéis de um e de outro.

Definitivamente Semeando a Ilusão é um filme contemporâneo.

Notas:

[1] Os personagens são caricaturais mas não são monstruosos como são no cinema de Fellini e mesmo em certos filmes de Pasolini. São as suas funções sociais que os torna caricaturais: professor-tagarela, o padre-conciliador, o galã-trapaceiro, a prostituta-boa menina enganada pelo destino. É pela forma como hipertrofiam seus papéis, ou de saírem subitamente por uma reversão inesperada dos acontecimentos, que eles se tornam burlescos.

[2] Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) foi um filósofo marxista e pensador russo, teórico da cultura européia e das artes (n.d.t.).

[3] Em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, sempre nas Edições Gallimard.

[4] É também a abordagem de outro grande cineasta popuplar: Ousmane Sembene, em um filme como Xala.

[5] Atores a peso de ouro: bem mais que cem anos de carreira nos quatro juntos. E ainda mais uma vez, sob a direção de Comencini, eles preenchem admiravelmente a decrepitude geral de seus respectivos cinemas. Exceção que confirma a regra. (cf. Les fils ne valent pas les pères, P. Kané, Cahiers nº 282).

(Cahiers du Cinéma nº 284, janeiro 1978, pp. 42-45. Traduzido por Luan Gonsales)

 

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