ENTREVISTA COM A MORTE, Joseph Losey, 1959
por Jean Douchet
Uma arte de laboratório
Losey é acima de tudo um pesquisador, sua mise en scène um método. Seu objetivo declarado: o conhecimento. Seu único instrumento: a inteligência, ou melhor, a lucidez. Sua abordagem toma como modelo a do cientista. A mesma atitude fundamental diante dos fenômenos observados, o mesmo procedimento: descobrir a realidade vivida na sua totalidade, registrá-la como um objeto, fazer deste objeto o campo de sua investigação; resumidamente, colocar a realidade vivida em condição de experiência. Losey restitui à câmera sua função original de instrumento científico. Nisto reside a novidade do seu aporte.
Isto quer dizer que outros cineastas não são incitados pela mesma ambição? A concepção apriorística da realidade - a realidade decantada e ideal de um Fritz Lang, que cria um universo abstrato no qual se afrontam paixões reduzidas às suas linhas de força; de um Mizoguchi, assombrado pela oscilação perpétua entre o mundo exterior e um mundo íntimo; de um Raoul Walsh, que glorifica a aventura - prova que esses cineastas não possuem os mesmos interesses de Losey, mesmo se suas mise en scène se assemelham e sejam freqüentemente superiores à dele. Mas e quanto a Nicholas Ray e Rossellini? Eles também consideram a realidade vivida como um bloco a se respeitar a priori. O conhecimento, para eles, consiste então na súbita penetração intuitiva de uma realidade que será posta em evidência. O processo é idêntico para ambos: ir do exterior para o interior, através da sensibilidade.
Isso significa que, a despeito do ponto de partida em comum, seus processos são radicalmente opostos ao de Losey, ele que sempre parte do interior para o exterior. A um conhecimento instintivo que é puramente artístico, no sentido tradicional da palavra, Losey prefere um conhecimento lógico em que a intuição e a dedução estão subordinadas à inteligência. Esse tipo de atitude levanta o problema da estética cinematográfica moderna, que ultrapassa de muito longe os propósitos deste artigo. “Este era um dos princípios de Brecht, e o único com o qual eu estou completamente de acordo”, Losey nos contou[1], “de que no momento em que a emoção interrompe a linha de pensamento do público, o diretor falhou”.
Se uma palavra pode caracterizar a mise en scène de Losey, creio que esta deva ser ‘ruptura’. Não é totalmente exato dizer que o cineasta parte do interior para o exterior. Ele se prende às aparências, examina as relações objetivas e não se permite interpretá-las. Uma outra atitude seria anti-científica e, portanto, para ele, anti-artística. Porque para ele o exterior é o reflexo de fenômenos internos, o ato de projeção de um conflito íntimo. Os gestos remetem às suas motivações e a nada mais. Os efeitos traem tão-somente as suas causas e a razão dessas causas: o ser na sua nudez. Losey é o primeiro cineasta que tomou como seu único material de investigação, sem qualquer referência moral, metafísica ou religiosa, a verdade do ser humano. (O argumento estético que Jan, o jovem pintor holandês, expõe em Entrevista com a Morte é, neste ponto, muito claro).
Mas para que a pele esteja na iminência de romper-se, para que o ser humano possa, enfim, ser revelado à luz do dia, é necessário que a realidade seja colocada em condição de experimento, isto é, fechada e sujeita a uma pressão alta o suficiente para produzir a ruptura. Isto pressupõe uma situação dramática levada aos limites da teatralização. É necessário que haja uma crise aguda, uma temperatura febril, uma operação emergencial, e disto decorre esse estilo tão particular a Losey, um estilo cru, tenso, nervoso, incisivo. Um estilo contundente. Como A Sombra da Forca (Time Without Pity, 1957) e Armadilha a Sangue Frio (The Criminal, 1960), Entrevista com a Morte é um filme sobre uma irrupção. Um terremoto destrói toda segurança enganosa. É a manifestação visível das enormes pressões que se desenvolveram sob a crosta terrestre.
Se admitirmos isso, tudo em Entrevista com a Morte se torna claro, tanto os gestos como o décor, tanto a narrativa como a estrutura da história. Esta começa da seguinte forma: Jan corre até o apartamento de sua amante. É a primeira vez que ela permitiu sua visita. A porta está aberta. Ele entra. Não há ninguém. Ele aproveita a oportunidade para descobrir que tipo de décor sua amante tem, como se isso o ajudasse a decifrá-la. Ele ri da desordem no apartamento, é surpreendido pela decoração ostentatória do banheiro, tranqüiliza-se com um pequeno quadro de Van Dyck e, surpreso por achar um envelope recheado de notas, deita-se no sofá. Ele espera. A polícia chega. Sua amante foi assassinada enquanto ele olhava o apartamento. Ele se torna o principal suspeito.
Vamos parar por um instante nessa seqüência de abertura e na descoberta do apartamento de Jacqueline por Jan, descoberta, também, da própria Jacqueline. A câmera se ocupa de observar escrupulosamente a sucessão dos fatos, a manifestação de fenômenos e suas relações objetivas. Antes de tudo, a própria personalidade de Jan. Excitado por essa aventura, seu verdadeiro ser se revela nas suas atitudes tanto quanto nas suas reações, projeta-se em cada um dos seus gestos. Por serem reflexos de sua intimidade, seus gestos serão tão raros como preciosos (e em alguns momentos, devo admitir, aproximam-se do preciosismo). A exemplo do modo como nosso jovem amante pára de repente, apoiado em uma perna no vão da porta do quarto, uma posição enfatizada ainda mais pela mudança de ângulo. Tudo em Jan revela uma inocência preservada, o coração intacto de uma criança ávida para ser encantada pelo amor.
Muito ávida, de fato, para observadores imparciais como nós, e não podemos evitar a idéia de que há um hiato entre a natureza de Jan e a natureza da mulher que ele ama, tal como ela nos é revelada pelo seu apartamento. Este pertence claramente a uma prostituta de alta classe. Algumas das reações de Jan deixam claro que ele está atento a isso, mas então um objeto de bom gosto traz sua confiança de volta. Ele está de fato desejando ser arrebatado. Ele está cego por seu amor e sua confiança. Ele está no limite da submissão, sua inocência encontra-se ameaçada. Este é o coração da matéria de Losey. Jan tem que avaliar a si mesmo, ter a noção exata de seu valor, conhecer-se por completo, em suma, estudar-se; ou seja, alcançar a lucidez através de um auto-exame crítico nos termos de sua relação com o mundo exterior.
O assassinato cria as condições requisitadas para um experimento desse tipo. Ele estabelece um universo enclausurado propício às pressões máximas. Estas se exercem com uma intensidade crescente sobre os seres prisioneiros dessas condições, provocando neles um isolamento que se traduz visualmente na mise en scène e que me parece ser o esquema dinâmico de Entrevista com a Morte. Esse isolamento nasce com a lacuna entre Jan e o décor. Desenvolve-se a partir da chegada da polícia, com a breve verificação feita pelo inspetor Morgan no apartamento. Desta vez é uma fria e clínica inspeção que não deixa dúvidas a respeito do caráter volúvel de Jacqueline, ou a respeito da rudeza popular e a falta de tato claras de Morgan (seus gestos, seu sotaque gaulês, sua reação diante do espelho em frente à cama etc.).
O confronto de duas visões divergentes de um mesmo décor e, portanto, da mesma mulher, conduz a um isolamento ainda mais violento: o do flashback. Este se opõe visualmente, por sua áspera, branca iluminação Nórdica e pelo despojamento do décor, à fotografia cinza e ao apartamento desorganizado da primeira parte. Esse flashback, provocado pela própria lógica da situação, é tanto uma evocação sensual de uma atração amorosa como uma análise precisa de um relacionamento entre dois amantes e um julgamento de seu amor. Como uma investigação tornada necessária pela lógica interna da situação, ela traz à tona a incompatibilidade evidente que existe entre a Jacqueline amada por Jan e a proprietária do apartamento, pelo menos da forma como foi descoberta pela polícia através dos testemunhos de pessoas e objetos.
É isto que Morgan não pode deixar de notar - ele tem um bom faro, mesmo com o nariz entupido. Losey gosta de sobrepor a luta pela lucidez com essa espécie de obstáculo físico (a embriaguez de Redgrave em A Sombra da Forca, a gripe de Morgan em Entrevista com a Morte), um obstáculo que tem seu contraponto na paixão cega de Jan. Deve-se lutar contra a névoa de sua própria mente. Morgan também está envolvido neste caso tanto quanto Jan. Ele se vê envolvido na mesma busca por verdade, e assim pela sua própria verdade. Daí as pressões às quais ele também será submetido. As pressões sociais o fazem oscilar entre o desejo por uma promoção no trabalho e o desejo, mais importante, pelo respeito de si próprio. Uma simples questão de dignidade. O problema, tanto para Morgan como para Jan, é o mesmo: resistir à corrupção, preservar a sua integridade. Assim que constatam essa semelhança entre suas identidades, após uma pequena briga no escritório do inspetor Morgan, instigado pelas questões ofensivas de Jan, a resolução não está muito distante. A mulher - Jacqueline/Lady Fenton - é localizada; sua duplicidade, sob a dupla pressão exercida por Morgan e Jan, irrompe. A mentira amaldiçoa a verdade. O ser vence a aparência. A inocência é libertada.
Nós estaríamos, então, compreendendo mal Losey, estaríamos até mesmo interpretando de modo completamente errôneo sua obra se nos recusássemos a ligar sua estética a um racionalismo de esquerda. Até mesmo de extrema esquerda, como Domarchi sugeriu, visto que Losey recusa categoricamente qualquer apelo a um sentimentalismo tão caro a uma auto-proclamada “esquerda artística”. Sua arte é uma arte de laboratório. Coloca-se um bloco completo de experiência vivida num recipiente. Criam-se as condições mais favoráveis para o experimento. Analisa-se então com precisão todas as relações objetivas que se formam e descobre-se que a luta é a origem vital de toda realidade. A luta de indivíduos (Jan e Jacqueline, Jan e Morgan), a luta de classes etc. Mas como o conhecimento do observador é sempre alinhado ao da pessoa observada, a luta permite que este conhecimento se desenvolva. Nesse clima de conflito dramático, uma violência justificada quebra estruturas ossificadas, pressiona o ser rumo à superfície.
Extrair as vibrações internas do ser: essa exigência que Jan faz de Jacqueline enquanto ela desenha (apesar de que ela, refletindo sua classe, procura somente dissimulá-las) é a mesma de Losey para com sua arte. Uma arte que despreza a adulação, que destrói o mito pela lucidez, que irrita e afronta. Uma arte que fere porque não sofre de qualquer compromisso. Mas uma arte com sede de verdade. É por isso que ainda repele a tantos.
Nota:
[1] Cahiers du Cinéma n° 111, setembro 1960, p. 5.
(Cahiers du Cinéma nº 117, março 1961, pp. 47-50. Traduzido por Luan Gonsales)
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