ABRAHAM LINCOLN, D. W. Griffith, 1930
por Jean-Claude Biette


Para me poupar a compra de um cassete americano de qualidade medíocre, o responsável pelos filmes na Attica (Gilles) emprestou-me, há alguns dias, um filme sobre o qual estava há muito tempo curioso. Descoberta, portanto, ontem à noite com Sylvie e Marc Sator, de Abraham Lincoln que Griffith realizou em 1930 no início do cinema falado. Assim, certos filmes passados sob silêncio - bela expressão - podem valer infinitamente mais do que o magro bem que uma ausência quase total de reputação deixa adivinhar. Desde há uns bons cinqüenta anos que se ouve dizer que Griffith não soube dobrar o cabo da Boa-Esperança do cinema falado e sonoro, e aliás, longe desta travessia feita por tantos outros que não ele, já não tinha ninguém, nem produtores, nem público para acreditar ainda neste velho cineasta e nos seus filmes obsoletos. E não se voltará hoje a ver o brilho de Griffith, a não ser sob esta forma dissecada que a crítica registrou no seu grande herbário enciclopédico, se não se tiver o escrúpulo ou a imaginação de ir por si mesmo procurar as provas bem vivas do gênio dele nos filmes, e se não se obstruir os pálidos julgamentos de certeza transmitidos através de gerações. Mas glória a James Agee!

Abraham Lincoln é o mais belo desmentido que é possível opor àquilo que fossilizou a percepção geral do cinema de Griffith. Dir-se-ia um remake, secreto e desejado, de O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), no qual tudo - até à menor figura dinâmica - teria sido avaliado, modificado, transformado ou reinventado com base numa imediata e feliz disponibilidade para encenar os sons, de forma a que nada, absolutamente nada, aí se reconheça do célebre filme nem do conjunto dos traços que caracterizam - ideologicamente e esteticamente - o maior cineasta do mudo. Nem Renoir, nem Fritz Lang pensaram de forma tão completa como Griffith tudo o que o som tecnicamente registrável podia oferecer ao ouvido do espectador para a percepção da narrativa: como coligir outros traços de História, que novos fios narrativos seria possível puxar[1] com esta súbita invocação das palavras, com a supressão do tempo de leitura dos intertítulos; e na dramaturgia: como é que o jogo dos atores oscila assim até o ponto em que os dados auditivos podem vantajosamente substituir uma visão silenciosa, orientando os seus gestos segundo uma economia mais intensa (a cena de amor com Ann Rutledge, ou o plano sublime do General Sheridan chorando sobre a sua cama de campanha).

Hawks tinha resolvido a questão com a arrogante certeza do natural, como se o som sempre tivesse existido, como se a sua chegada tivesse sido ocasional, anedótica, simples lomba de estrada cuja passagem é preciso amortecer. Griffith, quanto a ele, repensa, de alto a baixo, os ingredientes do seu filme anterior: deixa o Sul pelo Norte, situa Lincoln, como Renoir faz com os esposos Bovary, na densidade existencial das personagens e da sua idéia fixa, e parece até mesmo propor um modelo generalizável de invenção (toda a gente na altura, à exceção de DeMille, Hawks e sobretudo Sternberg em Marrocos [1930], acusa o toque, resistindo como Chaplin e Murnau, recentrando-se no falar - Lang - ou evadindo-se - Renoir), para que seja quem for aí perdesse o seu latim de cinema mudo.

Griffith continua a pensar por quadros, mas o espaço subitamente privado de efeitos expansivos torna-se, muito antes de Bresson, a peça mestra de um dispositivo sonoro, permitindo traduzir diretamente as emoções, as ações, os conflitos em novas expressões sem ter que transpor visualmente: o melodrama termina o seu tempo - pelo menos, para Griffith -, no momento em que o comentário escrito é rubricado. Os silêncios, os gritos, os risos, as tosses, os ruídos, as músicas, podendo ser ouvidos, podem tornar-se elementos distintivos e inscrever uns com os outros uma grande partitura da história. Pela forma como pensou a realização de Abraham Lincoln, Griffith descobriu - mas esta descoberta é sem dúvida demasiado forte para uma época longamente surda - que a imagem já não é a instância suprema, que o som traz ao cinema o sentimento ainda inexprimido do presente, que inaugura uma disjunção na representação dos feitos humanos pelos atores, abre o caminho a uma materialização da história, a uma dialética mais sensual do fazer e do viver. Basta comparar, nem que seja de memória, o assassinato de Lincoln em O Nascimento de uma Nação com o do seu remake sonoro, para se perceber a total dessemelhança das suas proposições cinematográficas de um mesmo fato histórico (mesmo reservando o lugar devido ao Print the Legend!), tão eloqüentemente necessária que a imagem que eu tinha feito de Griffith, essa má mistura de recordações vagas e de opiniões autorizadas, desvaneceu-se ontem à noite.

Notas:

[1] A tradução perde o trocadilho usado pelo autor: no original a expressão utilizada é “tirer”, que alude à expressão francesa “tirer les oreilles”, “puxar as orelhas”, que aqui seriam as do espectador, já que, na mesma frase, o autor utiliza a expressão “offrir à l’oreille du spectateur”, traduzido como “oferecer ao ouvido do espectador” (n.d.t.).

(Este texto, fortuitamente não publicado no Cinémanuel [Colléction Trafic/P.O.L., 2001], e que assim se manteve inédito, foi gentilmente cedido por Jean-Claude Biette, em 2002, para publicação no catálogo D. W. Griffith, Maria João Madeira e Luís Miguel Oliveira [orgs.], Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, outubro 2004. Traduzido por Maria João Madeira)

 

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