VAN GOGH, Alain Resnais, 1948
O cinema e a pintura
Os filmes sobre arte são uma das mais incontestáveis novidades do documentário, depois de seis ou sete anos, e talvez até mesmo a única novidade, pois, após Marey e Lumière, Flaherty, Joris Ivens, Vigo, Cavalcanti, Buñuel e Brunius, não vejo nada que o documentário tenha inventado de essencialmente novo. Ele pôde nuançar ou enriquecer certas aquisições suas, às vezes com muita originalidade e talento, sobretudo no domínio científico, tributário dos progressos técnicos, mas sem conseguir anexar novos territórios.
Pode-se citar excelentes documentários de dez anos atrás mas, para além do fato de tratarem quase que exclusivamente da escultura e da arquitetura, julgadas sem dúvida como mais cinematográficas em função da sua condição espacial, eles se limitavam a uma descrição externa do seu objeto.
O protótipo do gênero é o inevitável Rodin (1942) de René Lucot, cujos estragos foram ainda maiores visto que uma total ausência de gosto e uma constante segurança diante do contra-senso estético são admiravelmente mascarados por uma demagogia plástica e uma falsa pedagogia que naturalmente não deixam de causar ilusão. Essas críticas não são, felizmente, válidas para todos os documentários do mesmo gênero, embora os melhores sejam no fundo um aperfeiçoamento didático do álbum de fotografias.
Foi o filme de Jean Lods sobre Maillol (Aristide Maillol, sculpteur, 1943) que começou a renovar a questão, ainda que a idéia inicial do filme já se encontre numa forma primitiva e elementar nos documentos biográficos de Sacha Guitry. Mas era apenas questão, para Guitry, de conservar uma fotografia animada de um personagem célebre. Lods, ao mesmo tempo em que se propõe o mesmo objetivo, procura transformar seu retrato cinematográfico em uma introdução crítica à obra do artista. Se vemos muito poucas estátuas nesse filme, finalmente sabe-se mais a respeito da escultura de Maillol que da de Rodin pelo filme de Lucot; fica-se mais propenso a compreendê-la e admirá-la. Trata-se certamente neste caso de um fenômeno especificamente cinematográfico, irredutível à fotografia. Apesar de ser muito menos inteligente no seu conjunto, o filme sobre Matisse aperfeiçoa o de Lods ao menos em um aspecto: a câmera lenta da mão de Matisse enquanto pinta.
Contudo, tirando o fato de que esses retratos críticos só são possíveis com artistas vivos, eles ainda permanecem ancorados às tradições cinematográficas anteriores. Pode-se considerá-los como uma combinação da atualidade filmada mesclada a certas concepções literárias da crítica pela biografia e o meio.
Ao contrário, a surpresa e o entusiasmo suscitados pela aparição dos filmes de Emmer e Gras sobre a pintura vêm da sua novidade radical em relação ao uso que se fez anteriormente do cinema. Descobria-se uma apreensão crítica da pintura especificamente cinematográfica, uma síntese das duas matérias estéticas: pictórica e cinematográfica. Em certo sentido, pode-se até mesmo dizer que não se trata mais de pintura, mas sim de cinema, uma vez que a obra inicial é decomposta e recomposta pela câmera. Não é do alcance da minha proposta pesquisar se Emmer é ou não o criador do gênero. É possível que ensaios da mesma natureza sejam anteriores a ele (em particular um Rubens a cores de René Huyghe). A questão não tem grande importância porque é incontestável que é pelos seus trabalhos que Luciano Emmer e Enrico Gras exploraram da forma mais brilhante e mais convincente esse método[1].
Este consiste essencialmente, por um lado, em desenvolver o espaço pictórico no tempo, e por outro em tratar esse espaço como indefinido. Na realidade, é esse último ponto que importa sobretudo, pois é ele que dá ao tempo o seu sentido. O procedimento é fundado pela oposição entre a metafísica do quadro e a da tela. A moldura do tableau (ou até mesmo simplesmente a moldura virtual determinada pelas bordas da tela) mantém efetivamente com a imagem que confina uma relação rigorosamente inversa daquela das bordas da tela do cinema. A moldura é constitutiva da pintura: ela define o microcosmo pictórico como radicalmente heterogêneo ao universo que a rodeia; é o signo de uma exterioridade ontológica da imagem a qual ela controla em relação às imagens do mundo exterior. Por essência a pintura é cercada: inserida por força no mundo natural. O quadro pictórico é, portanto, centrípeto, orientado para o interior. Ao contrário, tudo que é projetado na tela é necessariamente, em função de sua natureza fotográfica, percebido como indefinido, assimilado ao mundo exterior. A tela não é mais um quadro, mas um refúgio; ou, se quisermos, uma janela; ou, se quisermos ainda, um espelho. Ela é centrífuga, pois a imagem se prolonga virtualmente sem limite para além do retângulo negro que restringe nossa visão. Em outros termos, a fotografia e a fortiori o cinema nos mostram sempre um fragmento do universo.
O achado fundamental de Emmer, aquele do qual tudo provém, é o de jamais mostrar os limites do objeto pictórico, ou seja, de inserir a tela no quadro e, portanto, negar o último. A operação comporta uma química e uma física. Inicialmente transforma-se a pintura em fotografia, o que permite em seguida tratar a nova imagem exatamente como o universo, nos apresentando-a sucessivamente e na medida do possível como fragmentos de um mundo indefinidamente expandido, homogêneos ao espaço virtual que nos é ocultado.
Assim sendo, o cineasta nos introduziu psicologicamente no mundo do artista. A fórmula nada mais tem aqui de uma metáfora, não se trata de uma identificação imaginária, de uma participação afetiva ou intelectual, mas de um fenômeno absolutamente independente do nosso grau de consciência e que interessa à própria raiz da percepção. Não nos é mais possível escapar do mundo do pintor porque o tableau se tornou Mundo e, deste modo, somos mantidos no interior desse mundo sem nenhuma outra referência a um outro universo nem, sobretudo, ao Universo como tal. A câmera psicologicamente criou uma quarta dimensão tão ilimitada quanto as três outras e que se desenvolve no interior do tableau.
É partindo dessa introdução da imagem pictórica no universo que Emmer pôde se permitir sua análise dramática. É importante não confundir os dois aspectos da operação, visto que o primeiro é a condição do segundo. Mas quem não vê que toda pintura não se quer dramática e que o cineasta reconstrói aqui o tableau sobre uma outra estrutura que aquela desejada pelo pintor? Constatar isso não é necessariamente um senão. Diríamos mesmo de bom grado que a dramatização é ainda mais bem fundada quando a pintura não é dramática, isto quer dizer anedótica. Quando se trata de “primitivos” que, por exemplo, se esforçaram para integrar um desenvolvimento sucessivo no quadro de um mesmo tableau, como Jérôme Bosch ou Memling, o cinema vem de alguma forma desdobrar a superposição pictórica e, portanto, colocar-nos em contato direto com a invenção do tema. É possível até mesmo que no caso de uma pintura não anedótica, a dramatização renove a visão mais fortemente pela introdução de um meio de apreensão estrangeiro.
O interesse do procedimento de Emmer é certeiro. Esteticamente, ele constitui um tipo de trabalho em segundo grau, cuja existência não pode ser contestada. Na medida em que ela não pretende ser uma representação fiel da pintura, mas uma interpretação pelo cinema, há apenas uma coisa a se dizer: é uma obra cinematográfica. Por outro lado, seu valor pedagógico é potente. É preciso ter uma grande cultura ou uma sensibilidade excepcional para desfrutar de uma pintura cuja anedota não constitui o essencial, ao passo que todo homem, mesmo o mais inculto, é imediatamente sensível ao drama. Ao identificar o tableau ao mundo natural, Emmer o coloca primeiramente sobre o plano da experiência realista à qual ninguém escapa. Ao reconstruí-lo conforme uma sucessão de causas e de efeitos, desdobrando-lhe em forma de narrativa, ele permite que todos, sem expectativas, acedam à emoção.
Mas, dir-se-á: qual emoção? Ela ainda é pictórica? O mais importante talvez não esteja nisto. Bastar-nos-ia que, pictórica ou não, ela fosse estética. Ora, em si mesmo o procedimento não o garante. O perigo dos filmes de Emmer é que valem, sobretudo, pelo seu autor, e que estremecemos ao imaginar os resultados de tal método inconsideradamente aplicado por cineastas que não possuem sua inteligência pictórica. Ou melhor: Emmer não poderia continuar indefinidamente a realizar tais filmes (e ele foi o primeiro a compreendê-lo). Enfim, e isto é o mais grave: os próprios filmes de Emmer não ganham muito ao serem revistos com freqüência (ao passo que não se pode dizer o mesmo das obras que utilizam). Os perigos e os limites da reconstrução dramática vêm à tona ao ridículo se imaginarmos um instante aplicado, por exemplo, ao Sacre de Napoléon por David. Tornar-se-ia apenas uma atualidade reconstituída.
O primeiro indício de qualidade do Van Gogh , realizado por Alain Resnais a partir de um roteiro de Gaston Diehl e de Robert Hessens, é precisamente o fato de que se imagina menos facilmente o pastiche. Seria injusto não reconhecer o que esse filme deve a Emmer e no quê ele se distingue e o ultrapassa.
O princípio fundamental é o mesmo: introduzir-nos no universo do pintor pela inserção da tela no quadro. Mas esse realismo de segundo grau não é utilizado com os mesmos fins dramáticos. A pretensão dos autores é aqui ao mesmo tempo mais modesta e mais aventurosa: mais modesta no sentido de que não pretendem reconstruir tal ou tal obra de Van Gogh, nem mesmo um tipo de tableau sintético feito de uma montagem de várias telas. Na medida em que a intenção vai se encontrando, ela é felizmente mantida no segundo plano. O cinema mantém em relação à pintura uma humildade sempre sensível: se ele ousa se servir dela, ele não tenta nos convencer que faz uma prestação de contas exaustiva; no máximo tenta nos convencer que propõe uma introdução. Mas, por outro lado Alain Resnais, Gaston Diehl e R. Hessens buscam fazer um filme sobre o artista e poder retraçar através da sua pintura a vida, ao menos idealizada e simplificada, de Van Gogh.
Seria inútil decidir se tal pretensão esteticamente possui fundamento. Quanto a isso, professor e críticos podem argumentar a favor ou contra. Mais que às teorias sobre a psicologia da criação, é melhor se referir aos resultados. Ora, não resta nenhuma dúvida de que, pelo menos para alguns artistas, a obra sintoniza-se bastante diretamente com a biografia para que tanto uma como a outra se esclareçam reciprocamente. É este o caso de Vincent Van Gogh. É também por isso que o mesmo filme não seria evidentemente possível com Braque, Matisse ou Manet. Mas a biografia espiritual de Van Gogh se confunde com a sua pintura, chegando até mesmo a se confundir com a própria técnica de seu trabalho. Ao contrário de um Cézanne, que retomava por um ano a massa de uma tela, Van Gogh refazia sucessivamente inúmeras vezes um mesmo tema. Enfim, e sobretudo, não é tanto a anedota que é dramática nessa pintura, onde tudo é drama, mas a maneira de pintar e a visão subjetiva das coisas; é o vai-e-vem do pincel que construiu o sol desse fogo de artifício, é o cipreste flamejante, o desenrugar doloroso das amêndoas, a perspectiva desmesurada de uma mesa de sinuca sob uma luz de lâmpada.
É também, dir-se-á, o rugido elevado dos amarelos, o grito das cores puras. Deus que me perdoe! Os filmes sobre a pintura ainda são apenas raramente a cores. Certamente isto não é a princípio desejável, mas se é perdoável ainda não saber se servir da cor nos filmes narrativos, o que seria aqui! Em preto e branco ao menos é certo de que não haverá traição ao pintor, pois se trata de uma convenção evidente para todos. A inconsistência da película torna-se até mesmo um elemento crítico positivo. Van Gogh, que poderíamos acreditar ser antes de tudo um colorista, revela no filme, como se fosse filigrana na massa, a força independente de seus temas, o valor profundo de suas estruturas materiais, o rigor de sua geometria simbólica. Enquanto nenhuma reprodução colorida seria provavelmente boa o suficiente para reproduzir a verdadeira eficácia pictórica de um Renoir, Van Gogh, despojado de sua cor, deixa subsistir uma rede alucinante de nervos e de tendões atados aos ossos do mundo. Melhor e mais seguramente que a fotografia, o cinema em preto e branco pode radiografar a pintura e revelar qualquer elemento essencial de sua existência.
O filme de Alain Resnais, Gaston Diehl e Robert Hessens pode, portanto, ser considerado uma síntese entre o filme-retrato do gênero Matisse ou Maillol e os filmes de Emmer. Em todo caso, ele não possui nada a ver com filmes descritivos anteriores como Rodin. Somente o cinema poderia permitir essas análises, essas aproximações e essa nova síntese pela qual a obra de Van Gogh revela pouco a pouco um sentido que cada quadro não possuía individualmente.
Do ponto de vista puramente técnico a mise en scène de Alain Resnais permanece evidentemente bastante próxima da de Luciano Emmer ou das de André Cauvin, realizador de Memling, e de Storck e Haesaerts, realizadores de Rubens. Essa mise en scène contém, entretanto, duas ou três nuances originais das quais ao menos uma constitui uma novidade capital. Uma vez que a convenção realista da negação do quadro está no princípio do filme, tudo que contribui para confirmar a verossimilhança física do mundo pictórico e a continuidade indefinida do espaço é um progresso. Ora, tanto Storck como Emmer haviam pensado em representar a profundidade apenas por travellings para frente e para trás. Por mais longo que fosse, esse travelling partia fatalmente do plano da tela e em algum momento parava. O efeito já é por vezes espantoso, como no admirável último plano do Paradis terrestre de Jérôme Bosch, no qual a relatividade do movimento nos faz crer que são Adão e Eva que se afastam.
Mas trata-se ainda de uma ilusão de relevo e não de uma terceira dimensão. A pintura permanece uma superfície sem avesso. Salvo engano, é a este Van Gogh que cabe o mérito de ter ultrapassado esse último obstáculo, pelo contracampo de 180 graus. Resnais o pratica duas vezes, a primeira na seqüência dos casebres. Nós vemos em “aberto”, de costas, uma camponesa entrando na sua casa; o plano seguinte é um contracampo “aproximado” da mesma camponesa vista de frente. O segundo exemplo, ainda mais impressionante, próximo do fim do filme, é o de um raccord de dois travellings em contracampo; de início nos é mostrada numa externa a casa do pintor em Arles e, em seguida, enquadra-se a janela com as persianas entreabertas; imediatamente depois o movimento continua em recuo no famoso quarto de visitas, como se a câmera, tendo penetrado no lugar, prolongasse sua observação. Agora parece impossível realizar filmes similares sem encontrar uma forma de passar pela teia de Resnais.
Em Guerrieri, Emmer havia cruzado vários tableaux com notável habilidade, mas sua justificativa era tênue porque pretendia permanecer interior à pintura ao passo que se tratava na realidade somente de uma anedota. No filme de Resnais é o retrato do pintor que requisita à pintura de nos revelá-lo. Se a obra de Van Gogh é solicitada, é pelo menos sem equívoco em relação à fidelidade da intenção do tableau. É por isso que não sentimos nenhum desconforto de nos emocionar com as seqüências patéticas da loucura, do asilo em Saint-Rémy e da saída do asilo, com o belíssimo travelling pelas galerias até a porta e o florescer das amendoeiras em flor. Resnais soube garantir admiravelmente nesta biografia o máximo de elementos especificamente pictóricos. Cada parte, independentemente de sua linha dramática, permanece ligada a um tema: o dos casebres campestres, dos campanários, do Moulin de la Galette... E será que é o caso de se falar de anedota, de drama de pintura ou mais simplesmente de poesia quando a grande viagem de Van Gogh para Provença nos é significada pelo close das famosas botas gastas?
É que apesar de toda a metafísica que pode ser agradável ou mesmo útil de se fazer a respeito de uma técnica, o essencial e o insubstituível localizam-se ainda além. Sinto muito por chegar tão tarde e por permanecer por tão pouco tempo. Mas é também porque, na verdade, não há nada a se dizer sobre o assunto. Van Gogh é aquilo que é porque Alain Resnais, operador de câmera e diretor ao mesmo tempo, é um rapaz que possui um senso notável da pintura e do cinema. E também porque sua modéstia e sua exigência o ajudaram a evitar comprometer sua proposta excedendo-a superficialmente. Basta observar o gosto requintado, a segurança infalível dos enquadramentos, a qualidade não apenas dos movimentos de câmera como também de suas cadências e de seus fins para compreender que o que nos enternece neste filme é a emoção de Alain Resnais diante de Van Gogh. Poderia ter bastado dizer muito simplesmente que soube nos comunicá-la.
Nota:
[1] Ver em La Révue du Cinéma nº 1, outubro 1946, o estudo dos filmes de Emmer e Gras por Jean-George Auriol, em Les origines de la mise en scène.
(La Révue du Cinéma nº 19-20, outono 1949, pp. 114-120. Traduzido por Bruno Andrade)
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