TARDE DEMAIS PARA ESQUECER, Leo McCarey, 1957
Quem diz melodrama, olhando para Hollywood, logo pensa em An Affair to Remember que, o tempo, os múltiplos “remakes” e as múltiplas referências (em outros filmes, em romances, em peças teatrais etc.) transformaram na quintessência do gênero. Mas An Affair to Remember era o regresso do criminoso ao local do crime. Ou seja, era o regresso do grande Leo McCarey (lembram-se da retrospectiva que a Cinemateca lhe dedicou há já mais de vinte anos?) ao filme de 1939, Love Affair. Exatamente a mesma história, só que sem “scope” e sem cores. Qual é a melhor? Love Affair (enorme sucesso de 1939) ou An Affair to Remember? Há quem jure por um, há quem jure por outro.
Produtor e realizador de An Affair to Remember (como sucedeu com todos os seus filmes a partir de Make Way for Tomorrow), Leo McCarey terá tido alguma influência no título? É que parece a primeira piada... Que nessa segunda versão tenha caído a palavra love para só ficar a palavra affair (e é o affair a coisa a lembrar), pode dar a entender que o que McCarey sobretudo recordava era o fabuloso negócio que o filme de 1939 fora.
Ora, se McCarey tinha sido perito em negócios a partir de Love Affair, deixara de o ser a partir de Good Sam, filme de 1948. Durante dez anos, pouco mais ou menos (de 1939 a 1948), foi o cineasta de Hollywood que ganhou mais dinheiro. A partir de 1948 começou a escorregar. My Son John (1952) foi um desastre total. Bem precisado andava McCarey que se lembrassem do jeito dele para “affairs”.
Tão mais precisado quando, durante cinco anos, o celebradíssimo Leo esteve desempregado, a tentar montar uma comédia musical baseada na vida de Marco Polo, com Mario Lanza como protagonista. McCarey queixou-se de ter perdido nesses preparativos 126.000 dólares, só a escolher (e a pagar) as melhores canções. Depois, foi para as montanhas escrever o “script” (em 1953). Quando voltou, o tenor Lanza, que era magrinho, tinha engordado imenso. Nem pensar nele para Marco Polo... “My heart was broken”, escreveu o realizador. E partiu para a Europa - donde esteve dois anos - à procura de outro ator. Não conseguiu e voltou a Hollywood, em 1955, de mãos a abanar.
Foi em desespero de causa que se decidiu ao “remake” de Love Affair. Cary Grant e Deborah Kerr retomaram os papéis interpretados quase vinte anos antes por Charles Boyer e Irene Dunne e, pela primeira vez na obra do realizador, apareceram a cor e o “scope”. Mas não foram apenas essas as novidades. O argumento foi consideravelmente retrabalhado e McCarey afirmou um dia que a principal razão porque voltou a pegar num filme de que tanto gostara (e de que tanto se gostou) foi a de saber se continuava a ser tão bom argumentista e tão bom realizador quanto vinte anos antes. “Todas as noites, ficava acordado para tentar melhorar o filme: escrevi mais ou menos um terço de diálogos novos. E hei-de me lembrar sempre do dia em que encontrei Deborah Kerr em Madri e em que esta me disse: ‘Lembras-te do diálogo da cena na amurada: o inverno deve ser muito frio para os que não tem memória que os aqueça e já perdemos a primavera... Lembras-te disso, Leo?’ Respondi-lhe: ‘Evidentemente que me lembro, não me deitei toda a noite para chegar a esta frase’”. Mas McCarey disse também que fez este “remake” porque era sua história de amor favorita. “Como, pelo menos, duas gerações de jovens não tinham visto a primeira versão, tive a sensação de que devia a contar de novo para eles”. E notou, um dia, que, para ele, a principal diferença entre as duas versões era a diferença entre Charles Boyer e Cary Grant. “Cary Grant nunca consegue disfarçar completamente o extraordinário sentido de humor que tem (...) é por isso que a segunda versão, mesmo nas cenas de amor mais comoventes, é sempre um tanto ou quanto cômica”. O que não impediu o cineasta de incluir sempre este filme (como a versão de 39) entre os seus favoritos, e o que não impediu o filme de ser, à época, um novo gigantesco êxito comercial, o último grande êxito comercial de McCarey. Tão gigantesco que se fariam mais três “remakes” nos anos 90, possivelmente a se pensar nas muitas gerações de jovens que não tinham visto nem Love Affair nem An Affair to Remember. Tão gigantesco que dos dois “affairs” é o mais lembrado e muitos o julgam o “affair” inicial.
Cinqüenta anos se passaram e, provavelmente, hoje, mais três ou quatro gerações vão ser confrontadas com esse sublime melodrama. E, provavelmente também, vão sentir o constrangimento e a pressão a que obras destas normalmente obrigam. Vamos de caras ao assunto: como olhar a seqüência da visita à avó e particularmente nela o plano da capela, com Deborah Kerr e Cary Grant a rezarem perante uma imagem tão “saint-sulpiciana”? É fácil recuperar pelo lado “kitsch”. Mas, reparar-se-á que neste fabuloso plano, com a pose estudada de Deborah e o estudado desajeitamento do sinal de cruz de Grant, está contida toda a comédia e todo o drama do filme, fingindo sempre tão sinceramente que não chegamos a sentir se é dor a dor que deveras se sente. Cada um deles (ator como o realizador) está e não está ali “para nos comer melhor” e para melhor se comerem uns aos outros. Cada um finge com sua própria verdade e cada um é verdadeiro só na medida em que melhor finge. Recordemos, para o ilustrar, outra seqüência de antologia: a chegada do navio chamado “Constituição”, com os noivos respectivos de Grant e Kerr à espera deles. Os beijos atirados pelos protagonistas são mais ou menos sinceros do que os olhares que entre si se trocam de cada um dos lados do écran a aproveitar genialmente o “scope”? Pelo argumento, sabemos que são menos, mas o jogo vai suficientemente longe para que o argumento acabe por dizer mais do que diz. Como se os atores estivessem sempre conscientes da sua própria representação e das emoções que provocam, parecendo reparar nisso só no último minuto (como acontece na seqüência a bordo em que jantam sozinhos perante as gargalhadas gerais). Como de si próprio dizem, estão sempre a esconder o que é óbvio para toda a gente ou estão sempre a tornar óbvio o que nem eles próprios sabem muito bem?
An Affair to Remember é um pouco como os quadros que Grant pinta: “trompe-l’oeil” com alguma falta de memória, isto é, contando com a falta de memória do espectador. “Beauty makes me cry”, diz Deborah Kerr em uma das seqüências mais melodramáticas do filme, de noite a bordo, com estrelinhas e tudo. Mas quem se lembra de tudo, sabe que outras coisas a faziam igualmente chorar: uma cigarreira, diamantes, champagne rosé, a inscrição da dita cigarreira e as coisas que o miúdo refere quando diz que o mandavam sair sempre que falavam de Cary Grant na frente dele. E, curiosamente, Deborah Kerr repete a frase, aquando duma “beleza” que só vemos da cintura para baixo: o primeiro beijo nas escadas do barco, escadas que depois servirão para fazer tudo andar à roda.
E tudo anda à roda neste filme de aparências e em que as aparências estão mesmo para iludir. O que não quer dizer, como tanto se tem sublinhado, que McCarey seja cínico ou dúplice. Mas apenas que há um olho que se umedece e outro que jamais se embacia, que a paixão romântica é igual à paixão cética. Por isso este filme acaba num pedestal e por isso desde o início sabemos o que acontece a esses pedestais. An Affair to Remeber... Mas a memória é tão curta e os “affairs” são tão compridos...
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