TRÊS TOURNEUR
Cineasta maldito, Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque sistematicamente se recusa a oferecer ao espectador o menor ponto de apoio por onde este poderia apreender seus filmes; ou antes, ele apenas extrai de seu pensamento elementos aparentemente incoerentes, freqüentemente inesperados. A explicação é simples: sua maneira de narrar consiste em dar uma imagem abreviada da vida, obtida pela decomposição dos elementos mais variados da existência, em seguida recompostos de maneira a acelerar certos movimentos, evitando assim as abordagens supérfluas. Basta comparar a estrutura de suas cenas às de um Hitchcock. Em Os Pássaros (The Birds, 1963) duas imagens de morte brutal são propostas ao espectador com a mais perfeita precaução: o velho com os olhos arrancados, do qual pouco a pouco nos aproximamos; o carro que explode, após termos acompanhado a causa desta explosão. Em Tourneur, ao contrário, a morte é uma coisa breve, irremediável, sem causa aparente. O menino baleado fatalmente através da janela em Choque de Ódios (Wichita, 1955), da maneira mais inesperada que se poderia conceber, é exemplar desta estética: ao passo que Hitchcock organiza (encena) até mesmo as reações dos seus espectadores, Tourneur dá de sua obra ao mesmo tempo a visão mais brutal e mais elaborada possíveis, uma visão alucinada porque acuada, renegada e dissimulada.
Mostrar apenas movimentos inúteis - ou abortados assim que iniciados -, simular o rigor quando trágica é a desordem, são etapas que participam de uma impotência em captar a vida, ou melhor: de uma vontade de precipitar a morte. Almas Selvagens (Appointment in Honduras, 1953) é tudo isso e muito mais, pois o filme começa sem que haja um coração, ou antes, com o coração removido: vida petrificada que surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil (crocodilos e serpentes terríveis no momento em que se aproximam, inofensivos ao fim das contas) tão-somente decorativa, poder-se-ia pensar. Mas há aí um viés constante em Tourneur: jamais mostrar algo dramático quando assim exigisse a instância; mostrá-lo quando o espectador já não o esperasse ou não o esperasse mais, dizer a verdade quando esta tiver desaparecido, equivale a preceder o inevitável a fim de descartá-lo (em vão), ou então a mostrá-lo como se já não se acreditasse mais nele. É um cinema de impressão, no qual o processo observado jamais ocorre no momento certo. Defasagens entre a aparência e a realidade, comédia e drama, vida e morte que são as provas, não de uma impotência em mostrar um todo, mas de um desejo de não mostrar nada. Ou melhor dizendo: mostrar o que já não é mais ou não será jamais, perscrutar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e extrair apenas o vazio. Este cinema é um cinema novo, na medida em que não serve de forma alguma ao seu autor (ainda tão desesperado quanto antes). Cultivando nada, ele nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir uma outra medida: o de uma consciência que oprime um desespero, o de uma força distendida para sempre.
Eis no quê o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que se pode imaginar: se lhe falta essa força que animaria as imagens petrificadas (mesmo quando em movimento) de seus filmes, é ao espectador que cabe animar com um movimento novo esta obra da qual a vida foi suprimida; subsistem apenas impulsos destruídos rumo a uma obra jamais realizada, e que teria sido outra. A partir desses impulsos deve-se perseguir a obra, encaminhá-la (pela nossa própria sensibilidade) rumo a esse propósito que ela jamais atingirá. Os finais de A Vingança dos Piratas (Anne of the Indies, 1951) e de Almas Selvagens não são realistas; são até mesmo impossíveis. Cabe a nós completar o filme, conduzi-lo à conclusão que ele poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é inicialmente pensado e sentido, ele é em seguida destruído e recomposto: é o caso de se retomar o pensamento, retornar à idéia inicial do autor, que ele mesmo tentou subtrair no que diz respeito a nós. Não nos surpreenderemos então que, com freqüência, os personagens de maior destaque sejam animados por movimentos dos quais nos aprazemos em sublinhar a preciosidade; ocorre também que freqüentemente uma cor assume uma importância capital numa cena, à custa de ações importantes. Aqui é preciso sublinhar o papel dinâmico dessas cores (um exemplo admirável é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Almas Selvagens, que apaga tudo o que está ao redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Elas são ao mesmo tempo símbolos (o sangue vermelho nos lábios de Jourdan) e estruturas. O anódino se torna capital e (como o artista) vacilamos diante dessas coisas que se dissipam: anima-se o nada, desaparece a existência. Esse silêncio verdadeiro é a expressão de um vazio ainda mais desesperado que o de um Delmer Daves, por exemplo, que não sabe como preencher uma tela sempre muito imensa para ele.
Os limites e a ambição de Tourneur estão em outra parte: ver (e fazer ver) o que não é, o que não se é, invertendo para isso o indispensável e o dispensável, modificando o rumo das coisas, visando a mudar a vida. A imagem que nos é proposta é, portanto, invertida, os elementos agrupados em proporções diferentes, o equilíbrio natural perturbado. Assim, em A Vingança dos Piratas, impossíveis serão as relações entre uma mulher que se recusa a agir como tal e um homem que maquia a sua virilidade. Como não pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por essas inversões, essas imagens desmentidas logo após serem formuladas...
Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador, de imediato? Pois o que ele busca é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isso passa um pouco por dizer tudo o que não é, por enunciar a ausência. O sentido desapareceu. Se, entretanto, o signo mantém-se, é porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos da ausência de sentido. Compreende-se a dificuldade que temos para senti-los (ao menos plenamente). Eles não são mais do que instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras preciosas, cintilantes de um brilho único, de tal intensidade que seria necessário analisar esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos ao mesmo tempo em que somos encantados. Ela vem, talvez, do fato de que os atos são imediatamente situados em seu estágio terminal, sem que houvesse tido evolução até essa etapa (à diferença da estética do insustentável cara a McCarey, a qual consiste em nos apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e, no entanto, este instante nunca é alcançado. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de uma maneira indireta (distanciamento) e fugidia; as cenas de morte também (tomo como exemplo essa mulher em Choque de Ódios, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo brutais e inacessíveis (próximas nisso do gozo erótico).
Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur en scène, isto não deve nos impedir de ir em sua direção: cabe a nós preencher o papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.
(Cahiers du Cinéma nº 155, maio 1964, pp. 35-37. Traduzido por Bruno Andrade)
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