UM JOGO BRUTAL
Uma jovem caminha num ambiente ensolarado, próximo a um conjunto habitacional. Ela segue em direção a uma floresta, vista ao longe, as árvores balançadas pelo vento. Deitada à beira de um lago, ela descansa sem saber que é observada por um homem de meia-idade. O homem se aproxima, em silêncio, e em poucos segundos ataca a jovem com uma faca. Um ataque direto, preciso. A resistência é inútil; ela tem os gritos abafados e morre sem perturbar a tranqüilidade do lugar, onde outros jovens descansam sobre a grama. Já nesta cena percebemos como o método de Brisseau remete ao cuidado de um cientista. Há a busca dos fenômenos em condições específicas, observados com o máximo de transparência, e a clara representação de cada um dos agentes envolvidos. A abertura do filme é como a descrição de um evento natural. Abstraindo os motivos, restam apenas o predador e a presa, seus movimentos e reações.
O assassino, descobrimos nas cenas seguintes, é justamente um cientista, Christian Tessier (Bruno Cremer), afastado de um posto renomado no Instituto Pasteur e avesso à vida pública. Vemos a última conversa de Tessier com sua mãe: nos momentos finais, ela diz que a vida e a morte lhe parecem agora “apenas situações particulares”, e pede que Tessier cuide da filha que abandonou em um convento. Essa filha, Isabelle (Emmanuelle Debever), tem as pernas imobilizadas por um problema na coluna. Ela revela seu desejo de explodir uma bomba no meio de uma praça apenas para destruir o maior número possível de pessoas, e seu tratamento dos animais é oposto de maneira característica à cena inicial de seu pai - à beira de outro lago, ela se arrasta pela terra enquanto tortura insetos, o que justifica com uma simples aversão, um desprazer superficial. Em lugar da postura rígida e da violência suprimida do pai, Isabelle é um organismo rudimentar, sem domínio sobre o próprio corpo e os próprios impulsos.
Um Jogo Brutal lida com essa oposição, e o desenvolvimento do filme é o traçado dos caminhos de Tessier e Isabelle. Numa casa no campo, Tessier trata a educação da filha como uma formação no sentido estrito da palavra: dar forma, transformar uma matéria bruta e desordenada em algo com unidade e propósito. Ele a coloca sob os cuidados de uma tutora e de um mordomo, se ausentando periodicamente para - como vemos em cenas que retomam o tom da abertura - assassinar outros jovens, sempre com a precisão típica de um animal que apenas concretiza as necessidades de um instinto, sem se deixar abater pelo acaso ou por desvios e distrações. Ambos parecem vivenciar o mesmo lado sombrio da personalidade, como quando Tessier justifica o rigor na educação da filha ao dizer que “é preciso ser duro como as forças do mal para poder vencê-las”, ou quando Isabelle culpa o pai por sua deficiência, como se uma falha de caráter pudesse se desdobrar geneticamente em uma falha física. Isabelle parece incorporar um mal primitivo, um deleite puro com a destruição; Tessier é o mal extremamente concentrado, fruto do mais alto controle. Essa relação é um dos motivos do filme, que Brisseau amplifica para tornar um princípio geral de composição.
O mundo dos fatos científicos é uma trama guiada por princípios racionais, de elementos determinados e sobrepostos de modo que apenas a luz do pensamento pode separar uns dos outros e apresentá-los individualmente. Um experimento científico é o isolamento de alguns desses elementos, acompanhando separadamente cada um deles e tornando visíveis os fatores que influem em eventos complexos. É nesse sentido que Brisseau se aproxima da abordagem de um cientista: não de um observador desinteressado que procura reduzir a causas simples tudo o que se apresenta como complexidade, mas de um observador implicado na própria estrutura dos eventos, e que concebe a ordem interna da narrativa como uma necessidade, um desenho próprio que é o órgão expressivo de uma visão de mundo. Acima de tudo, esta é a própria concepção de educação que Brisseau apresenta em Um Jogo Brutal. Os movimentos de Christian e Isabelle no quadro da narrativa formam a polaridade entre ordem e caos, cada um deles seguindo na direção oposta, de modo que Christian, portador da ordem, se revela corrompido pelo caos, enquanto a progressão de Isabelle é a dissolução das impurezas, a tomada de consciência de sua ordem interior.
Isabelle deve aprender com Annie (Lisa Hérédia), sua tutora, as coisas mais básicas: a respirar, a se sentar, a ver, ouvir, arrumar o próprio quarto. Em vez de se entregar à mistura desordenada das tintas sobre o papel, ela deve reconhecer e desenhar as partes de um movimento. Um poema de Prévert a ensina sobre o sofrimento dos animais, e sobre como ela pode se identificar com eles. No decorrer deste processo, surgem outras etapas, não previstas por Annie, mas que logo se colocam como cruciais na educação de Isabelle. A primeira é quando ela foge do quarto à noite e observa a tutora se acariciando, o que desperta a curiosidade em relação ao seu próprio corpo - percebemos a tensão no corpo de Isabelle, e como a educação é ao mesmo tempo o aumento do controle e do relaxamento desse corpo. A segunda é quando, na companhia de Pascal (Albert Pigot), irmão de Annie, Isabelle consegue finalmente relaxar e se concentrar nos sons do ambiente - ela pede que Pascal a leve ao topo de uma montanha, e logo fica evidente que Isabelle está apaixonada. Em seguida, Isabelle descobre Pascal com a namorada; tomada pela decepção, ela tenta uma escalada solitária à montanha, o que resulta em sua queda. Após um breve período de recuperação, Isabelle vê Pascal deixar a casa, se despedindo com um olhar distante. Annie lhe apresenta então um segundo poema, de Baudelaire, com o qual Isabelle aprende sobre as paixões: como trazem dor e sofrimento, mas também acalentam a alma. A cada impacto negativo em sua vida, Isabelle parece regredir, mas o sentido da educação é que cada passo para trás se mostra necessário para que se sigam dois passos à frente. Não há algo como um aprendizado desprovido de problemas.
O ponto central do filme, o cruzamento das trajetórias, é quando Tessier retorna à casa de campo, encontrando Isabelle já em um estágio avançado de sua educação. Por um momento, os dois parecem reconciliados. Tessier ensina a Isabelle sobre a “lei da natureza”, a interdependência dos seres na cadeia alimentar. Dor e felicidade, bem e mal, vida e morte - estes são os pólos que magnetizam a existência. Ele diz ainda que ela deve se identificar com essa ordem; enquanto Isabelle tenta desenhar uma paisagem, recebe do pai a mensagem que indica a importância da participação de sua consciência nessa identificação: “observe e simplifique”.
Deste ponto em diante, as trajetórias se invertem: é Tessier quem parece se voltar à desordem, e Isabelle à ordem. O motivo dos assassinatos é revelado quando Isabelle entra no quarto do pai para lhe deixar uma flor sob o travesseiro. Ela encontra uma lista com nomes de crianças, alguns deles riscados; após ver as notícias na televisão e reconhecer os nomes, compreende que seu pai está matando cada uma delas. Os motivos do pai, Isabelle descobre, se fundamentam em uma interpretação absurda da realidade, em uma correlação que contorce os fatos para encaixá-los em uma concepção rigorosa, mas irreal. Um grupo de crianças uma vez atrapalhou o trabalho de Tessier; segundo ele, deve haver uma razão para isso; não encontrando esta razão na observação empírica, ele conclui que devem existir sinais escondidos, à espera de um observador privilegiado; finalmente, a leitura do nome das crianças envolvidas o faz perceber um padrão que considera revelador: suas iniciais soletram diable tue les (diabo, mate-os). A ordem superior à qual Tessier parecia se reportar se mostra uma perversão do que ele próprio entende como sendo uma ordem divina, como uma cadeia de necessidades. Há um conto de Italo Calvino que ilustra claramente este princípio. Calvino descreve a história de astrônomos que projetaram toda uma cidade com base na posição das estrelas. Confiantes na ordem celestial, esperavam que a cidade espelhasse tal harmonia, de modo que o próprio destino dos habitantes estaria assegurado pela razão superior. Com a cidade finalmente erigida, surgem as primeiras gerações nascidas dentro de seus muros. Mas logo a cidade vê surgir também pessoas com deformidades, que distorcem o que era visto como ordem, e gritos guturais sugerem a presença de criaturas monstruosas, escondidas em porões e celeiros. Resta aos astrônomos a dúvida em relação ao projeto, “admitir que todos os seus cálculos estavam errados e que suas cifras não conseguem descrever o céu, ou revelar que a ordem dos deuses é exatamente aquilo que se espelha na cidade dos monstros”.
Se em um primeiro momento Tessier parece ser apenas o biólogo que troca o estudo da vida por uma série de assassinatos, logo ele demonstra também ser aquele que ensina à filha o valor da vida, e que converte sua desordem inicial, seu desrespeito pela natureza, em algo positivo. Ele é mais um dos personagens de Brisseau que se comporta como uma sombra necessária de outro personagem: aquele que lhe dá volume, que lhe dá mesmo uma realidade e um propósito, que é responsável por delinear as arestas pelo contraste, mas que ao final deve se retirar para que a identidade mais profunda da personagem central venha à tona. Assim como sua mãe no início do filme, a revelação de Tessier ocorre à beira da morte: prestes a matar a última criança da lista, ele reconhece o erro segundos antes de ser morto pela polícia.
Apesar de uma sensibilidade atenta aos métodos e critérios científicos, é evidente que o filme de Brisseau deve seguir outra direção. O que Brisseau reconhece na ciência, tanto quanto na religião e na filosofia, como vemos em outros de seus filmes, é uma espécie de ordem e sentido próprios, diferentes áreas que marcam, cada uma a sua maneira, as referências para a construção da experiência. Um Jogo Brutal é afinal uma representação do mundo, mas é uma composição artística, uma estrutura particular, com uma geometria interna repleta de simetrias e inversões, com um ritmo específico que indica as etapas do aprendizado e o cumprimento do plano homicida - o dedilhado do violão e o som grave que acompanham, respectivamente, as cenas de Isabelle e Tessier. Cada uma dessas características parece investir na obra uma concepção de mundo, uma crença na expressão direta, no símbolo, no ritmo, na combinação desses elementos como a tradução mais perfeita de um estado das coisas. A composição do filme deve necessariamente trabalhar os dados dos sentidos; o resultado deste trabalho é a recriação da natureza à imagem das formas poéticas, de idéias que, mesmo baseadas em um movimento simples como o cruzamento de duas linhas em simetria rotacional, parece descobrir a cada detalhe a necessidade da unidade do conjunto. Não há algo como uma substância morta ou indiferente; todos os objetos e paisagens são familiares e estranhos, atraentes e fascinantes ou repelentes e ameaçadores. É impossível deslocar a experiência representada dessa concepção dramática do mundo, um mundo impregnado de fisionomia, de qualidades emocionais que parecem refletidas pela personalidade de seus personagens. Aquilo que podemos chamar de o destino de Tessier ou Isabelle não é algo que os atinge de fora para dentro, mas o que vem à tona a partir de seu próprio interior. Não há como separar a força que os move do ângulo pelo qual são observados.
O processo de aprendizado é a consciência gradual do eixo ao redor do qual ocorrem esses movimentos. A ascensão de Isabelle é o inverso da queda de seu pai, mas de alguma maneira os dois se tocam harmonicamente, no reconhecimento da interdependência das trajetórias e da posição relativa de cada um no quadro mais amplo do filme. “É preciso abrir os olhos bem no lugar onde se está”, comenta Tessier no início. É esta realização que Isabelle confronta no final sobre a montanha, já em domínio de si mesma, recebendo frontalmente a luz do sol, reflexo do ouro alquímico decorrente de sua jornada.
Now in a moment I know what I am for, I awake.
And already a thousand singers, a thousand songs, clearer, louder and more sorrowful than yours,
A thousand warbling echoes have started to life within me, never to die.
- Walt Whitman
|
2014/2015 – Foco |