UM JOGO BRUTAL
por Jean Collet


(Un jeu brutal). 1983. Les Films du Losange (90 minutos). Produção: Margaret Ménégoz. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Bernard Lutic, Romain Winding (Fujicolor). Som: Louis Gimel. Mixagem: Maurice Gilbert. Música: Johann Sebastian Bach. Música original: Jean-Louis Valero. Cenografia: Maria-Luisa Garcia (não creditada). Montagem: Marie-Françoise Coquelet, Roger Guillot, Maria-Luisa Garcia. Elenco: Bruno Cremer (Tessier), Emmanuelle Debever (Isabelle), Lisa Hérédia (Annie), Albert Pigot (Pascal), Lucien Plazanet (Lucien), Lucienne Le Marchand (a mãe), Humbert Balsan (o jornalista), Jean Douchet (o professor Marchal), Liliane Gaudet (a auxiliar), Jean-Claude de Goros, Catherine Griffoni (a namorada de Pascal), Marie-France Mignal (a mãe de Eliane), Véronique Grard (Dominique), Charles-Hubert Ordinis (Bruno), Aurélie Sterling (Éliane), Sylvestre Lopez (o amigo de Éliane), Francisco Aceituno, Michaël Assous, Yann Blere, Eduardo Dalluz, Jacques Krispil, Éric Merlin, Maria Rodriguez (o bando), Jean-Claude Brisseau (homem que lê o jornal na estação de trem - não creditado).

À beira de um rio, durante uma bela manhã de primavera, Bruno Cremer assassina uma garota a golpes de faca. O criminoso, Tessier, é um honorável biólogo. Ele decidiu abandonar suas pesquisas sobre o câncer no Instituto Pasteur. Vai para um retiro numa pequena vila aos pés das Cévennes. Ali ele se consagrará à educação de sua filha Isabelle (Emmanuelle Debever), uma paralítica de treze anos de quem ele tem a guarda desde que sua esposa o abandonou. Com a ajuda de uma jovem professora (Lisa Hérédia) e de Lucien (Lucien Plazanet), fiel empregado doméstico da família, Tessier luta para fazer da pequena selvagem de pernas desgovernadas um ser humano.

Personagem estranho, esse Tessier. Em duas cenas a câmera apreende sua face dupla: o assassino e o homem de ciência de que se fala na televisão. Por que o assassinato? Por que esse eminente biólogo renuncia de repente aos seus trabalhos, no momento em que lhe rendem homenagens e que sua pesquisa estava prestes a alcançar resultados?

Para ainda nos perturbar, esse homem se revela um pai exigente. Severo e duro. Mas, apesar de tudo, tratar uma paralítica como um ser normal, ao invés de anuir, não é sinal de amor e respeito? Pensamos em O Milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker, Arthur Penn, 1962), em que a pedagogia à fórceps fazia maravilhas. Que um pai criminoso se esforce para “trazer a Lei” à sua filha, e que isso funcione, esse é o desafio deste filme paradoxal e surpreendente. Extraordinário itinerário, o da pequena Isabelle. A princípio cruel, revoltada, cercada de sofrimento e desespero, ela vai sofrer mais ainda. Pelos constrangimentos que passará com os seus “educadores”, por um primeiro amor não correspondido, que a deixará totalmente só. Novo paradoxo. O excesso de sofrimento, ao invés de precipitá-la num desespero maior, eleva sua inteligência e seu coração.

E enquanto Tessier continua a matar, Isabelle nos ajudará - último paradoxo - a projetar uma luz sobre essa história sombria. É ela quem nos fará ultrapassar as aparências. Bem além do caso do enigma policial (ou psicológico), a garota selvagem nos conduzirá à outra margem, onde podemos encarar de frente a única questão que vale a pena: por que o Mal?

Já terão percebido que eu considero esse primeiro filme de Jean-Claude Brisseau uma obra enorme[1]. Sob vários aspectos.

De início, Um Jogo Brutal é um admirável roteiro. Diante da violência das primeiras imagens, nos dizemos: depois de um início tão forte, como a narrativa vai continuar? Como um atleta de corrida que começou com um sprint... Ora, durante uma hora e meia o filme jamais perde o fôlego. Nenhum tempo morto. Rapidamente um ritmo se impõe. Creio que o segredo dessa respiração justa é que todos os personagens dessa narrativa são verdadeiramente vivos. Eles movimentam-se, eles avançam, eles aprendem, eles crescem. Antes de serem “pensados” e, portanto, petrificados, eles são imaginados. Eles surgiram na tela com um corpo, pulsões, desejos. Quando descobrimos Isabelle inclinada sobre um rio, com um graveto na mão, divertindo-se ao afogar um gafanhoto, esse gesto, essa postura não se reduzem a designar: vejam como ela é cruel. É através dos olhos de Tessier, seu pai, que nós nos surpreendemos com a cena - como havíamos nos surpreendido, à beira de outro rio, com uma outra garota que Tessier iria ele próprio matar...

Assim, longe de reduzir a imagem a uma informação (o que faz a miséria das novelas e dos filmes policiais), Brisseau nos informa e nos perturba ao mesmo tempo. A crueldade de Isabelle encontra a crueldade do seu pai. Mais tarde, Isabelle, inclinada sobre o mesmo rio, cai nas águas profundas, se debate, é levada. Nós vemos, ao longe, o vale numa luz doce, o rio impassível. Encadeia-se brutalmente com Isabelle na sua cama, em meio àqueles que festejam “a pequena milagrosa”. Havia alguém que a observava, mais esta vez, e que a salvou (trata-se de um jovem rapaz, Pascal, por quem ela irá se apaixonar).

Essas imagens, esses gestos que se chamam uns aos outros, que se respondem misteriosamente de uma cena à outra, de um personagem a outro, tecem no interior da intriga policial uma harmonia secreta, uma rede de correspondências sensíveis, poéticas e - não tenhamos medo da palavra - místicas. O gênio de Brisseau é utilizar o mais popular dos gêneros - a trama policial - para pintar a única coisa que o interessa: os laços invisíveis que unem bem e mal, a violência e a sabedoria, a dor e a beleza.

Como epígrafe do seu roteiro, eis aqui o texto que esclarece o título do filme: “Aparentemente, o universo é ao certo - ou foi até aqui - um jogo brutal e cheio de desperdício, no qual os dados da sorte são jogados em favor das forças das trevas, dos senhores da obscuridade, da mentira, da morte e do sofrimento...”

“A experiência espiritual mostra que há por detrás disso tudo um vasto terreno de igualdade, de paz, de calma, de liberdade, e que apenas adentrando nisso é que podemos ter o olho que vê e adquirir o poder que conquista” (Sri Aurobindo).

Um roteiro tão bem escrito, tão bem sonhado, corre o risco de se empobrecer quando é filmado. Sobretudo quando se dispõe de poucos recursos, de um orçamento tão reduzido. Mas Brisseau é um artista: ele possui a inteligência dos seus meios, ele sabe perfeitamente o que pode fazer e o que não pode fazer. Ele procura a emoção lá onde tantos outros se satisfariam com uma intenção ou uma idéia. Como seus personagens, o seu filme se movimenta, avança, vive. Esse cineasta, que foi antes um pedagogo, realiza na criação a mais nobre ambição de um educador: não a de nos transmitir alguma ideologia, mas, pelo contrário, a de nos fazer abrir os olhos e os sentidos sobre um mundo que não é aquele que nós acreditávamos ser[2].

Visto que o filme põe em cena um ser que não pode andar, fixemo-nos nas imagens, fortes, que mostram Isabelle tentando, apesar de tudo, escalar a montanha, arranhando seus joelhos e suas mãos nos arbustos e nas pedras. Por quê? Ela perderá o equilíbrio, rolará pelo precipício, onde será encontrada desacordada.

Parece-me que esta “loucura” responde a uma outra loucura, a da embriaguez intelectual, a paranóia do pai. Há alguma coisa prometéica no filme de Brisseau: o desejo implacável, sobre-humano, de escalar, de alcançar o “ponto de vista” de onde tudo se clarifica. Mas essa conquista da visão, da lucidez, exige, paradoxalmente, a queda, a ferida, a enfermidade[3]. É esse movimento, esse impulso, primeiramente físico, depois moral e espiritual, que anima o belo filme de Jean-Claude Brisseau. Eis um filme que se coloca de pé, “orgulhoso como os homens”, como dizia Buñuel.

Não é por acaso que uma serpente assombra as imagens de Um Jogo Brutal e inspira as teorias de Tessier. Rastejar ou tentar equilibrar-se sobre os seus joelhos, mas como? É toda a questão. Ver o mundo ao nível do chão ou à altura do homem.

Notas:

[1] Não se trata realmente de um primeiro filme. Jean-Claude Brisseau já realizou As Sombras, produzido pelo INA, que abriu a série Télévision de chambre no TF 1 em abril de 1982. Um Jogo Brutal é a sua primeira obra para cinema.

[2] Isso define a função da arte. Isabelle, descobrindo os versos de Baudelaire sobre a música, se espanta: “Então eu devo entender que a música revela o sofrimento, mas de uma maneira que acalma, que ajuda a viver”.

[3] Nos Cahiers du Cinéma (agosto 1983, nº 350), Brisseau, perguntado sobre a escolha de uma heroína com deficiência, responde: “Creio que isso vem, entre outras coisas, de uma consciência profissional, aguda, que eu tenho da deficiência de cada um de nós; eu percebo a maioria das pessoas, eu incluso, desse jeito”.

(Études, outubro 1983, pp. 371-373. Traduzido por Matheus Cartaxo)

 

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