DIÁLOGO ENTRE CINEASTAS: ALAIN GUIRAUDIE & JEAN-CLAUDE BRISSEAU
Este diálogo entre Jean-Claude Brisseau e Alain Guiraudie ocorreu no quadro do 3éme Festival du Cinéma de Brive - Rencontres du moyen métrage, no dia 17 de junho de 2006 (n.d.e.).
Alain Guiraudie: Gostaria em primeiro lugar de agradecer a sua presença.
Eu fui muito impressionado, à época de seu lançamento, por O Som e a Fúria.
Esse filme parecia ser o que eu esperava do cinema: uma mistura de realidade social muito forte e de onirismo, de sobrenatural. Não era comum. Mais tarde, fiquei particularmente impressionado com Coisas Secretas. Era um filme com a forma muito livre, isso me agradou imensamente.
Nesse diálogo, gostaria de começar com minhas angústias de quarenta anos. Atualmente, estou em pleno questionamento em relação ao cinema que faço. Eu tenho a impressão de que estava bastante tranqüilo entre os 30 e 40 anos. E, hoje em dia, após dois longas-metragens, recoloco-me a questão: o que é o cinema? Até onde ele pode ir? Eu desejo falar com você sobre naturalismo, sobre anti-naturalismo... Por exemplo deste desejo em O Som e a Fúria de partir rumo ao mistério, ao passo que em Coisas Secretas você está muito mais na realidade.
Como foi construído esse percurso que te fez ir ao sobrenatural para retornar à realidade?
Jean-Claude Brisseau: Esse não foi exatamente o meu percurso. No filme que acabo de terminar há ainda mais elementos sobrenaturais. Em O Som e a Fúria tratavam-se de coisas que eu havia vivenciado como professor. Tudo isso que está no filme - incluindo o sujeito que atira nas paredes - é autêntico, mesmo tendo sido reescrito. Autêntico, porque essas pessoas existem de verdade, mas não existem exatamente daquele jeito. Reescrito, porque eu não queria fazer um filme social. Eu à época conheci - como professor - uma delinqüência bem mais violenta que a apresentada no filme.
O que me interessou foi reconduzir a problemas de fundo por meio da mistura de gêneros, incluindo aí um ponto de vista emocional, para tentar obter um efeito de semi-metamorfose da realidade cotidiana.
Penso que há sempre um contágio de sentido de uma seqüência à outra. Se você justapõe uma seqüencia realista e uma seqüencia surrealista, uma apagará a outra. Foi esse tipo de pesquisa que fiz e que acentuei para Os Anjos Exterminadores. Porém, neste filme não se trata de violência (como em O Som e a Fúria), mas de sexo. Um pouco como em Coisas Secretas, mas de maneira menos atenuada.
Em relação ao que você disse sobre a liberdade de forma, eu gostaria de salientar que Coisas Secretas foi um filme bastante elaborado.
Alain Guiraudie: Eu me confrontei bastante com a questão da transposição da realidade. Comecei a fazer filmes no início dos anos 90. Parece-me que havia naquele momento uma desagradável tendência no cinema francês: contentava-se em se reproduzir a realidade, em se reproduzir o real. Fiquei imaginando como sair da realidade, ou ao menos como apreendê-la diferentemente.
No que diz respeito à liberdade da forma em Coisas Secretas, eu pretendia evocar a sua capacidade de não temer os clichês, de recorrer a figuras de estilo como o campo/contracampo. Imagino que a mise en scène tenha sido bastante elaborada. Mas ela não era demonstrativa como em O Som e a Fúria. Para os meus primeiros curtas-metragens eu tinha uma atitude dogmática em relação à forma. Até fiz um curta-metragem em que a câmera não estava autorizada a se mover, mesmo que por um reenquadramento. Enquanto jovem cineasta eu tive a necessidade de passar por uma forma muito forte, muito demonstrativa, muito rigorosa. Agora eu tento me desprender sem conseguir verdadeiramente. Penso que ainda sou muito devedor. Ainda tenho muitas referências culturais na cabeça. Quando falo da forma livre de Coisas Secretas, penso em certas seqüências - especialmente as com Roger Mirmont - nas quais se poderia chegar no telefilme... Mas onde, a cada vez, bifurca-se em direção a qualquer coisa verdadeiramente muito mais forte.
Jean-Claude Brisseau: Eu cheguei ao cinema essencialmente pela leitura dos Cahiers du Cinéma e, portanto, assistindo a quase seis ou sete filmes por dia na Cinemateca, eu de início comecei a me colocar questões formais. Mas eu já não me as coloco da mesma maneira. Logo vi que efetivamente vivemos com as modas. Por exemplo, houve a moda do “sem música”, a moda do “sem movimento de câmera”... Fala-se no ambiente parisiense de uma tendência e três anos depois ela não existe mais. Além disso, há freqüentemente contradições nessas modas. Por exemplo: quando era questão de se eliminar sistematicamente a música e a montagem, um dos cineastas mais queridos da crítica, Godard, utilizava-se enormemente da música e da montagem...
Eu me concentrei mais na questão do meu ponto de vista no filme: quais emoções eu quero passar, como posso tentar fazer coisas novas... Eu uso o formato 1.37 - quase sistematicamente - porque é o formato que mais permite ao olho se focar. Permite isolar os personagens muito melhor que os outros formatos, 1.85 ou Scope. Se eu estiver fazendo campo/contracampo, é para obrigar o espectador a ver o que quero lhe impor. Sou bastante diretivo com o espectador. Disseram-me um dia que eu fazia a direção dos espectadores. E é verdade! Não é por isso que eles sentirão as emoções que quero passar... O espectador tem o direito de sentir o que ele quer! Então se eu, por exemplo, encontro-me numa experiência de contágio de sentido, é imperativo que a significação dos planos passe. Tomemos O Som e a Fúria; eu não fui o primeiro a colocar elementos fantásticos no social, porque Buñuel o havia feito muito antes de mim. Nesse filme eu queria misturar emoções em torno da violência, da poesia, do fantástico e do humor, incluindo às vezes o grotesco. E fiz uma seqüência chave: o avô está prestes a morrer. Em outro cômodo, Cremer está distribuindo o dinheiro aos rapazes. Isso termina mal, com uma luta e uma tentativa de estupro. Todo mundo luta e o velho está parar morrer. Para mim, essa seqüência foi crucial porque ela foi filmada às vezes no limite do grotesco, do ridículo e do mau gosto, às vezes com uma frase de bravura - “o garoto gira em torno do cadáver do velho” -, às vezes com momentos emocionantes - “Cremer põe a mão sobre o rosto de seu pai”. E logo depois há a seqüência da dança... Essa mistura não é francesa, em absoluto... Ora, para ser receptivo, era imperativo que o espectador compreendesse a disposição dos locais. Levei três dias para decidir onde colocar minha câmera. A seqüência deveria se desenrolar no décimo quarto andar de um edifício em cenário natural. Mas não conseguíamos colocar luzes no exterior, porque não tínhamos uma plataforma de quatorze andares! Passei muito tempo no local. Pensei em que emoção queria dar e de quais meios dispunha para alcançá-la. Eu então me obriguei a trapacear: nos meios populares, a mesa fica no centro da sala, mas eu a coloquei contra uma parede por questão de espaço e da filmagem do espaço.
Nos meus últimos dois filmes eu quis fazer coisas que jamais tinham sido feitas antes no cinema. O ponto de partida de Coisas Secretas era saber se é possível utilizar o sexo para fins dramáticos como Hitchcock utilizava o medo. Em Psicose (Psycho, 1960) você sabe que na casa há uma velha senhora que pode surgir a qualquer momento com uma grande faca. Resultado: quando a heroína chega perto da escada, sobe a escada, aproxima-se de uma porta, você quer saber se no topo da escada não está a velha, se atrás da porta não está a velha. E na mesma cajadada você dramatiza o vazio.
Eu, portanto, optei por pegar duas garotas que não trazem o sexo em suas caras (o contrário de Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot), mas garotas do cotidiano que o espectador sabe que podem fazer uma série de coisas: se acariciar sob a mesa, trepar com uma outra mulher ou com um sujeito na frente de todo mundo... E instilo no espectador a vontade de que isso aconteça para finalmente não mostrar nada. Para ver se a emoção passará, se haverá uma dramatização da garota... Em Os Anjos Exterminadores eu misturei elementos de fantástico, de poesia - como Cocteau ou em Macbeth -, de sexo aos momentos dramáticos, às vezes melodramáticos. Uma crítica saiu do filme em lágrimas e me disse que foi arrebatada por uma emoção melodramática. Ela pensou que o filme falaria muito, senão unicamente, de sexo, e não houve tempo para que ela se defendesse. O que me interessa é realizar misturas emocionais. Permanecendo assim “grande público”, o que não quer dizer comercial.
Alain Guiraudie: Você teve justamente essa tentação?
Jean-Claude Brisseau: Após Boda Branca, o caminho traçado era o de fazer filmes grandes. Mas eu não queria. E, de qualquer forma, meus filmes atraem o mesmo público. Boda Branca excedeu dois milhões de entradas com um orçamento de sete milhões de francos, o que não é caro.
Alain Guiraudie: Ah sim, foi um grande sucesso! O dia em que fizer dois milhões de entradas ficarei muito contente! E Anjo Negro, com Sylvie Vartan, quantas entradas conseguiu?
Jean-Claude Brisseau: Ele deve ter feito 200.000 entradas. E o filme foi um triunfo na televisão. Na Alemanha, foi o segundo sucesso europeu do ano. E também na Espanha.
Alain Guiraudie: Mesmo em 200.000 entradas, eu aceito! Então, finalmente, você está em sintonia com o público. Você tem uma exigência real e você ainda atrai o mundo.
Jean-Claude Brisseau: No caso de Boda Branca ninguém esperava que seria tão bem sucedido, nem mesmo eu...
A questão do sucesso também se coloca em termos de orçamento. Quanto maior for o seu orçamento, mais você terá publicidade, e mais você poderá ter influência sobre a imprensa escrita e a televisão! Hoje, o sistema de distribuição faz com que os filmes tenham uma duração de vida de três semanas. Eles devem, portanto, se beneficiar de um verdadeiro bombardeio midiático e publicitário. Sem isso é muito difícil conseguir as entradas. E você, quanto custaram os seus filmes?
Alain Guiraudie: Eu fiz um com um orçamento de dois milhões de euros. E uma produção que dá conta das receitas com o filme completado, e a marca das quinze mil entradas que não foi atingida!
Jean-Claude Brisseau: Sim, mas não ouvi falar de seu filme no lançamento. Isso significa que ele não teve impacto publicitário, bombardeio midiático, apesar dos dois milhões de euros.
A propósito de um dos meus filmes, com o qual eu tive muita divulgação da imprensa, quase que exclusivamente positiva, eu conheci ao meio-dia dois arquitetos que não tinham nem ouvido falar! O grande público raramente lê a imprensa como um todo. Ele folheteia. E até mesmo os cinéfilos ignoram às vezes os críticos. Há também um grande número de artigos que não servem para nada. O mais importante é Elle (porque essa revista é lida por mulheres de todas as idades e de todas as classes sociais) e a televisão. Por outro lado, apenas um artigo ruim na imprensa cinéfila basta para dissuadir os espectadores.
Alain Guiraudie: Com Voici venu le temps coloquei-me a questão dos meios de me abrir a um outro público. Eu não queria somente plantar meus personagens numa árvore. Há até uma luta de espada e uma seqüência de ação pré-créditos, como nos filmes de James Bond! Mas acabamos com seis mil entradas. Creio, no entanto, que em matéria de arte deve-se ser muito individualista. Seria complicado pensar o tempo todo em um público. Eu tento, no entanto, falar com o outro, mesclar minhas interrogações com um contexto mais geral. Mas, apesar disso, eu notei que meu público representa um máximo de trinta mil entradas. E vou me contentar porque senão fazer cinema popular se tornaria fazer apelo às quatro ou cinco estrelas “bancáveis”...
Jean-Claude Brisseau: Na França, o que é fabuloso é que existem atores que absolutamente não atraem mais o público, mas que permanecem “bancáveis”. É o caso de Depardieu, mas também de muitos outros. Nos Estados Unidos isso não funciona da mesma maneira. Após dois ou três fiascos uma estrela é colocada no armário. Veja Stallone, que era uma vedete e desapareceu de circulação.
Na França, deve-se portanto submeter-se às estrelas e seus caprichos sabendo que o público não acompanhará. Mas os canais ainda assim as exigem em um complexo em relação aos agentes. Uma empresa como a Artmedia limitou o número de atores para o resto sobreviver com grande estilo de vida. Há dez anos Dominique Besnehard era meu agente e eu procurava para Anjo Negro um equivalente de um Gregory Peck no fim dos anos 40 (à época de Agonia de Amor [The Paradine Case, Alfred Hitchcock, 1947], por exemplo). Ao longo de uma noite inteira nós analisamos todos os atores franceses, conhecidos e desconhecidos, sem encontrar algum. Concluindo: ele disse que a Artmedia havia cometido o erro de promover dois atores, Patrick Dewaere e Gérard Depardieu, dos quais só restava um, e que para o restante era o deserto...
Recentemente surgiu um ou dois atores, especialmente no campo da comédia. Mas lembre-se dos anos 60: sete a oito atores - Cremer, Delon, Belmondo, Maurice Ronet, Noiret... - podiam atrair o público com seu nome. Hoje há Daniel Auteuil, mas ele não é Delon quando este tinha trinta anos.
Alain Guiraudie: Será então que o desejo de se abrir ao grande público é, portanto, apenas um fantasma? É necessário passar pelo casting? Nos anos 70, e mesmo até o final dos anos 80, isso devia ser possível. Porque havia menos a força de ataque da promoção. Mas você acha que hoje em dia ainda é possível se falar de cinema popular, de um cinema feito por e para as pessoas, um cinema compreensível por todos e, ao mesmo tempo, um cinema que não se deixa assombrar pelos clichês e pelo academicismo ambiente? O distribuidor estrangeiro do meu filme de dois milhões de euros me disse que meus filmes devem custar menos dinheiro e ser melhores. E estou persuadido de que posso fazer filmes que custam menos dinheiro e que serão melhores. Você ainda é um bom exemplo a este nível. Com qual orçamento você fez Coisas Secretas?
Jean-Claude Brisseau: Três milhões e meio de francos (por volta de 530 000 euros). Mas nós filmamos por seis semanas em um ritmo de 20 a 30 planos em oito horas. Mas tudo deve ser ensaiado com antecedência. Isso dá uma maior liberdade, embora seja uma faca de dois gumes. Os Anjos Exterminadores foi filmado em 24 dias com quatro milhões de francos (650 000 euros). Novamente, tudo foi preparado. Por exemplo: o filme tem uma seqüência erótica com três garotas e nós ensaiamos como um balé durante três sessões de muitas horas. E posso dizer que, ao fim, eu estava saturado! Preparar permite filmar rapidamente. Os atores sabem o que vão ter que fazer. Para Coisas Secretas, em um plano-seqüência do início, uma garota fazia um número de dança. Como não tínhamos dinheiro, não podíamos pagar um coreógrafo. Portanto nós ensaiamos, ela e eu, durante três sessões de duas horas a fim de inventar a coreografia necessária à seqüência. De qualquer forma nós precisamos de sete tomadas e cinco horas para concluí-la. Geralmente é mais rápido.
Alain Guiraudie: Eu gostaria de falar sobre o trabalho entre o diretor e o produtor. Para mim, ele deve permitir que se encontre a economia adequada ao filme. Como você freqüentemente é produtor dos seus filmes, gostaria de saber se essa “dupla função” o permitiu melhor chegar lá?
Jean-Claude Brisseau: Sim e não. Quando se trata se procurar dinheiro, eu sou nulo e detesto isso. O interesse de ser produtor é de ter um controle maior sobre o filme. No começo eu acreditei que isso me daria uma maior autoridade, mas na verdade isso implica riscos mais importantes. Em Os Anjos Exterminadores eu por um momento fui o único produtor do filme. Se uma das atrizes não tivesse me ajudado no trabalho de produção, o filme estaria morto. E as pessoas da T.S. Productions nos ajudaram em outra etapa.
Quanto à questão da viabilidade de filmes populares que você mencionou, não acho que seja possível fazer hoje o que fizeram Hitchcock ou Ford em seus tempos. Não se deve esquecer que o público mudou. Quando eu era jovem, há 30 ou 40 anos, o público era, primeiramente, um público de adultos. O lançamento de La boum (Claude Pinoteau, 1980) foi uma data chave. Os profissionais perceberam que os adolescentes possuíam poder de compra. Eles se tornaram o alvo perfeito. E agora eles devem representar a maioria do público. E esses jovens são muito mais sensíveis à publicidade que nós. Quando há um enorme fluxo publicitário, eles consideram que o filme deve ser bom e têm uma tendência a se precipitar. Por outro lado, o boca-a-boca pode ser rápido e ruim. É também por isso que a exploração de um filme dura hoje em dia muito pouco. O problema na França é que para financiar os filmes se requer que eles sejam potencialmente exibíveis às 20h50 e devem contar com celebridades. É verdade que as vedetes podem trazer muitos benefícios. Para Anjo Negro, por exemplo, o vestido que Sylvie Vartan usa no final do filme foi feito gratuitamente por Dior porque consideraram que para eles seria propaganda. Por outro lado, para Coisas Secretas, pedimos um jeans e tivemos que pagá-lo porque nós não tínhamos nenhuma vedete. Essa questão econômica é uma questão-chave. Houve um tempo em que as vendas no exterior foram decisivas, agora eu tenho a impressão de que o sistema funciona em um vácuo. Será que as comédias que funcionam na França de dois ou três anos para cá realmente funcionam no estrangeiro? Ao passo que Coisas Secretas foi vendido em todo o mundo. O que permitiu reembolsar os investimentos. Porque, com um orçamento tão baixo, os técnicos são pagos com metade da tarifa sindical, o resto o é em participação.
Alain Guiraudie: Eu não reduzo o produtor à sua dimensão simples de gestor. No momento, eu não encontrei minha xícara de chá. Eu gostaria de encontrar um produtor que fosse um verdadeiro interlocutor, que me conduza, que me ajuda a encontrar a boa economia dos meus filmes. Eu tive menos problemas para fazer isso para os meus curtas ou meus médias-metragens. Eu sabia exatamente a que corresponderia um dia de filmagem, o que eu poderia obter a mais se eu utilizasse uma bobina a menos... Eu queria saber se para um diretor-produtor esse equilíbrio é mais fácil de se encontrar pelo fato de se encontrar em um confronto consigo mesmo?
Jean-Claude Brisseau: Jamais se está no confronto consigo mesmo. Sempre há pessoas que estão ao redor. Mas eu economizo posições. Por exemplo, eu não tenho assistente: eu mesmo escolho os atores, eu mesmo os ensaio, e eu mesmo busco as locações. É verdadeiramente excepcional que eu chegue num cenário sem saber onde vou colocar a câmera e as luzes. Quanto à película, eu calculo quanto vai ser gasto e peço aos meus colaboradores para me enquadrarem para ter certeza de que não será excedido. E se um excedente for necessário, eu peço-lhes para ver se é possível economizar em outra coisa. Em suma, durante as filmagens, confio a produção a outros porque não posso fazer tudo. Intervenho apenas em última instância. E essa delegação não é sempre sem conseqüência. Em Os Anjos Exterminadores, um documento não foi enviado e isso acabou nos custando quase 60.000 euros. Mas no que diz respeito à realização, não gosto de delegar. Acho que se perde tempo e dinheiro. É por isso que não emprego nenhum assistente no sentido habitual do termo. Controlo melhor fazendo as coisas eu mesmo. Em O Som e a Fúria, um jovem tomou conta das locações para mim. Eu não queria um HLM sujo, eu não queria carregar a proposta. Este jovem encontrou edifícios cujo exterior eram convenientes, mas ele não havia se dado conta de que eles eram compostos de duas ou três peças para a compra de pequenos quartos. Foi necessário que eu desse a ordem de ir à La Courneuve e pedir à administração dos apartamentos seis ou sete cômodos nos HLM. Em Anjo Negro, tratava-se de uma cidade de tijolos vermelhos. Queria filmar onde nasci. Mas as pessoas encarregadas da locação se colocaram em apuros. Eles pediram permissão para o HLM mas era certo que isso seria recusado. Eu havia lhes dito para pedi-la ao porteiro, que era meu amigo. Eles não o fizeram. E nós fomos forçados a interromper a filmagem durante oito dias antes de encontrar outro HLM, muito mais distante... O que quero dizer é que é útil conhecer muito bem as coisas de que se está falando. Os ambientes populares de O Som e a Fúria, eu os conhecia muito bem. Mesma coisa para o ambiente de Boda Branca, pois fui professor por 20 anos. E esta é uma das razões pela qual o filme custou muito pouco. Lembro-me que Alain Bergala não entendia por que os jovens caem na gargalhada durante a cena em que o conselheiro de educação pede o diário escolar, não o obtém, e envia o aluno para a sala do diretor. Bem, eles riram porque isto era a sua realidade cotidiana. Em outras palavras, devemos conhecer concretamente aquilo de que estamos falando, às raízes da grama. É assim que se pode ter um estilo. E somos obrigados a fazê-lo porque não temos muito dinheiro.
Alain Guiraudie: Eu queria fazer um filme em uma usina. Eu sou de um ambiente operário-camponês, mas só tive duas estadas de quinze dias em uma fábrica, porque isso não me interessou. Quando me encontrei filmando na fábrica, eu me perguntava quem eu era para filmar o que deveria ser, ainda por cima, o fechamento dessa fábrica. Eu não estava mais qualificado que qualquer outro para narrá-lo. E depois, eu passei por uma transfiguração, com a qual os trabalhadores inclusive se reconheceram. Coloquei-me a questão de como vestir a classe trabalhadora, como não entrar em uma lógica de figuração. E, finalmente, vestiram camisas laranja ou vermelho que ficavam muito bem. Mesmo tendo extrapolado muito, não significa que não há alguma verdade nisso. E eu acho que nós temos que passar por isso. Você não pode permanecer colado à realidade. Como você o fez em O Som e a Fúria.
Jean-Claude Brisseau: Meu princípio é transpor ligeiramente a realidade para obter algo que tende ao belo. É como em uma interpretação. Por exemplo, qual é a diferença entre uma verdadeira crise de histeria e a interpretação de uma crise de histeria no cinema? Pois bem, penso que no cinema é necessária uma transposição para o belo. Não posso me contentar apenas com a simples reprodução de uma crise de histeria. Não sou um cineasta naturalista. De modo algum. E eu não tenho desejo de sê-lo. Depois de O Som e a Fúria fiz deliberadamente um melodrama, sabendo que a imprensa que me apoiara dessa vez me colocaria abaixo. Mas eu não quero ser confinado em um gênero. Hoje, tendo feito dois filmes em seqüência que falam de sexo, não farei um terceiro, ou vou acabar rotulado permanentemente. Vou mudar totalmente de via. Mas o fato de se conhecer aquilo que se fala permite se evitar erros. No meu primeiro filme, que foi em 16 mm., um sujeito deveria interpretar um burguês. Eu não conhecia muito o universo da burguesia, e eu o fiz perambular com um terno. Mas apenas os proletários andam desse jeito! Da mesma forma, eu me lembro de ter visto uma série de filmes no final dos anos 70 e no início dos anos 80 em que os trabalhadores chegavam nas fábricas de bicicleta. O que é ridículo. Isso aconteceu no final da guerra. Mas, no início dos anos 80, era vergonhoso andar de bicicleta! Estas são idéias prontas. Da mesma forma que ainda se vê um acordeão nos filmes americanos onde a ação supostamente se passa em Paris!
Alain Guiraudie: Sem falar de sublimação e de transcendência, há ainda em você esta idéia de extrair o que é bonito na realidade. Quanto a mim, eu me recusei a ser naturalista. Eu me acho ferozmente anti-naturalista. E ao mesmo tempo, há uma frase de Flaubert de que gosto muito: “O cume da arte é agir à maneira da natureza, ou seja, fazer sonhar”. Acho que é uma ótima definição do naturalismo. E, neste momento, eu tendo a me colocar a questão do regresso a uma realidade crua, mas sempre extraindo o belo.
Pergunta da platéia: Eu tenho uma pergunta para Jean-Claude Brisseau. Quando você falava antes de introduzir o sexo na tela à maneira de Hitchcock, isso me fez pensar nas primeiras imagens de O Último Tango em Paris (Ultimo tango a Parigi/Le dernier Tango à Paris, 1972) de Bertolucci, onde, após aquela cena do grito liberador sob o metrô, tudo é possível no apartamento. Ao longo de todo o filme, apesar da presença da morte, espera-se que o sexo surja a qualquer momento. Acho que já havia nesse filme a idéia que você desenvolve agora.
Jean-Claude Brisseau: É possível. Mais precisamente, eu queria dizer antes que eu trabalhei de modo que houvesse um efeito de suspense utilizando o sexo como Hitchcock utilizava o medo. Mas sendo quase explícito, mostrando os corpos. Veja O Silêncio (Tystnaden, 1963), de Ingmar Bergman, que provocou um alvoroço porque Ingrid Thulin se acariciava diante da câmera. A atmosfera sensual do filme dava um peso ao menino vagando no hotel. (E, na minha opinião, Kubrick se utilizou disso para O Iluminado [The Shining, 1980]). Quando revemos o filme, visto que o sexo não tem mais esse lado quase proibido que tinha na época, ele perde sua força. Uma série de cineastas se divertiu ao utilizar o sexo em seus filmes sem com isso mostrar qualquer coisa. Eu mesmo fiz isso em Os Anjos Exterminadores com uma longa seqüência de sete minutos em um restaurante. Eu também queria explorar a área na qual vemos. Eu queria falar de sexo perturbando os homens, mas também as mulheres, o que é mais difícil. Mas eu faço filmes que se querem sérios, e não pornográficos. Um filme pornô ainda é o grau 0, 1 ou 2 da escrita cinematográfica. Não tenho conta disso, mas acho que é uma pena que não há no cinema o equivalente de Louis Aragon, por exemplo. Eu prefiro não dizer Sade, porque eu não gosto muito dele de um ponto de vista filosófico.
Eu queria reinserir o sexo - que ainda faz parte da vida cotidiana de todos - no cinema. Vou repetir o que uma garota de 17 anos disse recentemente durante um casting. Ela estava com a sua mãe. A garota me disse que ela adora dançar na frente do espelho, e ela se acha tão linda que ela se despe, se acaricia e desfruta disso. A mãe fica chocada e pergunta como ela se atreve a dizer isso diante do sr. Brisseau. A menina lhe responde: “Ele faz isso e todas as suas conhecidas fazem isso, não tem razão alguma para fazer esse circo”. Acabamos todos os três para uma bebida, na Place de la République, e ela disse que todas as pessoas que lá se encontravam baseiam-se no sexo porque foi necessário um homem e uma mulher fodendo para concebê-los. Portanto, todos nós nos importarmos com a utilização do sexo. Então, por que esse circo? E quando falo de circo, eu sei o que isso significa porque eu tive de pagar muito bem o preço.
Para retornar a O Último Tango em Paris, quando eu vi, eu fiquei boquiaberto. As pessoas corriam para ver o filme por causa da seqüência de “manteiga”, mas também porque havia Marlon Brando, que era uma grande vedete, em cenas eróticas. Quando na realidade nem havia tantas. Na minha opinião, a homossexualidade latente contida no filme também contribuiu para o seu sucesso. Porque isso permitiu que as mulheres também fossem. Mas eu continuo dizendo que um filme como Os Anjos Exterminadores é raro no cinema francês ou mundial.
Pergunta da platéia: Eu vi Os Anjos Exterminadores e acho que há um lado muito vaporoso que me lembra filmes como Emmanuelle (Just Jaeckin, 1974).
Jean-Claude Brisseau: Foi com esse filme que o sexo foi aberto ao meio dos quadros sociais. Isso assustou todo mundo. E foi logo depois desse filme que a classificação indicativa “X” interveio e passou a relegar, desse modo, o sexo às salas especializadas.
Pergunta da platéia: E com qual classificação será lançado Os Anjos Exterminadores?
Jean-Claude Brisseau: A comissão de censura proibiu para menores de 16 anos. Coisas Secretas teria falido se fosse proibido para menores de 18 anos e eventualmente foi para menores de 16 anos. Ao passo que De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick, 1999), que em relação ao sexo não difere muito de Coisas Secretas, foi classificado para todos os públicos.
Pergunta da platéia: É de fato surpreendente que não tenha havido nenhuma proibição. Mas nos Estados Unidos as cenas um pouco tórridas acabaram sendo cortadas.
Jean-Claude Brisseau: Não foram cortadas. Um véu transparente vermelho é colocado sobre o filme, o que atenua o poder sensual da seqüência. Esta técnica é muito utilizada no Japão e eu a vi em um filme com Jean Piat, O Castelo dos Amores Proibidos (La tour de Nesle/Der Turm der verbotenen Liebe, Franz Antel, 1968). Ainda sobre essa questão da classificação, deve-se dizer que há dois pesos, duas medidas, segundo os quais você é ou poderoso ou miserável. Assim sendo, alguns filmes proibidos para menores de 12 anos passam ainda em horário nobre ao invés de passar às 22h como é a regra.
Pergunta da platéia: Em Os Anjos Exterminadores, acho que a mise en scène pode deixar que se pense que o quê está acontecendo é real, que as atrizes se masturbam realmente. Não se tem a impressão que elas fingem. No filme de Kubrick a câmera é um pouco mais distante do que a sua. A mise en scène induz realmente a entender que se trata de uma ficção. Na minha opinião a diferença de classificação se localiza aí.
Jean-Claude Brisseau: Não estou totalmente certo de que elas realmente trepam umas com as outras na vida real. E é verdade que no filme de Kubrick vemos claramente que tudo é falso. Mas simplesmente observo que para a violência, tudo passa. Cortam-se cabeças, braços... E às vezes o prazer do espectador é baseado em um prazer sádico. Não há muitas organizações de extrema-direita que gritam para que se proíbam esses filmes. Acho isso estranho. Para retornar à questão da mistura de gêneros, para mim, Os Anjos Exterminadores é um filme experimental. Não no sentido de que vamos quebrar a cabeça por horas para entender o seu significado, mas no sentido de que os telespectadores são emocionados ao final do filme. Meu objetivo é a experiência emocional. Um dia reli todos os Cahiers du Cinéma de pelo menos 50 anos e toda uma série de revistas que desapareceram desde então. E eu percebi que não há um único artigo sobre a manipulação da emoção no cinema. Então fiz a pergunta para uma quinzena de críticos. Em geral, eles responderam que eles tinham medo. Porque, primeiro, eles têm uma cultura literária. Um crítico me disse que ele poderia ter um discurso literário sobre um filme, mas quanto a saber como a emoção é manipulada... Ele não sabe nada. Outro crítico disse-me que não se envolveu com a montagem de um filme de King Vidor. Ele viu uma cena pela primeira vez e a achou entediante. Ele viu uma segunda vez, um minuto e meio desta cena foi cortado, e ele foi arrebatado. E, na verdade, ele me disse não querer falar sobre a emoção, porque ele não quer falar sobre coisas que ele não conhece. Eu recentemente ministrei cursos na Fémis[1] sobre Hitchcock, não em um plano metafísico, mas sobre a maneira como ele conseguia, como Lubitsch, criar uma emoção. Eu vi que os alunos nunca tinham abordado essa manipulação do suspense no cinema.
Pergunta da platéia: Um crítico de cinema e professor que se chama Jean-François Tarnovsky estudou a psico-afetividade. E ele escreveu para várias revistas, incluindo a Positif. E ele sempre teve dificuldades face aos escritores cinéfilos sobre essa questão do tratamento de emoção.
Jean-Claude Brisseau: É o que eu estava tentando dizer. Uma boa parte dos críticos não compreende como um realizador cria uma cena, dirige-a e a organiza em um filme. Qual é a relação entre o silêncio, a banda sonora, a música... A propósito de música e das modas, as quais evoquei anteriormente, se você tomar O Desprezo (Le mépris, 1963) de Godard, por quem tenho grande admiração, e se você retira a música de Delerue, o filme cai. Isso significa que Godard utilizou a música para que ela seja constitutiva na emoção que há no filme. A música não pode ser separada.
Pergunta da platéia: Sobre o que dizia Alain Guiraudie, há efetivamente uma confusão entre a realidade e o real. Nas elipses de montagem do cinema, há sempre mais real, pois se vai direto à emoção, contrariamente à realidade que é percebida com grades de leitura. Tendo trabalhado nos Estados Unidos, com os diretores de atores, vi que eles partem do princípio de que não há emoção falsa. Isso quer dizer que se em dado momento você tem uma chance de capturar algo do real no cinema, que se um ator produz uma emoção a qual ele então domina mais ou menos, isso afeta o espectador porque há algo indescritível que se passa nesse momento. E então, mesmo que o ator tenha a impressão de que isso não coincide com a realidade da cena, a emoção não é simulada, e o espectador irá recebê-la.
Jean-Claude Brisseau: Penso que você tem razão. A força de algumas estrelas americanas vem daí. Penso em John Wayne, Gary Cooper, Clark Gable... Se eles conseguiram ter um impacto mundial é por que você é afetado por eles unicamente pelo que eles têm em seus olhos. Em Rastros de Ódio (The Searchers, John Ford, 1956), o olhar de John Wayne é formidável quando ele acha que sua cunhada vai morrer e depois quando ele a vê morta. Em Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952) Gary Cooper está brilhante. Em O Homem do Oeste (Man of the West, Anthony Mann, 1958) ele interpreta o papel de um assassino, ele não fala muito, mas dele emana uma emoção de uma força impressionante. Mas essas pessoas aprenderam a expressar essa emoção. Inicialmente eu me divertia comprando vídeos somente pela mise en scène. Agora eu me concentro na evolução da interpretação dos atores. Desses atores eu tenho quase todos os seus filmes. Para John Wayne e Gary Cooper a intervenção de certos diretores foi decisiva. É no momento em que John Ford faz John Wayne chorar em público que este se torna uma estrela. Não concordo com as opiniões políticas dele, mas esse homem tinha uma certa humildade. É difícil expressar a emoção, mas é ainda mais difícil fazê-lo em um tempo determinado, muitas vezes em um minuto ou um minuto e meio, enquanto na vida são coisas que levam muito mais tempo. É aí que o trabalho técnico deve ser excedido para se atingir uma autenticidade. Suponha que você peça para um ator interpretar uma cena de suicídio. Ele vai ser forçado a se suicidar na vida? Certamente não. Mas no espaço de uma hora ele deve chegar a encontrar uma emoção equivalente para transpor em cena.
Pergunta da platéia: O cinema de vocês dois tem um elo em comum. Ele já existe na relação entre a realidade e a imaginação. E, também, há no cinema de Jean-Claude Brisseau uma audácia maravilhosa de se filmar o prazer e a sexualidade. E em Alain Guiraudie há uma progressão no seu cinema em se filmar o corpo e a sexualidade. Eu gostaria de saber se é uma questão que vos interessa.
Alain Guiraudie: É uma pergunta muito boa. Estou plenamente nesse questionamento. Mesmo se não estou realmente interessado pelo prazer, mas, sobretudo, pelo que toca o desejo, que é, para mim, o grande mistério da vida. Como as pessoas se encontram ou não se encontram? Eu desenvolvi um projeto com forte conotação sexual, com o qual irei me afrontar com o sexo mostrado. Mas eu não sei se isso realmente me interessa. Por um lado em um filme como Coisas Secretas sou muito sensível ao que está acontecendo entre as meninas. Por outro quando me confronto com o sexo eu sempre tendo a preferir a insatisfação. Para mim é o motor da vida. Em Ce vieux rêve qui bouge reescrevi o roteiro inúmeras vezes, mas finalmente eu me disse que eles não deviam dormir juntos. Era até mesmo uma necessidade. Acho que pelo fato disso não ocorrer novos horizontes acabam sendo abertos. Portanto, quando reli o meu projeto, eu disse a mim mesmo que me interessa efetivamente filmar os corpos. E acho que eu adoraria me afrontar a uma pornografia ampla e não parcializada. Mas, em meus filmes, pergunto-me para onde isso me conduz. Eu não sou tão interessado pela exploração das emoções. Faço mais parte de um achatamento, de maneira ao que haja nisso de possível. No que se refere à interpretação natural, considero que é um código estabelecido pela indústria. Meu primeiro filme foi algo realmente muito escrito, onde uma noite dois rapazes esperam um terceiro que nunca virá. E tudo passa pelo diálogo. Eu queria que isso se parecesse com a vida, mas ainda mais bonito. Quando começamos a ensaiar com o outro ator, demo-nos conta de que não se devia falar como na vida de todos os dias, mas que se devia falar rápido e entrar em algo quase mecânico. Tem sido muito à italiana. Recentemente li um texto de Skorecki que dizia que tudo que existe de bom no cinema francês vem de Bresson. Acho que ele tem razão. E quanto a você, você deve bastante a Bresson?
Jean-Claude Brisseau: Para mim, os filmes que ele realizou entre As Damas do Bois de Boulogne (Les dames du Bois de Boulogne, 1945) e O Processo de Joana d’Arc (Procès de Jeanne d’Arc, 1962) são um ápice do cinema mundial. Mas fui influenciado? Sou incapaz de responder.
Alain Guiraudie: Eu descobri Bresson bastante tardiamente, mas acho que ele colocou um rastro que dura bem, uma outra proposta para as regras que definem a interpretação natural.
Jean-Claude Brisseau: Eu seria mais nuançado. Penso que cada cineasta deve encontrar seu próprio estilo, seu próprio equilíbrio. Você mencionou a velocidade do diálogo. Assista O Intrépido General Custer (They Died with Their Boots On, Raoul Walsh, 1941) e observe a elocução de Errol Flynn. No entanto, ele chega até mesmo a dar a impressão de natural. Sobre os atores, coloca-se o problema da força e do impacto. Veja em um western: existem códigos, mas muitas vezes os personagens não são definidos durante horas. Eles têm a força da evidência. Em um filme como Tambores Distantes (Distant Drums, Raoul Walsh, 1951), quando Gary Cooper sai dos pântanos, em três planos ele é o herói mítico. E ele praticamente não diz uma palavra. Eu também me perguntei ao vê-lo quem atualmente poderia fazer isso. Outro exemplo: Intriga Internacional (North by Northwest, Alfred Hitchcock, 1959). É a história de um homem em seus cinqüenta anos, que tem medo de mulheres e que chama sua mãe assim que fica bobo. É Woody Allen. Mas se você escalar Woody Allen para o papel de Cary Grant, o filme entra em colapso. E quem você colocaria no lugar de Cary Grant hoje? Fica a questão.
Pergunta da platéia: Alain Guiraudie, por que você aparece em seus filmes às vezes sim e às vezes não? Você poderia explicar esse desejo de atuar? E como isso vai evoluir? Vamos reencontrar você nos seus filmes?
Alain Guiraudie: Eu atuei em apenas dois dos meus filmes. E, além do mais, tive realmente esse desejo. Nos meus primeiros filmes eu tinha grande dificuldade em delegar. Queria fazer absolutamente tudo. Inicialmente, havia outro ator, mas ele não funcionou. E então eu disse que iríamos parar e que eu assumiria o papel. Era a véspera da filmagem. Depois, em Du soleil pour les gueux, eu queria me vestir de calça de lycra rosa, colocar um chapéu de palha e fazer gracejos na Causse. Foi a minha veia transformista! E também, nesse filme, eu tinha superado o problema de delegação. Eu já conseguia trabalhar com as pessoas, confiar nelas, rodear-me delas. Então eu disse a mim mesmo que o papel era suficientemente deslocado do que sou para que eu pudesse encarná-lo. Havia até um forte escárnio em relação a esse sujeito que não quer deixar a sua terra. E, hoje, o desejo de atuar me retoma, para manter um traço de mim aos 40 anos, enquanto ainda estou apresentável. São oportunidades que surgem. E há esse lado físico que realmente me interessa.
Jean-Claude Brisseau: Sobre atuar nos próprios filmes, eu só queria esclarecer que nunca estou presente nos meus. Nem mesmo no último. Em O Som e a Fúria não ocorreu a ninguém dizer que sou eu. Ao passo que é um décimo de mim. Em Coisas Secretas, é um quarto. Todos os filmes que fiz são certamente ficções, mas retomam coisas que vivi ou que presenciei. Isso me permite saber do que falo.
Pergunta da platéia: Eu gostaria de retornar à parte em que vocês se colocam nos seus personagens. Em Os Anjos Exterminadores, o personagem principal é um diretor, e em Voici venu le temps, o herói permanece ele mesmo no meio dos grupos, procura seu lugar à margem, um pouco como se vocês dois estivessem falando sobre o status do artista em nossa sociedade?
Jean-Claude Brisseau: Em relação a mim, não se trata disso. Um dos temas do filme era o de se confrontar um tabu. À época de O Som e a Fúria a transcrição da violência tinha sido muito criticada, especialmente pelos políticos. Disseram que se tratava de uma das minhas fantasias. Sou muito próximo dos comunistas, mas a partir do momento em que estava fazendo um filme sobre a delinqüência eu me tornei Lepenista. De fonte confiável eu soube que ministros socialistas interviram para me impedir de conseguir prêmios. E para Os Anjos Exterminadores eu quis fazer o mesmo, confrontar-me com um tabu, mas desta vez com sexo. Quando eu escrevo me coloco no lugar de todo mundo e, em particular, dos ímpios. Por exemplo, em O Som e a Fúria, coloquei-me principalmente do lado de Cremer. Embora, como todos os meus personagens, ele seja uma mistura, o personagem era inspirado principalmente por um sujeitinho um tanto patético. Cremer o conheceu, mas eu disse a ele que queria dar-lhe uma dimensão mais trágica. Por exemplo, quando ele fez seu discurso no banco do Sacré Coeur, eu o aconselhei a dizer como se ele estivesse persuadido de ter razão. Acho que devemos sempre nos colocar do lado de pessoas que teríamos tendência a não gostar na vida.
Alain Guiraudie: Quanto a mim, gosto de me destilar em três ou quatro personagens. Nathalie Sanchez em Du soleil pour les gueux, sou eu, como Gustave Flaubert. Não posso ignorar o que eu sou, os meus desejos, as minhas opiniões políticas... A partir disso, tudo isso aparece no filme. A primeira versão de Voici venu le temps consistia em se transformar os dissidentes do espetáculo em guerreiros. Eles trabalham e eles ganharão seus bônus. E depois, eles estão desempregados. Eu queria falar de mim, de algo que me preocupava à época, porque eu era assistente de direção em telefilmes. Eu tinha a necessidade de tratar desse lado mercenário. E eu achei que no cinema seria interessante propor as aventuras de um guerreiro homossexual e revolucionário. Portanto, eu certamente me mitifico poderosamente! Eu nunca fui combater o bandido! Mas é verdade que o cinema é ainda uma forma de rentabilizar meu individualismo. De falar de mim a princípio e, em seguida, de me misturar com o mundo inteiro.
Nota:
[1] École nationale supérieure des métiers de l’image et du son, antiga Fondation européenne des métiers de l’image et du son, é um estabelecimento público de ensino superior francês, ligado ao Ministério da Cultura da França e ao Centre national du cinéma et de l’image animée, que oferece ensino técnico e artístico destinado a formar profissionais de audiovisual e cinema (n.d.t.).
(17 de junho de 2006. Traduzido por Luan Gonsales)
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