THE LONG VOYAGE HOME
por Bruno Andrade


O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam.

Blaise Pascal

Fritz Lang, nos últimos filmes que realizou, levou o seu cinema a um ponto de equilíbrio clássico em que a necessidade e o acaso se assemelham (mas apenas se assemelham). Ao eliminar completamente o casual, o acessório, o detalhe anedótico e pitoresco da construção de seus filmes, ele aperfeiçoa um sistema de abstração formal, que levou anos para conseguir articular e mais alguns para dominar, no qual o acaso, após se converter em necessidade, acaba sendo eliminado por uma necessidade ainda mais implacável, a qual atende pelo nome de destino. É o que vemos em O Tesouro do Barba Rubra, Suplício de uma Alma e Os Mil Olhos do Dr. Mabuse.


Jean Renoir, nos últimos filmes que realizou, levou o seu cinema a um ponto de equilíbrio clássico em que a necessidade e o acaso se assemelham (e não apenas se assemelham). Isto porque conduziu o seu sistema, que é o da não-premeditação, o da permeabilidade dos elementos prescindindo de qualquer construção prévia, a um refinamento, uma depuração completa dos seus pressupostos, de tal modo que os meios acabam se confundindo com os fins, acabam por se tornar os próprios fins desta arte consumada da exploração e da investigação. É o que vemos em A Carruagem de Ouro, Le déjeuner sur l’herbe e Le petit théâtre de Jean Renoir.


Jean-Claude Brisseau, nos últimos filmes que realizou, não fez nem uma coisa nem outra. Mas há algo a ser visto nesses filmes, e que nos ocupará no restante deste texto.


Erra aquele que, a respeito dos filmes anteriores de Brisseau, insiste que sua musa é a mulher, o sexo, o gozo, o desejo, o poder, o marxismo etc.

Brisseau nunca é tão verdadeiramente ele mesmo como quando olha as estrelas, como quando suscita a infinidade do cosmos pela finitude da visão. Alguns pontos brancos sobre um fundo negro bastam para que, sorrateiramente, sem que percebamos, em um momento em que somos pegos como que distraídos, ele chegue ao âmago das questões que o obcecam, arrebatando-nos com a maior potência possível de evocação poética daquilo que alimenta, profunda e intimamente, sua vocação de homem e de artista.

Lá fora, no mundo, onde o homem pode cumprir plenamente seu ofício de artista, John Ford também soube ver as estrelas. Como Riccardo Freda. Como Rossellini. Como Tourneur. Como Van Gogh.

Mas desta vez, em A Garota de Lugar Nenhum, a partir de uma soma (€ 62.000) recebida após a televisão francesa exibir Boda Branca no quadro de uma homenagem ao ator Bruno Cremer (falecido em agosto de 2010), Brisseau retoma o modelo de produção autônomo de A Vida Como Ela É e As Sombras: um apartamento mobiliado, poucas externas, o essencial para a captura de sons e imagens, e basta. Essa escassez, essa redução da base sobre si mesma, essa economia exígua de filmagem faz com que se opere no filme duas ressurreições. A primeira diz respeito aos primórdios do artista e à sua capacidade de invenção ainda intocada pelos anos de experiência que levam à premeditação, às tábuas rasas, a uma prática da técnica cinematográfica que, por mais consumada que seja, e mesmo em filmes tão alucinantes como Os Indigentes do Bom Deus e Coisas Secretas, acaba perdendo em força bruta e compacta o que ganha em elegância e delicadeza no traço. A segunda é intrínseca às circunstâncias que possibilitaram a própria realização do filme: desamparado do alterego que tinha, justamente, em Cremer, cabe a Brisseau, desta vez, prestar tributo ao ator e amigo e interpretar a si mesmo nesta história de um professor recluso que socorre uma menina misteriosamente ligada ao oculto e ao sobrenatural.

Mas como filmar as estrelas nessas condições - um apartamento, um professor recluso, uma pequena câmera digital?

Como se atinge a imagem do universo - seu centro -, como se parte em direção às galáxias quando se está enclausurado entre quatro paredes?

Questão de encenação, papel de um cineasta.

Primeira providência: engajar a imaginação. Pois o que é um quarto, uma sala, um apartamento, senão o ateliê do artista, o estúdio possível para aquele que já filmou cavalgadas (as mais belas cenas em Ford são de interiores), cenas de multidões (as mais belas cenas de Cimino e DeMille também são de interiores, com não mais do que três ou quatro personagens) ou perseguições de carros? Pois se a imensidão das planícies, os volteios do vento que envolvem o aroma e a poeira da terra (como bem escreveu André Barcellos) não são passíveis de registro sob tais condições, o que se pode fazer?

Como Kubrick em 2001, como Méliès, como Duras (Des journées entières dans les arbres), Brisseau, não tendo outra opção, põe-se a filmar o vazio entre as coisas - isto é, o espaço em estado bruto, mas ao mesmo tempo tomado por vestígios concretos de que o imponderável (e o mundo dos sentimentos pertence a esse domínio), ainda que frágil a ponto de se esvair no ar ou se refugiar nos confins da alma, pode sim passar por algo, encarnar-se em algo, deixando seus traços naquilo que podemos detectar do seu grão material. Desta forma, somente pelas vias da aniquilação, da supressão metódica do entorno (como nos últimos Lang), tudo pode acabar sendo desnudado. Brisseau chega, assim, ao próprio coração de sua arte, desta vez guiado unicamente pela sua musa: a nudez. Tudo é admiravelmente desvelado, permeado pela compreensão de que apenas pela nudez exacerbada da matéria as almas se revelarão verdadeiramente, segredo que apenas os maiores entre os maiores acessaram, e geralmente apenas nos seus últimos trabalhos (quer estes se chamem para Lang O Tigre de Bengala e O Sepulcro Indiano, para Dwan Matar para Viver, para Ulmer The Cavern, para Ford Sete Mulheres ou para Dreyer Gertrud, quer se chamem para Sternberg A Saga de Anatahan, para Bresson O Dinheiro, para Cuny L’annonce faite à Marie, para Rohmer Os Amores de Astrea e Celadon ou para Oliveira O Estranho Caso de Angélica).

Eis o teste decisivo dos verdadeiros cineastas: abdicando de tudo, acabam por revelar suas maiores riquezas.

***

E, no entanto, o que também faz a grandeza e a beleza desse gesto de renúncia é a capacidade do cineasta preencher com toda a presença do mundo esse vazio a que sua arte o conduz. Não mais superficialmente, como talvez tenha sido o caso em ensaios e tentativas anteriores, mas profundamente, lá onde Aqueronte desemboca em Hades (“Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo”[1]), ou aqui onde circulam os fantasmas - diurnos ou noturnos, misericordiosos ou maléficos - que, espreitando-se ou revelando-se, auxiliam-nos a enxergar mais completamente, isto quer dizer mais definitivamente, a realidade e seu corolário: o curso das coisas.

O experimento de Brisseau em A Garota de Lugar Nenhum consiste em dar corpo, matéria e Graça à proposição de Jorge Luis Borges: “Costumamos ser a realidade de um sonho ou talvez o sonho dos outros.” A vida é a única barreira intransponível, a verdadeira inimiga aqui. A beleza - e A Garota de Lugar Nenhum é um dos mais belos filmes dos últimos anos - nasce do confronto entre o sonho que se vive e aquele que não se pode viver... A não ser sob o véu permanente da morte.

Quanto ao vazio a que nos referimos anteriormente, há os cineastas que cravam seus olhos nele de cima, das alturas - é o caso do famoso “olhar de águia” de Fritz Lang. Há outros - e é este o caso de Renoir, de Walsh - que do abismo observam o sol resplandecente e encaminham-se rumo a ele. Tudo neles é revelado de forma selvagem: ruídos, acidentes, imprevistos, atritos, confluências... tudo, neles, é acordo ideal, como se a marcha do mundo cedesse lugar a uma dança do espírito. Como os primeiros filmes da nouvelle vague, A Garota de Lugar Nenhum parte de uma conjectura econômica de modicidade, regrada por uma escassez de meios particularmente espartana, e consegue fazer com que estejam contidas entre as paredes de um apartamento e algumas breves passagens pelas ruas de Paris toda a tensão, toda a atividade, toda a energia surda do mundo. Este apartamento, mais do que um ateliê, é na realidade a caixa-forte onde o cineasta reúne tudo o que lhe é mais valioso. Este filme, mais do que um simples compromisso, é na realidade a oportunidade de Brisseau retomar a força bruta cativante de seus primórdios após anos de uma prática cinematográfica que o levou à fabricação de objetos raros como Céline e Indigentes. A captura por vezes deficiente do som nas cenas de exterior, a imagem por vezes vacilante devido a uma quantidade incipiente de luz restituem ao mundo uma imagem do seu frescor original que recentemente apenas Godard tem sido capaz de registrar.

A Garota de Lugar Nenhum, ou o último filme da nouvelle vague.

***

Corpo, matéria e Graça.

Impossível não falar da participação de Brisseau no seu próprio filme. Seu olhar. Sua entrega e honestidade desarmantes.

Ele certamente não é desenvolto como Rex Harrison em O Fantasma Apaixonado, denso como Burt Lancaster em Violência e Paixão, trágico como James Stewart em Um Corpo Que Cai.

Mas sua presença consegue ultrapassá-los todos: o peso que orbita seus gestos, seus movimentos no interior de um apartamento, o espanto em seus olhos quando pego de surpresa pelas indagações e confrontações de Dora (Virginie Legeay) às suas certezas, são sinais de vida que ator algum seria capaz de transpor. Como faz com a forma em seus filmes, o ator Brisseau deixa transparecer uma vida interior que nenhum ensino formal, nenhuma etiqueta prévia poderia jamais conter.

É aqui que a abordagem de Brisseau distancia-se irremediavelmente das de Lang e Renoir: A Garota de Lugar Nenhum é belo não por ser a soma e a síntese de toda a obra pregressa de Brisseau (não estamos mais em 1959), mas por possuir belezas específicas, por levar às últimas conseqüências um voto de pobreza que, hoje, não tem como não ser visto como o ônus (histórico e político) que traz consigo o termo mise en scène (“a mise en scène no sentido em que entendiam Hitchcock ou Raoul Walsh (...) desapareceu”, diz o próprio Brisseau). Ato de resistência? Muito mais do que isso. Se à primeira vista seu filme é fundado sobre duas ressurreições, Brisseau na realidade cumpre com A Garota de Lugar Nenhum um verdadeiro programa de suicídio que nem mesmo o Leopardo de Ouro recebido em Locarno poupou da incompreensão mais flagrante e generalizada: “vaidade”, “diletantismo”, “senilidade”, “filme terminal”, “obra testamentária”, “outono do artista”, todas as pechas mais absurdamente distantes de sua démarche foram-lhe atribuídas aqui e ali, em lugar nenhum e por toda parte. Um realizador que se dedica integralmente à sua proposta: eis o que choca o espectador culturalmente advertido nos dias de hoje.

Mas, de forma ainda mais decisiva, o que afasta Brisseau de Lang e Renoir no gesto análogo de completa entrega ao seu ofício é que em A Garota de Lugar Nenhum já não se trata mais de acaso e necessidade jogando um com o outro, seja pela forma de anulação (Ingres, ou Fritz Lang), seja pela forma de incitação (Manet, ou Jean Renoir). Nada disso. Brisseau, aqui, não sintetiza uma coisa com a outra. O que vemos desde os primeiros planos de A Garota de Lugar Nenhum (a inscrição da frase de Victor Hugo sobre um fundo de estrelas seguida de Brisseau na sua mesa de trabalho tomando algumas notas e falando para si mesmo que “Os sonhos são para os que dormem”) é uma simbiose entre o acaso e a Graça, entre a necessidade e a Graça. Não há, de nosso conhecimento, obra menos desesperada, histérica, convulsiva no quadro do cinema contemporâneo, assim como não há destino mais sereno, completo e exorbitante de possibilidades que aquele ao qual este filme se encaminha. Eis o paradoxo sobre o qual A Garota de Lugar Nenhum se funda e ao qual nos orienta: versando sobre a morte (a sua, a do seu cinema), um cineasta faz a obra mais viva dos últimos anos. Mobilizando os céus e as profundezas, a queda e o paraíso, um filme nos faz ver, ao seu término, que sim, “tudo é Graça”.


Nota:

[1] “Se não posso dobrar os poderes superiores, moverei o inferno”, ou seja, o rio Aqueronte. Sigmund Freud, extensamente citado no decorrer de A Garota de Lugar Nenhum, em A Interpretação dos Sonhos.

 

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