UM CINEASTA NASCEU
Se quisemos realizar esta entrevista com Jean-Claude Brisseau, professor e cineasta, cujo primeiro filme, Um Jogo Brutal[1], foi lançado em Paris setembro passado, foi ao menos por três razões.
Quando tive a chance de descobrir, há alguns anos, seus primeiros trabalhos, tive imediatamente a convicção de me encontrar diante de uma “obra” e de um “autor”. Experiência rara, como se diz. Havia lá mais que o talento, as idéias ou o conhecimento. Uma justeza de tom, uma audácia e uma grande modéstia ao mesmo tempo. Uma emoção sempre sincera. Uma violência e uma aspereza jamais complacentes. Enfim, uma ternura e uma compaixão por personagens raramente descritos no cinema, irmãos na miséria, no horror e no desespero, dos inesquecíveis Olvidados de Buñuel[2].
E, depois, que surpresa e que alegria de encontrar em um filme francês de 1983 a dimensão espiritual, que falta singularmente à maior parte das obras contemporâneas. Um jovem cineasta tem a audácia, em seu primeiro filme, de relançar a questão terrível de Dostoievski: Se Deus existe, se o mundo é belo, por que os prantos e a morte[3]?
De imediato, Um Jogo Brutal nos fala de Deus, e nos transtorna porque confronta duas figuras da divindade: o deus político, o deus onipotente e terrível que se revela ser, no fim das contas, uma projeção delirante do nosso eu, embriagado de poder e de orgulho. E, em oposição, o deus escondido, o deus ausente, o deserto do amor. Aquele a que se procura, ao qual se chama quando se sofre, quando não se pode suportar o excesso do mal, os inocentes sempre esmagados, a violência por demais injusta.
Enfim, Jean-Claude Brisseau, no nosso cinema, representa pelo seu itinerário um caso excepcional, que merece reflexão. Mestre-escola, depois professor em um CES de Bagnolet, ele aprendeu sozinho a fazer filmes.
Porque ele é alheio ao pequeno mundo do cinema, aos circuitos do poder e da intelligentsia parisiense, porque é uma criança do povo e um homem livre - como o era Jean Eustache -, porque seus filmes respiram e cantam um outro ar que não o ar ambiente, ele tem e terá mais dificuldades que qualquer outro para fazer ouvir sua voz.
É por isso que nós quisemos, na revista Études, dar-lhe a palavra. E convidamos nossos leitores a não perderem esta primeira obra, Um Jogo Brutal.
Bom vento a Jean-Claude Brisseau.
Jean Collet
– Jean-Claude, você tem trinta e nove anos, Um Jogo Brutal é o seu primeiro filme para o cinema. Eu gostaria que você nos falasse de início de como você se preparou para se tornar cineasta. Você não fez nenhuma escola de cinema, nenhuma formação. Você chegou pelos caminhos que não são os habituais.
J.-C. B. - Eu queria muito, aos dezessete, dezoito anos, fazer cinema e entrar no IDHEC[4]. Eu passei minha infância a ir ao cinema. Eu via cada vez mais filmes. E depois passei a ler os Cahiers du Cinéma. Eu esperava me tornar cineasta. Para o meu grande desespero, eu tinha de ganhar minha vida imediatamente. A partir do momento em que pude comprar uma câmera super-8 sonora, fiz filmes para o meu prazer.
A SANÇÃO DO PÚBLICO
E você mostrava esses primeiros ensaios?
J.-C. B. - Sim, aos camaradas, para pessoas da minha família. Eu estava muito orgulhoso do que havia feito, mas logo percebi que as pessoas se entediavam. Como não entediar o público? Eu assistia com inveja aos filmes de Hitchcock. Como ele fazia para manter a atenção dos espectadores? Então, eu comecei a fazer exercícios. Eu me esforcei para imitar Hitchcock... com meus pequenos meios!
Ao mesmo tempo, eu tentava transmitir certas emoções muito pessoais. Pouco a pouco, eu vi os filmes com um outro olhar. Eu descobri dois tipos de cineastas: aqueles que resolvem esses problemas concretos com elegância, e aqueles que o conseguem de maneira mais artificial.
Você tinha qual idade?
J.-C. B. - Quinze, dezesseis anos. Foi um professor de história do liceu Chaptal que me emprestou uma câmera. Eu soube mais tarde que ele pagou do seu bolso a película. Eu sou infinitamente grato a ele.
A esta época, quais eram os cineastas - à parte Hitchcock - que te estimulavam?
J.-C. B. - Certos filmes de Ford, de Hawks, de Bresson. Eu vi Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s’est échappé (ou Le vent souffle où il veut), Robert Bresson, 1956) quando tinha dez, doze anos. Foi no Gaumont-Palace, uma sala de cinco mil lugares. Cheia. O público reagiu como diante de um filme de Hitchcock. Quando eu descubro hoje com quais meios Bresson alcançou tal resultado - sobre a tela, não há quase nada -, eu tiro o meu chapéu, é a grande arte.
Parece-me que você dá grande importância ao “público”, o que não é o caso da maioria dos jovens cineastas. Eles fazem filmes para eles mesmos, e pouco se importam com entediar ou emocionar.
J.-C. B. - Eu penso, sim, que o público, definitivamente, tem razão. Embora se deva nuançar. Eu amo e admiro certos filmes que não obtiveram sucesso... Uma Mulher é uma Mulher (Une femme est une femme, 1961), de Godard, A Cadela (La chienne, 1931), de Renoir.
Ainda assim, hoje, aos trinta e nove anos, eu estou convencido de que o critério de uma obra de arte consumada - sobretudo um filme - é a sua simplicidade. A simplicidade deve ser o fruto do trabalho e do talento, o índice de uma maturidade. Se há alguma coisa viva, inspirada em uma obra, isso deve ser transmissível aos outros.
Mais tarde você realizou um filme de ficção de uma hora e meia em super-8, La croisée des chemins.
J.-C. B. - Eu tinha trinta e um anos, foi em 1975. Eu escrevi o roteiro, rodei com jovens não profissionais, claro. Eu mesmo fazia a captura do som. Quando tive o filme montado, ele foi projetado em um festival de amadores. Eric Rohmer estava na sessão. Ele gostou. Ele me ajudou a começar.
Como?
J.-C. B. - Eu havia escrito um outro roteiro[5]. A história se passava na periferia, nos grandes conjuntos habitacionais. Havia muita violência. Rohmer leu esse projeto; ele me disse: “Você exagera, você colocou aí os seus fantasmas.”. Eu lhe disse: “Venha ver.”. Eu o levei ao “4000”, em La Courneuve, lá onde, neste verão, o Sr. Mitterrand fez uma visita. Era por volta de 1977-1978. Rohmer encontrou uma família. A filha de treze anos se comportou com ele como uma prostituta. Naquele momento ele acreditava que eu havia montado uma encenação. Infelizmente não! Eu sabia que os jovens do grupo dela haviam cometido atos graves de violência, chegando até mesmo ao assassinato[6]. Ela me inspirou uma personagem do filme.
NÃO É NECESSÁRIO QUE SE VEJA O TRABALHO
Quando eu descobri este filme no Instituto Nacional do Audiovisual (INA), graças a Rohmer que me havia chamado a atenção, ele provocou em mim as mesmas reações. Dizíamos: “Isso não é verdade.”.
J.-C. B. - Eu sei. O filme depois nunca foi lançado, nem na televisão, nem no cinema. Consideram-no muito duro. Entretanto, não fiz mais que descrever a vida cotidiana de certos subúrbios que eu conheço.
Mesmo assim, você foi capaz de fazer este filme...
J.-C. B. - Sim, Rohmer tentou produzi-lo na Films du Losange. Ele não conseguiu obter o financiamento. Então me encaminhou ao INA, onde graças a um empréstimo de película, eu pude rodar durante o verão de 1978.
La vie comme ça custou 18.000 F[7], incluindo os custos da alimentação de todos aqueles que participaram. A filmagem durou cinco semanas, durante as férias escolares.
Será que Rohmer não tinha, apesar de tudo, um pouco de razão quando ele falou dos seus “fantasmas”? Parece-me difícil receber seus filmes como “documentários”.
J.-C. B. - Claro, eu não sou um realista. La vie comme ça poderia ser um tipo de Alice no País das Maravilhas, salvo que as maravilhas, aqui... Através de um personagem que descobre esse mundo eu procuro recriar emoções. Mas eu espero que isso não se veja. Não é necessário que se veja o trabalho.
A MENOS QUE TUDO SEJA GRAÇA
Quando se vê Um Jogo Brutal, dir-se-ia que você procede por pinceladas sucessivas: uma cena de violência após uma cena de emoção etc., com as elipses, um vazio entre as duas...
J.-C. B. - Quando a jovem deficiente, que está apaixonada por Pascal, vê ele partir, ela sofre. Ela sabe que esse garoto não a ama. Eu não me detenho. Eu passo a uma cena onde Isabelle estuda um poema de Baudelaire sobre a música. Depois a uma cena de morte.
Se eu me detivesse sobre os prantos da garota no momento da partida, a cena de explicação do texto seria enfadonha. Ao abreviar a partida, eu tentei provocar uma transferência de emoção, um contágio de sentido, de uma cena à outra. O mesmo para a cena de assassinato que segue imediatamente. Neste momento de prova, de amargo fracasso, Isabelle deve nos surpreender, visto que antes, ela reagia de maneira agressiva, matando as criaturas...
Aqui, para a nossa grande surpresa, ela diz coisas sensíveis e justas sobre a poesia, a arte que permite suportar e aceitar o sofrimento.
J.-C. B. - E durante esse tempo, seu pai, que lhe ensinou a não matar aqueles insetos, vai assassinar uma criança.
Há, portanto, uma ligação entre o pai e sua filha: no momento em que ela se recupera de sua situação enferma e de seu fracasso amoroso, seu pai exerce por outro lado a mais horrível violência.
No fundo haveria um paralelo entre a violência e a arte, ou a cultura. Isabelle encontra em um poema de Baudelaire o meio, a força para superar seu sofrimento, enquanto que o pai busca esse meio no assassinato.
J.-C. B. - Mas ele não o encontrará.
Este é um outro ponto em comum, confuso, entre a filha e seu pai. Um e outro são fraturados. Ela, fisicamente (ela nunca andará); ele, espiritualmente. A ambição, que conduziu sua vida, esta tampouco funcionará. Ao fim, ele está fraturado no seu orgulho.
J.-C. B. - Sim, mas o que os separa, é que ela, através de um amor frustrado, toma consciência de outra coisa, um tipo de graça que cai sobre ela. Há uma mão, que é provavelmente a de Deus...
Você está falando da cena final, com o último assassinato que não será cometido, porque a polícia vai matar Tessier no momento em que ele esfaquearia uma menina. Nós, nós sabemos que ele não ia assassiná-la, porque ele chega a murmurar: “Meu Deus, o que foi que eu fiz?...”.
J.-C. B. - Sua filha, durante esse tempo, não tenta alertar seus próximos, ou a polícia. Ela ora. Ela pede para que a criança seja salva e seu pai perdoado. E isto acontece.
A criança é salva. E o pai, verdadeiramente perdoado. Daí as questões: de uma parte, a da redenção dos algozes, dos assassinos mais monstruosos (com Cremer, ao rodar o filme, pensávamos o tempo todo nos nazistas); de outra, a questão da essência deste Deus que não intervém nos destinos a não ser quando ele quer ou quando bem se suplica a ele.
A menos que tudo seja Graça.
SE DEUS EXISTE
Parece-me que alguns espectadores, em Cannes, acharam o fim do seu filme um pouco otimista.
J.-C. B. - Ele não é muito alegre. Porque, se Deus intervém assim nos destinos, então como e por que tolera, antes, a morte das crianças por Tessier, os sofrimentos, os massacres evocados no filme? Um espectador me disse que havia ali muito humor negro.
É verdade, Tessier mostra à sua filha que a beleza do mundo implica a violência e a morte. O que não é mentira. Apenas, ele se vale desta verdade para justificar seus próprios crimes. Ele ensina a banalidade da morte, e assim sua aceitação. Ele aceita todas as mortes, inclusive as que ele mesmo realiza...
O paradoxo é que este pai monstruoso contribui para que sua filha tome consciência da necessidade de ultrapassar as noções de vida e de morte...
J.-C. B. - Sim, ele lhe ensina também o desapego. No fundo eles são muito próximos. A não ser pelo fato de que Isabelle ama, no sentido forte. Seu orgulho não existe mais.
No início do filme, Tessier, ele também, aprende de sua mãe uma estranha verdade. Antes de morrer, a mãe diz: “Eu descobri que a vida e a morte não são mais que situações particulares.”.
J.-C. B. - Ela diz isso a alguém que acaba de assassinar uma criança.
Reprovaram-lhe por ser cruel. Que sentido dá você ao sofrimento?
J.-C. B. - Eu creio que o sofrimento é útil como sinal de alarme. É provável também que nossos sofrimentos sejam o resgate de nossas cegueiras. A vida me ensinou que, quanto mais as pessoas são desfavorecidas, mais caro elas pagam por sua cegueira. Certas formas de cegueira que eu descobri depois de alguns anos me parecem como os privilégios de crianças mimadas que se tornam perigosas quando têm algum poder.
Há, a este respeito, uma cena impressionante, e mesmo chocante. A professora pede à Isabelle, a jovem deficiente, para que a olhe saltar, e para que desenhe o que vê. A ela que nunca poderá fazer o mesmo.
J.-C. B. - A professora talvez seja pouco hábil, mas na realidade ela é cruel. Ela está lá, brutal. Pode-se lamentar, chorar, revoltar-se. Isso não mudará nada, ela está sempre lá. A única maneira de ajudar Isabelle é provocar-lhe uma tomada de consciência, de seu corpo e de sua deficiência.
Isabelle bem sabe que é deficiente...
J.-C. B. - Sim, mas há uma diferença entre o fato de saber com a cabeça e o de saber no interior de si mesmo, em profundidade. Isabelle não tinha uma consciência clara, integral de sua deficiência. Ela o sabia na sua cabeça, mas todo o seu ser o negava.
Agora ela o sabe de três maneiras: porque ela vê a professora fazer o gesto, porque ela o desenha, e porque é dito. Há a realidade, a imagem, e o símbolo.
J.-C. B. - A partir daí, tudo pode começar.
Mas então o desespero amoroso de Isabelle, o sofrimento de uma mãe que vê seu filho assassinado, poderiam se reduzir a “sinais de alarme”?
J.-C. B. - É toda a questão posta pelo filme. Se Deus não existe, tudo é permitido. A vida é uma farsa ridícula e trágica. Se Deus existe, então somos nós que não sabemos ver. É nosso eu, nosso narcisismo, nosso orgulho que nos impede de ver a beleza do mundo, com tudo o que ela implica.
Visto que você escreveu o roteiro dos seus filmes, eu gostaria que você nos falasse sobre a sua maneira de inventar uma história. Parece-me que você parte de uma idéia abstrata?
J.-C. B. - Abstrata e emocional... Eu escrevi Um Jogo Brutal em um período de angústia muito grande. Havia primeiro, através desse estado emocional, um sentimento difuso da beleza fundamental da existência. Depois, tentei me elucidar e racionalizar. Claro, eu admiro muito os grandes romancistas russos - Dostoievski, Tolstoi - que escrevem romances filosóficos. Eles não tinham medo de expressar preocupações religiosas. Em Dostoievski, tem-se a impressão de uma abundância de coisas esfarrapadas, mas é a fusão delas que faz a grandeza.
A SANTIDADE NO CINEMA É PERTURBADORA
Você possui preocupações espirituais, místicas, as quais quase nunca vemos no cinema contemporâneo. Elas existiam há vinte anos. No momento, vejo-lhe muito só com relação a isso. Como você sente essa solidão?
J.-C. B. - De todo modo, sempre se está sozinho. Eu sei, a grande parte das pessoas imagina que não o é...
Há cineastas contemporâneos dos quais você se sente próximo?
J.-C. B. - Sim, Rohmer, por exemplo, que se pergunta: o que se passa por detrás do sonho, da decepção? Eu gosto de seus filmes porque eu descubro neles uma espécie de vazio total. Se eu ousasse fazer uma aproximação, eu diria, simplificando, que Isabelle, no meu filme, aparenta-se a numerosas heroínas de Rohmer quando tenta escalar a montanha: ela corre atrás das ilusões.
Você fez, para a televisão, no INA, um filme chamado As Sombras. Esses temas que giram em torno da cegueira e da lucidez, as sombras e a luz, parecem te preocupar. Como se você trabalhasse para ver claramente, para abrir os olhos...
J.-C. B. - Pode-se abrir os olhos dez mil vezes e não se ver nada.
De que visão se trata?
J.-C. B. - Como responder? ... (Um longo silêncio, laborioso.) Voltamos sempre ao orgulho. Ele possui uma função de integração social indubitável. Ele nos impede de ver. Em primeiro lugar os outros, mas sobretudo nós mesmos. Para mim, ver, é chegar a descobrir progressivamente a mim mesmo, então os outros, e então o mundo.
É por isso que você se exprime pelo cinema, mais que pela escrita?
J.-C. B. - Não, eu o faço no cinema porque eu tive a chance. É a única arte que eu conheço um pouco. Para mim, escrever é um suplício.
Você diria, como Godard: “O cinema é a emoção”?
J.-C. B. - Sim.
Mas Godard aceita sonhar. Dir-se-ia que você se defende do sonho, de fazer sonhar?
J.-C.B. - Você lembra, Godard citou André Bazin (em O Desprezo [Le mépris, 1963]): “O cinema substitui o nosso olhar por um mundo que corresponde aos nossos desejos.” Eu creio que o sonho nos ajuda a viver. Eu me pergunto se é possível fazer um cinema verdadeiramente lúcido.
O cinema estaria então condenado a nos enganar? Não poderia ele dizer a verdade?
J.-C. B. - Talvez seja o limite de todas as artes, não apenas do cinema. Quando Molière se torna realmente perturbador - em Le misanthrope ou Tartuffe -, a construção é fragmentada. Há alguma coisa que não funciona entre sua técnica e sua sinceridade, como se houvesse incompatibilidade entre as duas.
Hoje, por exemplo, falar de santidade ou de misticismo no cinema é radicalmente perturbador.
Por que?
J.-C. B. - Porque o espectador espera do cinema um prazer emocional narcisista. Imagine um filme que dissesse: Abandone tudo e seja eu... sem oferecer uma satisfação alucinatória...
Há um momento a partir do qual os místicos não podem mais transmitir sua experiência. É essa “passagem” que me interessa. Uma espécie de ponto-limite. Será que isto pode interessar verdadeiramente os espectadores? Será que certas “realidades” podem ser comunicadas por meio das artes?
Seu filme foi rotulado duas vezes, sob o slogan “sadocatho”. O que você pensa a respeito?
J.-C. B. Os jornalistas têm o direito de pensar e de escrever tudo o que eles quiserem.
Como você se situa com relação à religião?
J.-C. B. - Eu tive uma infância católica, ia à igreja, no catecismo. Eu me recordo da leitura que se fazia então dos evangelhos. Eu os reli recentemente, assim como eu reli muitos escritos de místicos de países, de religiões, de culturas, de épocas radicalmente diferentes. Os evangelhos, tais quais os reli, não têm nada a ver com o que aprendi quando criança. Eles são verdadeiramente perturbadores.
DO OFÍCIO
Sua trajetória pela profissão de cineasta é bastante singular. O que você pensa hoje desse “mundo do cinema”?
J.-C. B. - Após quatro ou cinco anos, eu tive a chance de poder evoluir em dois meios. Minha mãe era empregada doméstica. Eu fiz a Escola Normal, tornei-me mestre-escola, e então professor. Eu pertenço agora à pequena burguesia, mas continuo ligado ao mundo operário, onde tenho minhas raízes.
Então, quando descobri o meio do cinema, eu estava um pouco como Alice no país das maravilhas. Eu não gostaria de generalizar, visto que conheci também pessoas extraordinárias, mas o que caracteriza o maior número é o verniz. E a incompetência, incrustada atrás de que fraseologia!...
Um dia eu ouvi um realizador dizer ao seu operador de câmera: “Enquadre como você sente.”. Eu acreditei que ele estava a brincar. Mais tarde, eu percebi que isso era freqüente. Muitos “realizadores” não controlam nem o quadro, nem a posição de sua câmera. Eles não sabem onde colocá-la. Como eles não sabem também escrever seus roteiros nem seus diálogos, como no set eles não dirigem os atores, pergunta-se o que eles sabem fazer...
Há, no entanto, uma área do cinema onde é impossível trapacear: é aquela que se chama - como por coincidência com uma nuance pejorativa - “sucesso comercial”, a sanção do público.
Hoje, salvas algumas exceções as quais eu retomarei, a maioria dos cineastas, sobretudo na França, despreza o sucesso comercial. Eles preferem a “imprecisão artística”, a “arte-e-ensaio”, a obscuridade, o trompe-l’œil, tudo o que pode gerar ilusão. Quando não se sabe resolver os problemas elementares de narração, nem dirigir uma equipe, faz-se dessa forma e pode-se continuar a fazer filmes, mesmo se o público se entedia.
DO ESNOBISMO
Existem de qualquer forma cineastas honestos, sinceros e competentes, que fazem do cinema uma busca, e que correm o risco de não encontrar o grande público?
J.-C. B. - A busca não pode ser, aos meus olhos, algo além de uma superação das técnicas de narrativa clássica. Pode-se superar apenas aquilo que se possui perfeitamente. É muito raramente o caso na França. Mesmo os filmes de autêntica busca são demasiadamente cerebrais. Na maioria das vezes, eles não fazem nada senão refletir as tendências narcisistas de seus autores.
Eu fiquei triste e alarmado ao constatar que se chega, para dissimular sua incompetência, a proclamar que o tédio do público é um critério de qualidade. Inversamente, acusa-se aqueles que desejam agradar ou emocionar de serem os “caça-poltronas”...
Você não tem a impressão de que, quando ele se pretende de vanguarda, o cinema francês tem algumas décadas de atraso em relação às outras artes? Ele atravessa, um pouco depois, uma crise que a pintura, a literatura conheceram no início do século.
J.-C. B. - Mas, nos Estados Unidos, há quarenta anos, havia um cinema admirável. Na França, hoje, ou há Marguerite Duras ou Louis de Funès. Na América, nos anos trinta-quarenta, Faulkner - que era de algum modo a Marguerite Duras da época - escreveu os roteiros dos filmes de Hawks. Podemos imaginar Marguerite Duras, em 1983, escrevendo para Truffaut? Truffaut, eu não gosto de todos os seus filmes, mas ele busca. Ele agrada o público sem ser demagogo, o que é raro. Ele tenta encontrar a veia dos grandes cineastas que ele ama.
O que me desola - e que eu recuso - é o esnobismo em nome do qual um filme que alcança o sucesso deva ser considerado necessariamente estúpido e medíocre.
Se eu entendi bem o esnobismo, a “imprecisão artística” são confissões de impotência?
J.-C. B. - O mais difícil, hoje, na França, é fazer filmes que não sejam estúpidos e que possam tocar um grande público.
Quando Marguerite Duras faz um filme obscuro (eu não tenho nada contra ela), perdoamos-lhe tudo. Mostra-se seu filme em uma pequena sala, por muito tempo. Sabe-se que tocará um pequeno público.
Opostamente há os filmes lançados com duzentos, quinhentos milhões, um bilhão de publicidade. Mas o que acontece àqueles que não se beneficiam nem do terrorismo intelectual nem da exposição publicitária? Se ninguém os vai ver na primeira semana - e como se poderia ir, visto que deles não há informação? -, são tirados da programação. Como podem eles encontrar seu público? Eles não contam nem com o “boca-a-boca”, por falta de tempo, nem com a publicidade, por falta de dinheiro[8].
A CRIAÇÃO OU O ENSINO?
Você escolheu, portanto, o caminho mais difícil. E, o que é mais difícil ainda, você dedica apenas uma parte de sua vida ao cinema. Você quer ser cineasta e ao mesmo tempo continuar sendo professor?
J.-C. B. - Gosto muito do meu trabalho como professor por diversos motivos. Em parte porque, apesar de tudo, o mundo do cinema, que é agradável, é ao mesmo tempo difícil de nele se manter. Ele é com freqüência muito artificial. Há nele o lado da lei da selva. Além disso se é ligado às decisões do público, dos outros, e às vezes se é colocado muito à prova, como constatávamos anteriormente, quando não se é conhecido. Mas, sobretudo, o fato de continuar em contato com o que não é o mundo do cinema me permite avançar sobre os trilhos. O cinema é um mundo à parte. Ele atravessa uma grande crise. Ele está muito alheio a realidades. Eu tento, pelo meu trabalho, manter o contato com o real.
Dito isto, eu acho que a vida é mais apaixonante que o cinema... Mas eu não tenho certeza. Então, eu corrijo: a vida é tão interessante quanto o cinema.
Declarações recolhidas por
Jean-Paul Clergeot, Jean Collet e Olivier Mille
Notas:
[1] Ver nossa crítica de Um Jogo Brutal em Études, outubro de 1983.
[2] Jean-Claude Brisseau conhece a violência cotidiana dos grandes conjuntos residenciais. Se seu primeiro filme profissional (A Vida Como Ela É, rodado pelo INA em 1978) jamais foi lançado nas pequenas ou grandes telas, é porque ele lança sobre essa violência tão próxima um olhar terrivelmente justo, portanto insustentável.
[3] Um Jogo Brutal traz como epígrafe uma citação de Irmãos Karamazov: “Écoute, je me suis borné aux enfants pour être plus clair. Je n’ai rien dit des larmes humaines dont la terre est saturée, abrégeant à dessein mon sujet.” (“Escute, limitei-me às crianças para ser mais claro. Eu nada disse das lágrimas humanas das quais a terra é saturada, abreviando voluntariamente o meu discurso.”).
[4] O Instituto de Altos Estudos Cinematográficos é, na França, a “grande escola” de cinema.
[5] A Vida Como Ela É, 1978.
[6] Inacreditável, mas verdade. Tudo isso - esse horror cotidiano que a mídia quer ignorar até que um drama como aquele de julho passado vira notícia - Jean-Claude Brisseau teve a oportunidade de narrar ao microfone da France-Culture, no decurso de seis emissões de Jean-Claude Bringuier (Nous tous chacun, durante os dias 23, 24, 25, 28, 29 e 30 de setembro de 1981).
[7] Na mesma época o menor documentário de televisão, com uma duração de 45 a 50 minutos (no lugar de uma hora e meia), custava mais de 25.000 F: mais de dez vezes o orçamento deste filme de ficção...
[8] Quando quisemos gravar esta entrevista, pouco antes do lançamento de Um Jogo Brutal, Jean-Claude Brisseau não achava que estava sendo tão certeiro, infelizmente! Neste outono, fortunas foram consagradas a lançar filmes que, de todo modo, não conseguiram encontrar um público. Um Jogo Brutal teve muito pouca publicidade, desajeitada. Em seguida foi retirado das salas, no momento em que o público começava a vir, depois de uma semana. Dupla aberração, desastrosa para todos.
(Études, novembro 1983, pp. 495-506. Traduzido por André Barcellos)
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