O VENTO SOPRA AONDE QUER
Entrevista com Jean-Claude Brisseau, por Thomas Bourguignon, Olivier de Bruyn & Gérard Legrand


O quê você fez entre Boda Branca e Céline?

Eu fui surpreendido pelo sucesso comercial de Boda Branca, sobre o qual me questionei, mas não o compreendi. Foi necessário fazer a sua promoção, um pouco na França, mas sobretudo no estrangeiro, o que exigiu bastante tempo. Em seguida, o pessoal de Cinéma, cinémas[1] me encomendaram uma pequena produção de doze minutos. Eu imaginei que o trabalho me tomaria quinze dias, mas acabou se estendendo por muito mais tempo, quase quatro meses. Além disso, eu escrevi outras coisas: envolvem a preparação de um filme sobre a Indochina e dois outros roteiros.

Nos seus filmes precedentes havia uma dimensão social preponderante. Em Céline esse aspecto é ausente. Por quê?

É verdade, havia uma dimensão social, e o importante é saber em que contexto ela se inscrevia. Eu sempre pensei e disse que O Som e a Fúria não era um filme naturalista. Eu queria dar a ele uma dimensão universal. O roteiro foi escrito a partir de coisas reais que, foi-me dito, tomam propriamente hoje uma relevância propriamente aterrorizante. O que havia em O Som e a Fúria veio a se tornar a realidade cotidiana. Mas o que me interessava, sobretudo, nesse filme, eram os problemas da moral e, em primeiro lugar, um dos aspectos do problema do mal. Eu situei a ação no “aqui e agora”, mas ela poderia ter sido posta em uma outra época.

Em Boda Branca a dimensão social não era tão importante. A jovem garota ser uma ex-prostituta que aos doze anos se drogava não significa que o social me interessava. O apaixonante era acompanhar essa garota que aos dezessete já perdera todas as ilusões sobre a vida que no geral ainda se têm com essa idade.

Em Céline eu coloquei as interrogações que são as minhas, sobre o mal, o sofrimento, a miséria, a morte, mas de uma maneira mais específica. Eu abordei frontalmente os temas que já estavam latentes nos meus três filmes precedentes.

Em O Som e a Fúria você estava de alguma maneira à frente do seu tempo.

Não à frente do meu tempo, mas à frente dos meios de comunicação. Se eu tivesse mostrado a verdadeira violência dos subúrbios, o filme não poderia ser exibido. Lembre-se de que a origem deste filme remonta a 1974-1975. Já faz mais de quinze anos!

Temos a impressão, no início de Céline, de encontrar a Mathilde do fim de Boda Branca.

Sim e não. Em Céline eu deliberadamente escolhi uma personagem que não tem nada de frágil.

No entanto, no início do filme, ela se encontra na completa miséria, ela tenta se suicidar.

Sim, porque naquele momento ela atravessa uma crise. A personagem de Mathilde em Boda Branca podia ser tocante, enquanto que eu deliberadamente fiz Céline menos espontaneamente tocante. Geneviève, a enfermeira, em última análise o é mais.

Apesar de um começo muito duro, este é talvez o seu filme mais sereno. Os outros tratam do mal, enquanto temos a impressão de que este fala do bem.

É possível, apesar de que ao fim de O Som e a Fúria - pouca gente o entendeu - já havia uma significação que, fundamentalmente, não era diferente da de Céline.

Este filme é desprovido de toda violência, há um lado humanista, uma espécie de olhar terno sobre os seres. Isso está em mim, e eu penso que já era sensível nos filmes precedentes. Dito isto eu não queria absolutamente, em Céline, refazer o que eu já havia feito. Não se esqueça de que o assunto aqui é a transcendência, a metafísica, a presença possível de um Deus. A violência é, portanto, interior, subterrânea. Mas há ainda assim uma dureza bastante aguda; não é sobre a personagem que ajuda os outros de modo desinteressado (Geneviève, a enfermeira) que tomba a metafísica! Não é sobre a virtuosa, é sobre a outra. Aquela que foi criada pelos ricos, que é tocada como se as desigualdades sociais não cessassem jamais.

Deus dá àqueles que têm, e tira daqueles que não têm?

Pode-se colocar a questão, sim.

Ainda assim temos a impressão de que Céline começa onde terminam os filmes anteriores. Em O Som e a Fúria, Bruno morria. Em Boda Branca, era Mathilde. E este começa pela vontade de morte de Céline, mas o assunto é a transcendência que leva à fé; o filme parece talvez mais otimista.

Sim, Céline descobre a fé ao fim do filme. Mas otimista: sim e não. O sentido do travelling-in que fecha o filme (em direção à janela que desvela a natureza), você pode ver aí a vida, como muitas pessoas, mas também a aceitação da morte na vida e, a partir de então, uma felicidade talvez seja possível, mas somente após isso. É muito ambíguo. O filme implica uma reconciliação com a vida, a qual, porém, inclui a morte.

Como você escreveu o roteiro? Foi a partir de uma vivência pessoal, de experiências espirituais, de leituras?

Eu não me encontrei a seis metros acima do chão como Céline! Eu tentei entrar em contato com as pessoas que chegaram a isto, mas infelizmente elas são dificilmente contatáveis... São coisas que me interessam há muito tempo, eu tinha o assunto em mente há cerca de quatro ou cinco anos. Tomei uma trama que já estava nos filmes anteriores e fui até ao limite. Havia elementos sobrenaturais na origem de Um Jogo Brutal.

Na verdade, eu retomei aqui os elementos pelos quais me repreenderam aqueles que gostaram de meus filmes anteriores. Assim o fiz com o propósito de esclarecer as coisas de uma maneira diferente. As fontes de inspiração são igualmente os testemunhos que eu recolhi, e, mais especificamente, os de Santa Teresa d’Ávila.

Há atualmente um retorno nítido à espiritualidade. Você não pensa que o seu filme responde a uma tendência?

Foi o que me disseram, eu fiquei muito surpreso quando mostrei o roteiro - eu levei este filme à frente por razões pessoais e não pensei que ele interessaria. Disseram-me que eu arriscava cair no ridículo absoluto, mas ao mesmo tempo eu me dei conta de que o assunto suscitava um real interesse. Depois que eu mostrei o filme percebi que as pessoas se sentiam concernidas, principalmente as mulheres. Dito isto, o filme não trata da parapsicologia, e a evolução espiritual real da personagem ocorre somente a partir do momento em que os fenômenos acabam.

Em O Som e a Fúria as aparições lhe foram muito censuradas. Aqui você vai muito mais longe, cada etapa do caminho de Céline encontra a sua materialização sobre a tela: desdobramento, levitação, projeções interiores etc.

Esses fenômenos não são o misticismo. Eles não atestam uma profundidade espiritual. Pode aí até mesmo haver antagonismo. Quando você lê o Novo Testamento, você se apercebe de que Cristo rejeitava esses fenômenos, eles existiam independentemente da sua vontade. A personagem de Céline, ao fim, pede que isso cesse. Exatamente como o pediu Teresa d’Ávila. Essas manifestações são perigosas porque elas acariciam o orgulho e podem, portanto, afastar-se da verdadeira espiritualidade. No filme elas intervêm porque a heroína perdeu tudo e recomeçou do zero. É a partir do retorno à humildade, quando ela se torna a “serva” de Geneviève, que tudo começa.

Essas manifestações não são mais que etapas em direção ao caminho. O caminho, ele mesmo, começa depois.

Imagino que serei atacado por isso, mas eu não faço filmes para agradar a todo o mundo. Se eu tivesse feito O Som e a Fúria cinco anos antes, eu talvez tivesse que passar por um desastre crítico. Quando ele foi lançado houve numerosos problemas, sobretudo da parte da classe política. Mais geralmente, eu tento nos meus filmes não me esquivar das coisas que podem ser um pouco perturbadoras. No cinema se faz freqüentemente o contrário, principalmente no cinema francês no qual se opera sempre por alusões discretas. É quase sempre um cinema de “boa companhia”. Eu me sinto muito distante disso. A este respeito eu sou mais anglo-saxão. Ir ao fundo das coisas com a maior sinceridade, é isso o que tento fazer. Eu não quero ser acusado por fraude. O mesmo para o estilo, você não pode fazê-lo “estetizante” ou “agradável” ou “bonitinho” com tal assunto. Isso prejudicaria a coerência da construção.

Você dava, portanto, instruções bastante estritas ao seu diretor de fotografia para evitar o lado “estetizante”?

Sim, nós optamos por uma fotografia que fosse bela de se ver, sem que fosse amaneirada. O princípio foi o da maior simplicidade em todos os domínios: movimento de câmera, trucagens etc. De todo modo isso era inevitável, tendo em vista o orçamento. Todas as pessoas foram pagas, e muito melhor do que em outros lugares, e este talvez seja o filme que custou menos caro no cinema francês!

Foi você que o produziu?

Sim, eu era o produtor executivo, era por mim que passavam os cheques!

Para o seu próximo filme você continuará na produção?

Sim, eu me dei conta de que a verdade no cinema é que aquele que paga é quem tem o poder.

Qual foi o ponto de partida do roteiro?

Ele foi duplo. O primeiro, como eu lhes disse, foi a retomada de temas já inscritos nos filmes precedentes. O outro é que, desde o seu início, o homem possuiu crenças religiosas. Estas crenças: são elas ligadas a mecanismos de compensação diante da angústia da vida e da morte, ou os homens sempre tiveram mais ou menos a intuição, ligada ao contexto sócio-cultural, de alguma coisa outra? A escrita do roteiro se volta a essa interrogação.

É por isso que o filme começa com a evocação dos faraós, e depois dos Incas... com o jovem paralítico que constitui de algum modo um contraponto ao caminho de Céline?

Sim, o garoto paralítico está visivelmente buscando uma compensação. Ele diz: “Eu preferiria viver naquela época.”.

Sua paralisia metaforiza a condição humana?

Era já esse o caso em Um Jogo Brutal. Eu penso que nós todos somos enfermos. Absolutamente. Essa é a minha visão dos seres.

No filme temos a impressão de que os homens são mais distantes de Deus do que as mulheres.

Não necessariamente. O médico se pergunta, da mesma maneira que Geneviève, por que aquilo acontece a Céline. Não há separação específica entre os homens e as mulheres. Eles não são fundamentalmente diferentes. O ponto de vista de Geneviève - que tem talvez uma forma de espiritualidade que se traduz em atos - é aquele de qualquer um que possui sentimentos. Ela não tem verdadeiramente preocupações espirituais.

Há uma grande humanidade nela.

De fato.

Em Gérard, o médico, esse aspecto não tem lugar. Isso é realmente uma coincidência?

Quem lhe disse que ele não possui essa humanidade?

Ninguém, mas ela não transparece pela tela.

Mas sabemos que ele ajudou Geneviève. Ele poderia se contentar se beneficiando em cima dela. Eu me limitei a essas duas personagens centrais: Céline e Geneviève. Lembro-me de que em O Som e a Fúria eu fui censurado por ter feito um filme masculino demais, entenda-se machista. Vão sem dúvida me censurar pelo contrário aqui. Eu não integrei um personagem masculino ao lado de Céline porque eu queria mostrar alguém que estivesse dissociado de todos. E mais, eu voluntariamente coloquei poucos personagens no filme. Como Céline cria o vazio ao redor dela, era necessário que eu o fizesse no nível dos personagens, para não conservar mais que o essencial. Se estivermos atentos, nos daremos conta de que o filme está sempre no limite da abstração. Eu adotei esse princípio para tudo. Homem ou mulher, isso não possui uma significação particular. A não ser o fato de que eu escrevo mais facilmente para as mulheres.

A idéia geral é a do desapego. Em Boda Branca era o itinerário de um professor de filosofia que, aos cinqüenta, tem o sentimento da derrisão da existência, ele espera outra coisa além da sua prisão dourada, e cai apaixonado por seu duplo - sua aluna. Ao fim, ele entende que a providência lhe enviou o que ele esperava, sob a forma de um anjo exterminador - a fórmula veio, por sinal, da Positif, e eu a utilizei sistematicamente, pois a achei bastante justa. Se o personagem interpretado por Cremer passa “ao largo”, é em parte porque ele estava muito apegado sentimentalmente.

Em Céline eu escolhi uma mulher porque elas têm em geral uma via emocional mais rica que a dos homens. Estes últimos são feitos para serem generais ou irem para a Lua, as mulheres para serem enfermeiras! Eu esquematizo, está claro, eu caricaturo.

O que me interessa no misticismo é se desapegar de todos os mecanismos que fundam as afeições e que desencadeiam o sofrimento. O sofrimento nasce do apego. Este já era o tema de Um Jogo Brutal.

Céline faz portanto uma regressão quando volta a ajudar a enfermeira ao fim do filme.

No meu espírito, sim, ela faz ao menos um desvio.

Ao mesmo tempo você não o filma como um desvio; essa cena expressa uma grande humanidade.

Efetivamente, mas isso faz parte das minhas ambigüidades. Não posso lhe dizer que tenho respostas para tudo. Bem que o gostaria.

Há uma espécie de sincretismo no filme, você mistura todas as religiões. Por que, ao fim do filme, você envia Céline ao convento?

Porque ela se encontra em uma cultura cristã. Se ela fosse judia ou hindu, isso seria diferente. O essencial é a descoberta de que ela não é mais nada. Ela encontra a força da obediência, suas autoridades superiores a enviam ao fim do mundo para aliviar a miséria. Quanto a ela, ela não é mais que um objeto, um receptáculo vazio.

A natureza é igualmente muito presente: as árvores, os bosques, o vento, sobretudo.

Nós tratamos o vento quase como um personagem, e eu sempre tento tratar as relações interiores/exteriores dando-lhes um sentido. A natureza permite relativizar o destino individual ao inscrevê-lo num conjunto muito mais universal: ela devolve o homem a uma certa humildade. Eu sou sempre desafiado pela ausência de resposta que o universo nos dá. Temos um conhecimento científico que deveria, a priori, nos permitir conhecer melhor o universo, mas o fato é que não conhecemos nada a fundo, ele continua furtivo. Eu queria dar a impressão de uma presença impalpável. Isso não é tão fácil, eu trabalho.

O vento não seria em Céline uma equivalência visual da frase: “O vento sopra aonde quer”?

Eu quis intitular o filme assim. Abstive-me, mas é verdadeiramente o sentido do filme.

A música de Céline é bastante lírica, como o vento, de fato.

A trilha sonora é primordial. Nas escolas de cinema só se fala da imagem. No entanto o cinema é também a trilha sonora. Um dos cineastas mais idolatrados pela crítica, Godard, é um dos que utilizam ao máximo a trilha sonora, a música. Seu trabalho é enorme.

Eu utilizei a música como uma exaltação lírica “em descompasso”. Um lado sideral em relação (ora de distância, ora de proximidade) com o ponto de vista da enfermeira.

Ao escolher Delerue, você pensou nos outros filmes para os quais ele fez a música?

Não. Eu gosto muito da música que ele compôs para O Desprezo (Le mépris, Jean-Luc Godard, 1963), Atirem no Pianista (Tirez sur le pianiste, François Truffaut, 1960) ou para Terei o Direito de Matar? (L’insoumis, Alain Cavalier, 1964), mas é uma coincidência. Delerue havia escrito esta música para uma série televisiva, Tours du mond, tours du ciel (Robert Pansard-Besson, 1991): eu fiz a experiência de colocá-la sobre as imagens do filme e isso funcionou. Eu aproveitei assim para render uma discreta homenagem à emissão da qual lhes falo.

Há aí igualmente uma homenagem a Teorema de Pasolini: a levitação, o deserto? Pasolini disse: “Nada mais do que o puro necessário, a terra, o céu, e um corpo de homem.”.

Não, eu não havia pensado nisso. Eu me lembro da cena em que Terence Stamp se despe em uma estação. Mas, porque Pasolini se define como cristão e marxista, no âmbito da filosofia há relações. Seja como for, quando se toca em um certo número de temas, circula-se necessariamente ao redor dos mesmos elementos. O abandono de si mesmo obrigatoriamente foi abordado por outros além de mim.

Você foi até o Egito para filmar o deserto?

Não. Até a duna de Pyla! Era preciso permanecer num quadro orçamentário modesto e simples. Essa simplicidade estava na base do filme. Eu queria ir até à África, mas eu abandonei a idéia: problemas políticos além da conta.

A mise en scène tão depurada de Céline organiza perfeitamente as questões metafísicas do filme. Qual foi o seu trabalho específico sobre a montagem? Há raccords bastante impressionantes, por exemplo: quando Céline anuncia sua partida a Geneviève, temos a impressão de uma nova aparição.

Eu tentei dar a impressão de que certos elementos os mais cotidianos podiam aparecer como sobrenaturais e vice-versa. Para mim, a mise en scène inclui a montagem. Há duas escolas de montagem. Uma considera que, se o roteiro é bom, deve-se obedecer estritamente a ele na montagem, e a outra, para a qual a montagem tem um modo autônomo de funcionamento, uma respiração. Quanto a mim, eu pertenço mais a esta última escola. O cinema possui sua própria lógica emocional. O que é escrito e o que é filmado não são a mesma coisa. O que disse Godard em O Desprezo é uma evidência. E eu prefiro eu mesmo montar meus filmes, mesmo que por ora Lisa me ajude. (NDR: Lisa Hérédia que interpreta Geneviève no filme.).

Enquanto filma você pensa constantemente na montagem?

É evidente. Eu jamais vejo os copiões, mas quando eu coloco os atores em suas marcações, desde então eu penso na montagem.

Uma das razões pelas quais eu prefiro fazer tudo é que, quando eu começo um filme, eu reflito: “Você possui tais meios, o que você pode se permitir e o que você vai fazer com o filme?”. Tudo está subordinado, e isso inclui a montagem.

Você continua trabalhando como quando você fazia cinema amador. A improvisação tem uma parte importante nos seus filmes?

Sim, às vezes, mas é sempre uma improvisação guiada. Dificilmente eu posso me permitir isso em um filme como Céline, na medida em que o destino das personagens deve se inscrever no sentido de uma mecânica “em marcha” (daí a importância da montagem). É por isso que meus filmes são tão elípticos, as histórias que eu conto evoluem tão rapidamente. Eu o faço deliberadamente, não por medo do assunto. É menos o naturalismo e a identificação o que me interessa do que a mecânica que, fatalmente (mas o termo não me convence), enreda os personagens.

A música lhe permite acelerar suas histórias?

Sim, certamente. Em Boda Branca, o tema era o desapego que Cremer não conseguia. Contrariamente a Mathilde, ao fim, ele passa ao largo do essencial. A música, um pouco sentimental, remetia a isso. Ela abrange em um minuto o que teria levado vinte minutos para ser mostrado, explicado. Há a mesma coisa em O Diabo Feito Mulher (Rancho Notorious, 1952) de Lang. Ao início do filme há uma compactação que evita o falatório. Em Céline a música mostra o lirismo sobre a vida, a amizade, o tempo que passa, tudo o que é incompatível com o recuo metafísico do filme. É prático.

A escolha de Isabelle Pasco impôs-se a você desde a escrita do roteiro?

Não, eu a encontrei por coincidência e achei que ela correspondia. Seu aspecto “robusto” me agrada. Quando eu vi os retratos de Santa Teresa d’Ávila eu me dei conta de que não me era necessário um físico muito “delgado”. Além disso, ela não é exatamente adorada no meio, e isso me incitou ainda mais a escolhê-la. Exatamente como foi com Vanessa Paradis em Boda Branca.

Há outros atores de imagem “negativa” com os quais você gostaria de trabalhar, mesmo pessoas de fora do cinema?

Sim, no meu próximo filme provavelmente estará Sylvie Vartan. Eu desejo muito trabalhar com ela. Eu também gostaria de filmar com Delon, mas isto é mais delicado. Em geral eu prefiro as pessoas que jamais tenham atuado no cinema, elas são mais dóceis, e não se sustentam ainda como atores.

Os doentes de Céline são reais?

Sim, eu não queria atores para interpretar a doença.

O papel de Isabelle Pasco é especialmente delicado, bastante físico e com poucos diálogos. E seu texto é frequentemente muito literário.

Exato. Em Céline há poucos diálogos, muito menos que nos filmes precedentes, uma forma bastante silenciosa. Eu gosto que as coisas passem pelos olhares. Eu o aprendi assistindo a filmes americanos, Amor na Tarde (Love in the Afternoon, Billy Wilder, 1957) ou O Homem do Oeste (Man of the West, Anthony Mann, 1958), por exemplo. Um olhar bem utilizado permite suprimir linhas inteiras de diálogo. Os americanos me ensinaram e isso é fundamental.

O “efeito Kuleshov”?

Não somente, mas, efetivamente, com Vanessa Paradis em Boda Branca, eu usei esse efeito. A relação de identificação do público com ela foi muito ambígua. Havia uma dificuldade tremenda. Ao fim do filme, devíamos ser surpreendidos, mas era necessário que, retroativamente, a considerássemos sincera, enquanto muitos podiam pensar que ela era uma puta. Era preciso que ela utilizasse suas próprias palavras, ou que ao menos desse tal impressão sobre textos bastante complicados. Ela errava às vezes, quando então utilizei o “efeito Kuleshov”. Um de meus grandes arrependimentos em relação a este filme é ter empregado esse efeito, porque ela é perfeitamente capaz de prescindir dele, ela poderia vir a ser uma vedete do cinema francês, e até mesmo do cinema internacional.

Com Isabelle Pasco, como havia poucos diálogos, você não teve que utilizar este efeito.

Bem menos.

Para a cena de levitação você teve problemas?

Sim, mas nós tivemos muitos ensaios. Em geral, quando você trabalha com atores, eles se interessam pelo tamanho do texto que precisam interpretar. Na América não se passava o mesmo. Por exemplo, Errol Flynn, em Um Punhado de Bravos (Objective, Burma!, Raoul Walsh, 1945), ou Gary Cooper, não tinham muitos diálogos em seus filmes, salvo em Capra para Cooper, é claro.

Os atores franceses com freqüência cometem o erro de crer que o personagem que fala é o mais interessante. Quanto a mim, eu me concentro muitas vezes sobre aquele que escuta, dou a ele “uma partitura” de gestos e de olhares. É preciso aprender a atuar sem falar. É isso o cinema.

Em tudo isso reside uma desconfiança em relação à linguagem, à explicação psicológica.

Sim, quanto mais explicações se dá, menos forte se é. É sempre mais interessante deixar livre o espectador. Contrariamente à impressão que eu posso dar, eu detesto impor meus paradigmas.

Este é o seu filme mais visual. Um pouco como com os objetos em Um Condenado à Morte Escapou, há em Céline um grande rigor em relação à natureza para exprimir uma transcendência.

É bem possível. Eu tenho muita admiração por esse filme. Eu o vi quando tinha doze anos, no Gaumont Palace, o filme foi então percebido como um suspense à Hitchcock. Havia cinco mil lugares e estava lotado!

Os filmes de Bresson influenciaram-te?

Não conscientemente. Eu amo enormemente seus filmes dos anos cinqüenta. Seu período entre As Damas do Bois de Boulogne (Les dames du Bois de Boulogne) e O Processo de Joana d’Arc (Procès de Jeanne d’Arc) me impressionou muito. Mas quando eu faço um filme eu não me coloco esse gênero de questões; de todo modo, não há em Bresson elementos fantásticos como em Céline. Eu jamais me coloquei a questão da proximidade com este ou aquele. Se há uma influência, ela é inconsciente. É muito mais prosaico: eu tenho um problema concreto, como vou fazer para resolvê-lo. É a partir dos elementos de mise en scène (gerais: música, locação...) que eu vejo como eu vou proceder, não com referências. Eu me digo também que se eu começo um filme de uma certa maneira, eu devo seguir assim até o final.

Os únicos com relação aos quais eu talvez tenha me colocado a questão são Hitchcock ou Ford, mas é um outro problema. Como se dão as relações entre planos, por exemplo; mas no que concerne ao estilo, eu não vejo influências. Ademais, eu não posso me comparar aos grandes mestres.

No entanto o filme faz pensar em Hitchcock: na alternância entre planos próximos e panorâmicas, como o carro que viaja na estrada.

Há muito disso em Ford também. O mesmo para as imersões do ser no universo. Esta é, nele, uma das coisas que em mim fez mais efeito. Em Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, 1946), um velho senhor vem dizer adeus a Dick, a diligência parte, e brutalmente há um enorme plano geral sobre o minúsculo veículo que avança no deserto: é a sorte dos humanos que advém derrisória na imensidão. Mas, para Ford, isso é muito mais fácil do que para nós, por uma razão simples, a de que uma viatura no deserto necessariamente parece pequena. No contexto de Céline isso era muito mais difícil: nós não temos o deserto!

Como você escolheu o lugar da ação do filme?

No início, ao acaso, depois por um trabalho de pesquisa bastante minucioso. Eu o fiz sistematicamente de bicicleta ou a pé. De carro tudo passa muito rápido, não se tem tempo. Quando se faz uma pesquisa de locação, deve-se pensar em todos os parâmetros: posicionamento da câmera, disposição dos membros da equipe técnica... Em O Som e a Fúria eu fiz um mau trabalho ao escolher rodar em Sacré-Coeur. No momento da pesquisa não havia ali um gato, depois, quando fomos filmar, um ônibus passava a cada dez minutos. Impossível trabalhar, foi preciso encontrar outro lugar imediatamente. Fazer uma pesquisa de locação é verdadeiramente um trabalho delicado! Mesma coisa para os travellings: é necessário ter a certeza de que o solo é plano! Eu não tenho o direito de me fixar, tendo em vista os meus orçamentos.

Você é atípico em relação aos profissionais do cinema francês. Há, mesmo assim, autores recentes dos quais você se sente próximo ou dos quais, mais simplesmente, você gosta dos filmes?

Eu prefiro que você não me coloque esta questão. Para permanecer objetivo, eu não vou entrar nesse jogo. Eu prefiro responder sobre cineastas de vinte anos atrás, é mais fácil! Mesmo quando tomamos os maiores, Hitchcock, Ford, eles não fizeram nada além de grandes filmes (Hitchcock foi sem dúvida o mais brilhante metteur en scène). Entre os cem filmes de Ford, quantos deles são grandes filmes? Enquanto nós, que não fizemos mais que cinco, dez ou quinze filmes... Numa média de um a cada dois anos, para chegar aos pés dessas pessoas! O grande problema do cinema é que ele exige de todos nós uma grande humildade.

Há cineastas que não dizem coisas fundamentalmente diferentes, Tavernier ou Chabrol, por exemplo. De algum modo, eu me esforço para lhes render homenagens discretas em meus filmes. Em O Som e a Fúria há quatro linhas de texto copiadas integralmente de O Açougueiro (Le boucher, 1970). Eu pedi a autorização a Chabrol. Quando François Négret arremessa as suas garrafas é também uma homenagem ao Sargento York (Sergeant York, 1941) de Hawks.

Mas o que me interessa é fazer filmes pessoais com diferentes orçamentos. Para Céline, após o sucesso de Boda Branca, todo mundo me pressionou para realizar uma grande produção. Esse sucesso me surpreendeu muito. Eu não escolhi Vanessa Paradis para conseguir ingressos. As pessoas têm a memória curta. À época, todo o mundo a detonava. Eu a tomei como uma desconhecida, simplesmente porque ela era adequada ao cinema. Eu tento fazer “coisas” que não são fáceis, mas que resguardam ainda assim o contato com o público. Este filme é para mim completamente experimental. É muito “arriscado”, mas eu continuarei a fazer os filmes que eu desejo fazer.

Isto subentende que seu próximo filme será mais “fácil”?

Eu ainda não sei. Eu desejo fazer dois, rodar um após o outro, depois as duas montagens ao mesmo tempo. Um será mais sob a óptica de O Som e a Fúria e o outro... será outra coisa. Eu quero fazer uma trilogia sobre os problemas da paixão, da qual este poderá ser a segunda peça. Eu não posso dizer muito. Dizemos que vamos fazer uma coisa, e a realidade é outra. Mas eu não quero entrar na espiral das grandes produções onde necessariamente se excedem os orçamentos.

Em todos os seus filmes há relações de dominadores-dominados, e a cada vez o aluno se emancipa do mestre.

Sim, eu não o faço deliberadamente. Mas estas são as coisas que retornam. O último filme é um resumo temático dos três precedentes. Eu tinha consciência de estar fazendo um filme que abordava frontalmente os mesmo temas de anteriormente. É, portanto, lógico que haja coisas similares. Nós somos sempre atormentados pelos mesmos problemas. Ainda assim, a maneira de abordá-los difere. Em Céline não há a escola.

Há, sim, quando vemos Céline pela primeira vez.

É verdade, eu havia esquecido.

Isso não foi consciente?

Não, simplesmente quando eu vi o lugar havia ali uma escola. Era necessário que imediatamente, sem dramatizar, houvesse o sentimento de angústia de Céline. Eu não tinha tempo para me deter ali, a idéia de crianças que zombam de alguém revelava isso muito rapidamente.

Nota:

[1] Cinéma, cinémas foi um programa televisivo transmitido pelo canal Antenne 2 de janeiro de 1982 a novembro de 1991, produzido pelo realizador Claude Ventura, a jornalista Anne Andreu e os críticos Michel Boujut e André S. Labarthe (n.d.e.).

(Entrevista realizada em Paris nos dias 8 e 9 de fevereiro de 1992. Positif n° 374, abril 1992, pp. 16-21. Traduzido por André Barcellos)

 

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