ENTREVISTA COM JEAN-CLAUDE BRISSEAU
Em Céline parece que você se apega a temas já presentes em filigrana em Um Jogo Brutal e Boda Branca, e que desta vez você situa no centro do filme o elemento feminino e a aspiração mística.
Na minha cabeça Céline era a princípio um filme experimental, no qual eu queria retomar certos temas dos meus filmes precedentes para abordá-los de maneira frontal. Há semelhanças entre a personagem de Vanessa Paradis em Boda Branca e a da pequena Emmanuelle Debever em Um Jogo Brutal. Mas a partir do momento em que alguns aspectos já haviam sido tratados nestes filmes eu não tive vontade de voltar a eles uma vez mais, e é, principalmente, o “resto” aquilo que eu aqui amplio: tudo o que se encontra na segunda parte de Céline. Entretanto já existiam, na primeira versão do roteiro de Um Jogo Brutal, coisas no limite do fantástico, do místico, mas que foram finalmente retiradas.
Você quis fazer desta vez um filme inteiramente fantástico?
O termo “fantástico” não é suficiente. Isto levanta um problema: em que gênero classificar um filme assim? Não é algo evidente. E disto eu já estava consciente quando escrevi o roteiro, já faz cinco anos, e pensei que um assunto assim não interessaria estritamente ninguém. Eu não queria utilizar o dinheiro de outros, nem do estado, num empreendimento tão arriscado, e foi necessário o sucesso comercial e totalmente inesperado de Boda Branca para que eu pudesse fazer Céline. Eu não soube até a CNC publicar as estatísticas, mas Boda Branca foi o segundo sucesso comercial francês de 1989, depois de Linda Demais para Você (Trop belle pour toi, Bertrand Blier, 1989). Como eu tinha uma parte dos benefícios, eu pude pensar em eu mesmo financiar Céline. Quando se vê os créditos, tem-se a impressão de que muita gente colocou seu dinheiro no filme, mas na realidade não houve quase ninguém. Trois Soficas colocou um milhão ao todo, e o filme paradoxalmente custou um pouco mais caro do que o previsto. A princípio ele seria financiado metade pela Films du Losange e metade por mim, mas quando eu saí da Losange, a Gaumont se ofereceu para substituí-la, e eu aceitei. Eles me deixaram fazer exatamente o que eu queria, ao passo que este não é um filme especificamente para a Gaumont...
Você não buscou, portanto, tirar vantagem de seu sucesso com Boda Branca seguindo numa mesma trilha, e assinou um filme talvez ainda mais pessoal.
Não se esqueça de que Boda Branca era uma encomenda, e que foi escrito antes da filmagem de O Som e a Fúria. Era uma encomenda para La Sept que ainda não existia de fato, deveria ser um telefilme que eu acabei não podendo fazer. Finalmente ninguém queria produzi-lo porque achavam que os diálogos eram complicados demais. Foi necessário o sucesso de O Som e a Fúria para que eu pudesse fazê-lo; a partir daí eu tive o dinheiro sem problema. Quando eu encontrei Vanessa Paradis, três semanas antes da filmagem, eu a via como uma desconhecida, e ela se adequou exatamente à personagem. Ela não tinha nada a ver com a imagem que eu fazia, nem com a que o público tinha dela. Àquela época, eu me dei conta de que ela era detestada pelas pessoas, sobretudo os jovens e as mulheres a odiavam. Isto, acima de tudo, me fez decidir por escolhê-la para o filme: quando eu vejo que existem pessoas que têm uma opinião tão negativa acerca de qualquer um, isto me leva sempre a ter uma reação inversa e a escolhê-lo. Além disso eu a escolhi porque esta garota tem muito talento para o cinema.
As mesmas razões o levaram a escolher Isabelle Pasco para o papel de Céline?
No que diz respeito à personagem de Céline, trata-se de outra coisa. Era um filme de alto risco. Eu tive um problema de casting quando eu me dei conta de que a única maneira de tornar a personagem crível era saindo do clichê. Geralmente, este tipo de personagem é interpretado por pessoas muito robustas, por isso me interessou chamar uma garota “como todo mundo”, até mesmo um pouco garota mimada, em um primeiro momento. Quando eu encontrei Isabelle, eu me disse “por que não?”, ela fazia parte do desafio do filme. No início, como eu quase não tinha utilizado o dinheiro de ninguém, eu queria um filme cuja estrutura técnica fosse quase amadora: por um certo número de razões eu não o pude fazer. Então eu me impus a regra de trabalhar com coisas que eu não havia desejado, tentando a cada vez lhes dar um sentido. Os décors, bastante exíguos, estavam previstos para um pequeno filme intimista, com um equipamento e iluminação leves. No fim das contas eu não pude fazer o filme sem um equipamento pesado, em locais que não estavam previstos para este tipo de equipamento, e de minha parte o exercício foi o de recuperar estes elementos lhes dando um sentido. Eu fui mesmo ainda mais longe ao integrar no filme planos de ensaio de pré-produção, do jardim por exemplo, como se fizesse parte da mise en scène. Entrou aí, portanto, uma parte de improvisação.
Céline é bastante único no cinema francês, no sentido de que é um filme místico, cósmico, mas não cristão. Quer dizer que você não trabalha sobre a idéia de “caminho”, de busca, como é o caso em Bresson ou Rohmer, mas mais por explosões de força.
À exceção talvez de Boda Branca, meus filmes não tem um caráter muito francês. O Som e a Fúria tem mais uma estrutura anglo-saxônica, no nível da mescla de gêneros. E Céline não se encaixa muito numa tradição francesa. O cinema francês é freqüentemente de boa qualidade, de bom gosto, e procede por alusões, por sutilezas etc. Tudo o que tem a ver com a emoção ou a ingenuidade acaba principalmente proscrito. Pessoalmente eu não hesito em entrar nesse domínio, e é verdade que eu não me sinto muito “francês” na minha maneira de fazer filmes.
No que diz respeito ao aspecto místico, Céline não é, com efeito, um filme católico ou cristão no estrito senso. Isto dito, ele também não é anticristão. O Som e a Fúria era sem dúvida mais cristão. A mística de Céline era no meu espírito uma mística que se encontra desde o início dos tempos, ou pelo menos da história, para além mesmo das diferenças culturais.
Você sugere o “paranormal” ao evitá-lo, contudo. Certos elementos do filme serão definidos como “sobrenaturais”, elementos que temos a tendência de encontrar mais freqüentemente em certos filmes americanos como O Exorcista (The Exorcist, William Friedkin, 1973).
Um plano do filme poderia ter evocado O Exorcista, e este não foi rodado... Acerca do quê você fala, eu tive problemas reais de construção. Mesmo na etapa de roteirização eu me perguntava como eu poderia resolver um problema dessa espécie. Uma das armadilhas, entre outras, era o cinema fantástico tal como o concebem os americanos. Eu me disse então que a melhor solução, de um ponto de vista formal e com relação aos temas abordados no filme, residia numa sinceridade e numa simplicidade as maiores possíveis. Seja a interpretação dos atores, ou todos os aspectos fantásticos, tudo foi feito de maneira extremamente simples: não havia nenhum super efeito. A cena de levitação, por exemplo, não teve nenhum custo. Eu sou muito orgulhoso do fato de que alguns técnicos que viram o filme precisaram revê-lo três vezes para compreender como isso foi feito. Eu tentei aí dar lugar a fenômenos de “contágio de sangue”, ou seja, que certas coisas da vida cotidiana possam parecer fantásticas e vice-versa. Por exemplo, perto do fim, depois que todas as pessoas já passaram por ela - esse desfile da miséria humana esperando por um milagre que não chega -, há um momento em que Céline sai brutalmente da sala e depois retorna: esta cena foi filmada de tal modo - e o mais simplesmente possível - que chegamos a nos perguntar se não se trata então de uma aparição. Inversamente, todas as cenas fantásticas, à exceção talvez da levitação, deveriam ser muito cotidianas. Esse desejo de simplicidade me conduziu até mesmo a utilizar elementos que alguns poderão chamar de “clichês”, como o homem assombreado no corredor, que representa menos a própria morte que a agonia da morte. São figuras que encontramos por toda parte, mesmo em O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, Ingmar Bergman, 1957), que são muito fortes no inconsciente coletivo. Agrada-me utilizá-las porque elas remetem - com a condição do rompimento das barreiras de defesa - a coisas universais. Por outro lado, e é aí que se entra nos problemas de “cozinha”, quando se olha bem, a maior parte de meus filmes vão a toda velocidade... A cada vez eu tento “liquidar” o que não me interessa totalmente para chegar ao essencial, e assim me acontece de tratar às vezes em vinte minutos o que em outros filmes se estende por uma ou duas horas. A utilização de certos elementos como a música me permite ganhar um tempo enorme. O problema era permanecer “legível” para o público, sobretudo quando se avança tão rapidamente. Eis porque a simplicidade e o recurso a figuras universais do inconsciente coletivo são muito importantes para mim.
Em sua relação com a história do cinema, sentimos uma cinefilia segura mas não neurótica, como se você a tivesse assimilado de uma só vez e que em seguida ela se evidenciaria naturalmente em seus filmes como “moral do cinema”.
É verdade que eu sou bastante cinéfilo já que eu venho do amadorismo, que eu não passei por uma escola, nem mesmo a escola crítica. Eu cheguei ao cinema fazendo filmes totalmente sozinho em Super 8, e portanto eu aprendi a escrever eu mesmo os diálogos, a fazer eu mesmo a montagem, depois, passando ao 16 milímetros, a fazer o a ordem do dia, a transportar os equipamentos, pesquisar as locações etc. Eu portanto comecei como amador e cinéfilo. Eu continuo desde então com os meus videocassetes e a minha videoteca (devo ter quase 2,000 cassetes), estudando como os outros fazem. Mas não é necessariamente para copiá-los. Mais modestamente, quando eu penso em utilizar travellings ou escalas de planos, eu vejo que um monte de pessoas já fez a mesma coisa muito antes de mim - Ford, por exemplo. Ainda que ele seja um pouco uma exceção: quando eu tinha uns vinte anos, eu não gostava do que ele fazia; à parte dois filmes, eu o achava muito sentimental, e foi necessário que eu esperasse ter quarenta anos para compreendê-lo, compreender o que ele queria dizer e como ele utilizava a técnica do cinema. A mesma coisa para Buñuel, de cujos filmes eu não gostava, salvos um ou dois, e que eu compreendi e amei lá pelos trinta e cinco anos. Em Céline, eu sei muito bem que eu não sou o primeiro a utilizar certas coisas como, por exemplo, um travelling que avança para dar uma impressão de fantástico: nós encontramos isto sem parar em um filme de que não gosto muito, O Iluminado (The Shining, Stanley Kubrick, 1980). Eu tento simplesmente equilibrar as coisas em função da história que eu quero contar, de maneira pessoal.
Alguma coisa se comunica verdadeiramente entre Céline e Geneviève, um fenômeno de dupla transição, de energia: de início pelo yoga, do corpo ao espírito, pelo milagre em seguida, do espírito ao corpo.
Isso está exato, mas digamos que há um momento em que Céline bifurca e vai mais longe que Geneviève. Geneviève foi presa uma vez pelo medo, e o desapego que se opera em Céline não se realiza nela. Geneviève sem dúvida inveja o que se passa. Ela muito gostaria de ser investida dos poderes de Céline, nem que fosse apenas para curar os seus enfermos. Eu não estou seguro de que ela pensa muito diferentemente da criança que diz: “Os milagres são práticos porque curam mais rápido que as enfermeiras e fazem menos mal.” Céline recusa este ponto de vista. Há uma espécie de desimpedimento, de desapego nela, que corresponde à sua aceitação de não mais existir: ela descobre que ela não é nada, e ela obedece. Geneviève não atinge esse estado, ela permanece apegada à realidade. Ela continua a fazer o que pode para ajudar os outros e se ajudar a si mesma. Céline não. Isso é essencial.
Até aqui você aparece, sobretudo, como um racionalista, e eis que você realiza um filme sustentado em fenômenos paranormais, yoga e meditação.
O que não é contraditório. Dito isto, se revermos meus filmes precedentes, já havia signos desses fenômenos, não fosse que pelas “aparições” em O Som e a Fúria pelas quais muito me censuraram. O filme não era naturalista, isto não me interessava, não mais que em Um Jogo Brutal. Digamos que eu me divido entre duas filosofias: de um ponto de vista filosófico, os personagens que me marcaram são Freud e Marx - e sob a condição de não considerá-los como “rodas de oração” eles permanecem os meus pilares, apesar das modas que vão e vêm -, mas eu também sou muito profundamente cristão, ainda que me interesse pela filosofia hindu. Tudo isto pode parecer contraditório. No que me concerne, eu não sinto obrigatoriamente a contradição. Por exemplo, no domínio religioso, as igrejas frequentemente tiveram uma função social muito próxima daquela que descreve Marx. E, por outro lado, se você observar os místicos, todos eles dizem no fundo a mesma coisa, com diferenças ligadas à cultura geográfica ou histórica do momento. Quando você lê os textos deles você se dá conta de que eles são muito perturbadores em relação às intuições religiosas, e de alguma forma “alienados”. Todos testemunham as mesmas coisas em épocas e lugares completamente diferentes: então, deve-se crer que todos mentiram?... Minha experiência pessoal me leva a constatar a existência de fenômenos que estão ligados para além de todo padrão explicativo racional. Eu falo de fenômenos de premonição, de coisas que eu mesmo vivenciei.
Contudo, eu não estabeleço especialmente relação entre o domínio do fantástico, do parapsicológico ou do milagre religioso com o domínio do misticismo. Não se deve confundi-los.
O que me interessa em tudo isso é saber que nossos instrumentos de percepção do mundo são extremamente reduzidos, que nossa visão do mundo é parcial, tendenciosa, e que é perfeitamente possível existir outra coisa além da certeza racional na qual confiamos. Quando você estuda os “loucos”, seja os paranóicos, esquizofrênicos ou de outro tipo, o quê é muito curioso é que a cada vez que eles são tomados por uma alucinação eles estão convencidos de que ela é real. A ponto de eu chegar a me perguntar se o signo do razoável não deveria ser a dúvida absoluta quanto à nossa percepção do momento.
Em termos de cinema, a respeito deste questionamento místico, não se trata para você de filmar personagens que vão morrer, ou já mortos, e assim salvar os seres ao ancorá-los, pela imagem, à vida?
Eu gostaria muito de chegar a encontrar uma certa verdade, uma autenticidade nos seres que emana das aparências, da fixação dessas aparências na sociedade. O quê é particularmente difícil com o cinema, porque você joga constantemente com o falso. Eu prefiro na maior parte do tempo escolher atores não profissionais porque eles são mais maleáveis, eles são, mais que os atores realmente profissionais, mais próximos de uma certa verdade que se pode alcançar pelo olhar ou o gesto. E depois, o fato de não buscar se esquivar de coisas no limite da ingenuidade permite se aproximar desta verdade. Se você se desembaraça de todas as aparências, inclusive no domínio intelectual, eu tenho a impressão de que a relação com as coisas, os conceitos ou os seres pode ser mais direta, mais próxima de uma parte de ingenuidade infantil que, eu espero, guardamos todos em nós - e que é aí protegida. Atingir uma autenticidade humana permanece muito difícil no cinema, e eu não estou nem mesmo certo de que seja totalmente possível.
O milagre carrega consigo esta problemática: é uma abordagem documental da incerteza absoluta e, portanto, da crença. Nós já vimos milagres no cinema, particularmente aquele filmado por Dreyer em Ordet: não é nunca uma representação que deixa incólume. Como você abordou o problema da mise en scène do milagre e o do lugar da testemunha, ou seja, o lugar do espectador?
Perguntam-me raramente sobre isso e é, no entanto, o que mais me interessa. No momento em que, em Céline, a história bifurca, o que me interessava era mergulhar o espectador no assombro mais forte, preservando a dúvida: você passa de um filme a um outro e você se pergunta onde está a linha. Eu queria partir de um filme cotidiano, um pouco como os meus precedentes mas sem violência, e levar a algo bastante diferente: uma cura de paralisia, uma levitação, um homossexual que provavelmente viu Cristo e um deficiente mental que não se cura, tudo isto em vinte minutos é muito e eu estou na corda bamba do ridículo neste domínio. Estabelecer essa passagem entre os dois universos me colocou um problema real e eu então tive que modificar um certo número de coisas a fim de solucioná-lo. No roteiro o longo plano-seqüência, um dos raros do filme, em que a personagem de Geneviève fala de seu passado, estava situado mais adiante na história e eu fui obrigado a deslocá-lo: ao fazer esta cena chegar mais cedo, eu permiti ao espectador pôr-se à escuta dos elementos estranhos que atravessam então a fala de Geneviève enquanto que, mais tarde, ele já está muito intrigado por outras manifestações disto que podemos chamar de fantástico para reagir a esses signos menos evidentes. O que é filmado não o é como o que foi escrito. Godard fez isto ser dito por Piccoli em O Desprezo (Le mépris, 1963), é uma evidência, mas isso permanece para mim uma das grandes verdades do cinema. Há duas escolas de montagem: a daqueles que estimam ser necessário respeitar o roteiro a todo custo, se ele for bom, e a daqueles que, como eu, estimam que a montagem possui a sua virtude própria. O único problema do cineasta é o de dominar suficientemente os dois elementos para chegar a reconstituir o material fílmico com mais força do que a que ele tinha no momento da escrita. Isto implica que se atue na transformação das coisas porque a imagem possui sua dinâmica própria.
Um outro elemento importante em Céline é a natureza. Ela está presente com a sua vibração real e também enquanto uma supra-natureza a atravessar uma forma de romantismo que, para mim, se remete ao cinema de Murnau.
Esse romantismo não é deliberado, mas ele está presente, eu me dei conta depois de terminar o filme, exatamente como eu constatei, desde que eu comecei a fazer meus filmes em Super 8, que certos temas estavam exprimidos de modo totalmente inconsciente. Retroativamente eu reconheço também a presença desse elemento romântico em Um Jogo Brutal e, sobretudo, em Boda Branca, no qual ele está bem claro. Com Céline eu quis mostrar uma reconciliação do ser com o universo que inclui a morte, o sofrimento, a doença, a miséria. Isto é finalmente muito coerente em relação a Boda Branca, que está ligado a estes temas românticos no sentido em que os Românticos viam na emoção e no amor em geral alguma coisa que permitia derrubar as barreiras do sobrenatural e entrar numa dimensão quase mística. Há incontestavelmente um pouco disso em Céline, mas é independente da minha vontade consciente, mesmo que eu tenha ainda assim utilizado técnicas do cinema de Ford, a utilização de planos próximos seguidos de maneira brutal por um plano muito aberto, por exemplo, a fim de inscrever uma decalagem em relação ao indivíduo e remetê-lo ao universo inteiro.
O que você pede a seus atores?
Que consigam estar nus diante da câmera. Em O Som e a Fúria eu não quis que nos identificássemos com François Négret como nos identificamos com Matt Dillon em O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, Francis Ford Coppola, 1983), mas ao mesmo tempo se não existir nenhum interesse por ele, o filme desmorona. Era necessário, portanto, encontrar alguma coisa e nós queríamos muito trabalhar sobre esta questão observando como faziam os atores que haviam interpretado papéis muito antipáticos. Eu tive um problema do mesmo tipo com Vanessa Paradis. Não sabemos em absoluto, durante o filme todo, se a jovem garota que ela interpreta é uma vadia, se ela é sincera ou se é uma mistura dos dois. Ao fim do filme, que visivelmente funcionou bem com o público, ao passo que me solicitaram suprimi-lo, entendemos que essa garota provavelmente era sincera. Ora, se ela é sincera, visto que não se sabe de nada durante todo o filme, é necessário ainda assim, para que isso dê certo, que o espectador não tenha a impressão ao fim de que nós o menosprezamos, é necessário que a atriz que interpreta essa garota seja sincera e o seja suficientemente para que nós lembremos disso na última cena. Se Vanessa Paradis enfatizasse o seu jogo, como faz a maior parte dos atores profissionais, ela teria dado a impressão de ser uma perversa a manipular esse homem fazendo-lhe um número. Precisava-se então que ela falasse como na vida cotidiana e eu a fiz aprender seus textos de cor e depois, por momentos, eu a fazia falar de qualquer outra coisa, sua vida no music-hall, suas dificuldades com os jornalistas, e eu lhe pedi que dissesse seu texto exatamente como ela teve de me falar dela.
E quanto ao seu projeto sobre a Indochina? Muitos filmes franceses que foram rodados sobre o assunto já foram lançados.
Eu vi Diên Biên Phú (Pierre Schoendoerffer, 1992), do qual gostei bastante, mas não é um filme sobre a batalha de Dien Bien Phu, eu o percebi mais como uma espécie de Ilíada ao inverso, para esquematizar. Eu senti o homem atrás das imagens e uma filosofia do mundo que me interessou. Eu estou descobrindo os filmes que são feitos lá e eu me questiono. Interessa-me fazer um filme assim, mas eu necessito de uma grande figuração e de duas cenas de conflito com muita gente e muitos planos. Eu ainda não vi Indochina (Indochine, 1992) de Régis Wargnier, mas, em Diên Biên Phú, os vietnamitas não lutam realmente e em O Amante (L’amant, Jean-Jacques Annaud, 1992) não há nem mesmo cena onde a população vietnamita seja integrada na trama narrativa do filme, ela está lá enquanto folclore, como na cena do casamento, mas não há implicação. Por quê? Será que por escolha dos metteurs en scène? Será que isso está ligado aos vietnamitas? Será que por uma falta de meios, ainda que os filmes tenham custado muito, muito caro? E, como eu quero ter mais coisas na imagem, será que isto quer dizer que meu filme deve custar o dobro? O grande problema atual do cinema francês está aí: quando nós vemos o quanto esses filmes têm custado e o quê há na tela, os planos fixos muito bem iluminados, mas pouca decupagem e, portanto, poucos planos, há aí uma grave distância. Ao invés de fazer um filme que não me agrada, eu prefiro estudar de perto essa questão dos meios. É necessário que eu chegue a me organizar com a produção francesa e com os vietnamitas. Eu penso que a realidade artística de um filme se articula verdadeiramente sobre uma realidade material que inclui um forte controle da produção e tenho a necessidade de estudar a questão. Sobre Céline, eu fui produtor executivo, era por mim que passavam todos os cheques e eu me apercebi de que em caso de conflito não obedecemos outro que não seja aquele que assina os cheques. Eu não abandonei o projeto sobre a Indochina, mas eu creio ser necessário esperar um pouco. Eu gosto que meus roteiros amadureçam. Eu tenho vários projetos antes desse filme em Indochina, inclusive um certamente com Sylvie Vartan. O ponto de partida era A Carta (The Letter, 1940) de Wyler, mas está bastante longe disso agora. Depois, eu gostaria muito de retornar ao terreno de O Som e a Fúria com Charlotte Gainsbourg. Eu percebo, ao retomar contato com meus antigos colegas professores, que a situação de violência está caminhando para pior. Disseram-me que eu exagerei em O Som e a Fúria, ao passo que eu sabia que era exatamente o contrário, e agora todo o mundo me diz que eu subestimei as coisas em relação à verdade atual.
(Cahiers du Cinéma nº 454, abril 1992, pp. 17-20. Traduzido por André Barcellos)
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