TRANSGREDIR OS TABUS
Entrevista com Jean-Claude Brisseau, por Philippe Rouyer


Philippe Rouyer: Você concebeu Os Anjos Exterminadores como um prolongamento do seu filme precedente, Coisas Secretas?

Jean-Claude Brisseau: Esses dois filmes são ligados por mais de um fator. Antes de tudo devo lhe dizer que, na origem de Coisas Secretas, eu tinha um desejo que não pude realizar: retornar aos métodos de trabalho dos meus primórdios. Ou seja: partir de uma trama na qual eu reescrevo os diálogos diariamente, utilizando o que os atores me contam. Eu havia trabalhado assim em La croisée des chemins, em 1975, e eu queria adaptar o método para tratar do desejo e da transgressão com os atores de Coisas Secretas. Isto finalmente não foi possível, e eu acabei realizando o filme mais classicamente. Eu pensei que o caso estava encerrado, mas muitas pessoas me perguntaram por que eu não voltava a fazer um filme sobre o tema. Foi então que Paulo Branco veio me propor dois longas-metragens: um de orçamento modesto, no qual eu faria mais ou menos o que eu quisesse, e um outro, mais escrito. Para o filme improvisado, eu pensei no meu projeto sobre o desejo e a transgressão. Infelizmente eu tive alguns problemas, judiciais e de outros tipos, e este filme não pôde ser feito. Eu voltei então a um roteiro completamente escrito.

Por que tomar a um cineasta como protagonista de Os Anjos Exterminadores?

Eu procedi como em O Som e a Fúria. Àquela época, eu utilizara minha experiência de professor, minha vida com meus alunos e seus parentes, para nutrir a personagem de Fabienne Babe, a qual era uma mistura de três pessoas. Aqui, eu fiz a mesma coisa. Eu tinha certa experiência com ensaios eróticos, e eu disse a mim mesmo que eu queria beneficiar meu protagonista que, como a professora interpretada por Fabienne Babe, é, em uma terça parte, o meu retrato (o resto sendo uma mistura de duas outras pessoas). Eu hesitei um pouco, mas eu não conseguia ver qual outra profissão dar a ele. Nem um psicanalista, nem um médico, nem um professor seriam críveis em relação às garotas. Um libertino não teria a sua ingenuidade. No limite eu poderia fazer dele um escritor, mas eu não tinha qualquer experiência para isso. Portanto, não se deve tomar o filme como a expressão do que eu vivi. No espírito sim, mas não no detalhe.

Quando você passou de um filme improvisado a um filme roteirizado, o quê você quis dizer?

Minha idéia era falar de sexo misturando os gêneros. Enquanto em Coisas Secretas eu procurara utilizar a emoção sensual como Hitchcock o fez com o medo e o suspense, em Os Anjos Exterminadores eu queria misturar o sexo com elementos poéticos ou até mesmo surrealistas, bem como com elementos cômicos (as relações do cineasta com algumas de suas atrizes no início) e outros melodramáticos. É essa mistura bastante incomum que me interessava. Será que isso iria funcionar? Ao ver as pessoas à beira das lágrimas ao fim da projeção de Cannes, eu fiquei um pouco tranqüilo. Mas ainda me falta distância. Ao mesmo tempo, este filme é construído como todos os outros que eu rodei: a primeira hora introduz toda sorte de elementos que bruscamente se reúnem para fazer sentido na ultima meia hora.

Você poderia detalhar esse paralelo que você estabelece entre a emoção sensual em Coisas Secretas e o trabalho sobre o medo em Hitchcock?

Pegue um filme de Hitchcock como Psicose (Psycho, 1960). Você sabe que há nele uma velha senhora que assassina as pessoas. Então, quando ao fim vemos a heroína que perambula pela casa, perguntamo-nos se a velha não vai surgir do alto da escada ou de trás de uma porta. Nada se passa, mas dramatizamos o vazio. Em Coisas Secretas eu começo mostrando duas garotas fazendo coisas perturbadoras, acariciando-se em locais públicos. Depois eu pego uma delas (justamente a que não traz o sexo no rosto como uma Bardot ou uma Marilyn) e a instalo em um escritório. No início nada se passa, mas eu aposto no fato de que o espectador deseja que ela faça coisas sexuais. E eu dramatizo a garota muito bela atrás do seu computador, como Hitchcock o fez com a porta ou a escada em Psicose. Grosso modo, esse é o principio. Mas ainda é necessário que suceda no espectador (homem ou mulher) o desencadeamento de uma emoção sensual. E até que ponto? Não estou certo de que eu queira entrar em detalhes, mas é evidente que, passado um certo estágio, isto pode se tornar incômodo para o espectador que vê o filme com seus familiares.

Há em Coisas Secretas uma cena muito forte, em que Sandrine (Sabrina Seyvecou) simula um orgasmo diante de sua amiga, a qual se pergunta se isso foi verdadeiramente falso. Não estaria esta cena na origem de Os Anjos Exterminadores, em que o cineasta procura, como um Graal, captar o gozo feminino sem jamais saber se este é simulado?

Isso é de verdade ou simulado? Este é também o princípio do cinema, sabendo que, em relação ao que peço para as minhas atrizes em matéria de sexo, é provável que exista uma mistura dos dois. Nos meus filmes eu desejo que meus intérpretes se envolvam realmente, que, se eles choram, eles o façam realmente. Ao mesmo tempo, se eu tiver que filmar uma crise de histeria, vou transpô-la de modo que isso fique bonito na tela. Digamos que é bom que meu intérprete possa ter conhecido na sua vida a realidade daquilo que ele deve interpretar para poder transpô-la. É necessário transpor, mas evitando trapacear porque o espectador o sente imediatamente. Se os grandes astros hollywoodianos têm tocado o mundo inteiro, é graças ao seu carisma e à sua capacidade de serem sinceros e autênticos diante de uma câmera. Ao contrário, nos cursos de teatro, ensina-se aos alunos a reconstituir o real, não a oferecê-lo. Isso pode ser válido em um palco, mas na tela do cinema, ao menos em meus filmes, isto se percebe. Tanto nas cenas de sexo como nas cenas dialogadas, meus atores seriam grotescos se fossem teatrais. Ainda que os diálogos sejam bastante escritos e os gestos sensuais minuciosamente ensaiados, as garotas devem ser autênticas. A perturbação nasce do aspecto muito cotidiano da cena. Portanto, para as cenas de sexo, pedi às garotas que se baseassem naquilo que elas pudessem viver.

Ao mesmo tempo, suas cenas sexuais são extremamente estilizadas...

As garotas devem ser perturbadoras, mas ainda assim elegantes, e atingir o prazer em um tempo muito curto. Portanto é necessário, dramatizar esse momento e encená-lo. Todo mundo parece pensar que isto é simples, mas não o é, em absoluto. Estas cenas eróticas devem ser coreografadas como balés. Por exemplo, a seqüência a três em Os Anjos Exterminadores: eu levei entre sete e oito horas (em várias sessões) para ajustá-la. Ademais, era necessário levar em conta a luz e os trilhos do travelling. As garotas deviam sincronizar seus orgasmos com o avanço da câmera!

Antes de chegar a esta estilização, você tentou outras estratégias de mise en scène?

Em Coisas Secretas eu quis construir uma seqüência erótica com uma montagem fragmentada, como o crime sob a ducha de Psicose. Eu acreditava ter descoberto como o conseguir, mas esta cena não pôde jamais ser rodada porque no último momento as duas atrizes se recusaram. Era uma cena em que elas aprendiam o prazer juntas e que, se ela pudesse ter sido filmada, teria modificado consideravelmente a evolução de suas relações. Em todo caso, para todas as minhas cenas eróticas, eu mantive a solução inversa, a saber, decupar muito pouco e filmar em plano conjunto os corpos em movimento. Eu penso que é sobre os corpos em movimento que se vê a ascensão do prazer, e certamente não encadeando planos aproximados sobre partes de corpos como no pornô.

Para os atores e o metteur en scène, será que existe uma diferença entre rodar uma cena de sexo e uma cena ordinária?

Por enquanto, como as cenas de sexo são ainda relativamente raras no cinema não especializado e há ao seu redor todo um circo midiático, não é a mesma coisa. Como diz a mulher do cineasta no filme, se uma garota desempenhar um papel desses, ela vai imediatamente incitar o ciúme de seu namorado. Sem falar das dificuldades de fazer seu pai e sua família aceitarem. Na nossa sociedade, a relação com o sexo permanece passional. É tabu, mas falamos sobre isso durante todo o dia. Uma atriz de outrora que se tornou psicóloga me explicou que, com minhas filmagens e meus ensaios eróticos, eu poderia apenas provocar inveja, até mesmo o ódio, porque eu estava fazendo do meu trabalho aquilo que os outros sonhavam sem jamais ousar realizá-lo.

Em meados dos anos 70, nós assistimos a uma liberação nos costumes e nas telas, mas muito rapidamente a lei X veio trazer uma censura econômica. Após uma dezena de anos, o puritanismo e o pudor se acentuaram. De minha parte, eu lamento que não exista no cinema sério (mesmo que eu não goste desse termo) o que se pôde fazer na literatura em matéria de sexo. Aragon escreveu pornografia, mas não se pode ter o equivalente no cinema. Primeiro porque é preciso dinheiro e no cinema francês, sem o acesso à televisão, você se encontra em face de uma barragem orçamentária. Eu tive que rodar Coisas Secretas com três milhões e meio de francos e Os Anjos Exterminadores com um pouco mais de quatro milhões. O que significa vinte e quatro dias de filmagem, e quase sem exceder o horário, porque você paga os técnicos à metade da taxa sindical (o resto em participação) e, se você exceder todos os dias, eles farão greve. E não podemos culpá-los por isso.

Afora as cenas de sexo, como você dirige os seus atores? Como fazê-los escapar da teatralidade mesmo rodando tão rapidamente?

De início eu estudo minuciosamente as pessoas com as quais eu pretendo filmar. Eu as convido para jantar e as observo quando bebem um pouco e seus mecanismos de defesa começam a enfraquecer. Eu vejo onde elas têm charme e onde isto lhes falta; eu tento estabelecer uma relação de confiança. Em seguida começa o trabalho propriamente dito. Existem coisas que não podem ser desempenhadas por todo mundo e já me aconteceu de mudar um texto em função das pessoas. Mas eu trabalho também sobre as atitudes. Por exemplo, em Os Anjos Exterminadores, o encontro com a jovem Estelle Galarme (a primeira garota que vem aos ensaios) funciona mais sobre seus olhares, e sua maneira de se movimentar, do que sobre os diálogos. O cinema não é somente falar, é também escutar e interpretar com o seu corpo. Errol Flynn, em Um Punhado de Bravos (Objective, Burma!, Raoul Walsh, 1945), e Alain Delon, em O Samurai (Le samouraï, Jean-Pierre Melville, 1967), não dizem grande coisa.

Sim, mas você cita aqui os astros. Quanto a você, você consegue obter o mesmo tipo de coisas com garotas que não têm, ou têm muito pouca, experiência...

Eu peço a elas que se relatem à seqüência de situações que elas possam ter vivido. O quê nem sempre é agradável. Em todo caso, para elas trata-se de reutilizar suas próprias emoções e para mim de conseguir transpô-las para a tela. O quê exige uma certa relação de confiança entre eu e elas. Se nós nos exasperamos mutuamente, nós não trabalhamos juntos. E, ainda, acontece de certas pessoas me serem indiferentes. Isso não é culpa delas, mas não chegaremos a nada. O inconveniente desta operação por feeling é que, quando eu escolho outra pessoa, pode acabar sendo muito doloroso. Mas eu não vejo como funcionar de outro modo. É verdade que é mais fácil com atores que têm experiência, mas aí eles arriscam trair o fato de que interpretam papéis.

Para retomar a sua questão, eu penso que não importa qual seja a garota na rua, se ela está motivada e trabalha um pouco, ela pode atuar. Com a condição de fazê-la interpretar seu próprio papel, porque encarnar personagens diferentes exige um outro trabalho. É também por isso que, quando eu me encontro com os atores, eu devo descobrir absolutamente quem convém aos meus personagens. Evidentemente se, ademais, há cenas eróticas, isto suscita dificuldades adicionais, porque é necessário ter certeza de que a garota estará de acordo para trabalhar na cena. Se ela aceita, eu a faço ensaiar até o ponto em que ela esteja perturbadora na tela. Sabendo que, no set, ela o estará sempre menos do que quando estamos a sós nos ensaios: mesmo com uma equipe reduzida, perde-se o lado íntimo e pessoal; além disso, os ensaios permanecem confidenciais, já que o filme visa a um grande público. Daí as questões: O quê meu pai vai pensar? Serei eu bela o suficiente?

Com orçamentos tão apertados, como você consegue chegar a uma luz tão trabalhada?

Pode-se ter uma bela luz permanecendo bastante simples. O que custa caro são os planos abertos ultra-consumados sobre as garotas em movimento. Para corrigir as olheiras, por exemplo, utiliza-se um conjunto de pequenas luzes que precisa ser deslocado para acompanhar a atriz. Se você filma as pessoas em contraluz, você arrisca pôr em relevo os defeitos de suas peles. Defeitos que você pode corrigir facilmente se não enquadrar de muito perto e se a pessoa filmada não for muito velha. Na grande tela Coralie Revel, que tinha vinte e cinco anos durante a filmagem de Coisas Secretas, podia aparentar trinta e dois ou trinta e três em certos planos que eu tive que cortar. Mesmo que isto tenha me colocado problemas de montagem. Em relação à luz, é necessário levar também em conta a decoração. Depois de Boda Branca, para evitar qualquer surpresa desagradável, eu faço ensaios de película antes da filmagem.

Para a música de Os Anjos Exterminadores você retoma Jean Musy, seu compositor em Boda Branca, Anjo Negro e Os Indigentes do Bom Deus. Sua participação adere tão bem às imagens que eu fiquei estupefato ao saber que você cogitou não usá-la...

Para dizer a verdade, sem música, as sequências eróticas eram mais perturbadoras; ouvia-se as garotas respirando e murmurando. Se eu finalmente utilizei a música, foi para acrescentar um elemento de fascinação. Não podemos esquecer que as garotas são então olhadas pelo cineasta, e pode-se compreender que ele esteja fascinado por elas. De maneira geral, o sentimento de beleza e de sublimação é sempre mais fácil de se obter no cinema com a música. Pense em Um Corpo Que Cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958) ou em O Desprezo (Le mépris, Jean-Luc Godard, 1963). Ao contrário, em O Som e a Fúria, eu resisti à tentação de lhe dar um ar de ópera. Devido à gravidade do assunto, eu não queria com a música insistir mais na emoção.

Por que você intitulou seu filme Os Anjos Exterminadores?

Inicialmente eu estava propenso a Portraits nus (t.l. “Retratos Nus”). Depois eu pensei em outros títulos, aos quais renunciei porque eles já existiam: No Man’s Land, Le fruit défendu. O Anjo Exterminador também havia sido utilizado, então eu o coloquei no plural. Eu de fato pensei que havia um risco de que o espectador fizesse associação com as aparições que se apresentam, elas mesmas, como anjos caídos. Mas, no meu espírito, o título remete a uma perspectiva mais ampla. O que não irá lhe surpreender, já que foi você o primeiro, quando me entrevistou sobre Boda Branca, a empregar o termo “anjo exterminador” para evocar meu universo[1].

O que representam justamente essas aparições e as vozes no rádio que parecem inspiradas em Orfeu (Orphée, 1950) de Cocteau?

Orfeu é certamente minha referência, e, para as aparições, as bruxas de Macbeth que anunciam imediatamente o destino do herói. Por que eu utilizei esses elementos fantásticos? Eu não quero lhe revelar, mas estou disposto a lhe dar uma pista. Em Boda Branca, Vanessa Paradis explica que os personagens de Racine são possuídos pelos deuses, deuses que os manipulam, mas que se assemelham ao inconsciente freudiano. Portanto, se esses deuses tinham que se manifestar, por que não passariam eles pelo inconsciente das pessoas?

Eu tenho a impressão de que todo o seu cinema se organiza em torno da transgressão dos tabus e da perda das ilusões...

Há também o fato de que todos nós corremos atrás de armadilhas. Mas você tem razão de citar esses dois temas que voltam sem cessar nas nossas vidas cotidianas. Eu acrescentaria que, se todos nós vivemos com nossas ilusões, nós procedemos às vezes a um salutar recuo em direção à lucidez. É isto que eu gostaria de pôr em evidência no meu próximo filme. Mas é muito cedo para se falar.

Nota:

[1] Entrevista com Jean-Claude Brisseau, realizada por François Ramasse e Philippe Rouyer. Positif nº 345, novembro 1989, pp. 20-26 (n.d.t.).

(Entrevista realizada em Paris no dia 26 de junho de 2006. Positif nº 547, setembro 2006, pp. 83-86. Traduzido por André Barcellos)

 

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