L’ÉCHANGEUR
por André Barcellos


1982, L’échangeur (o intercambista, o comerciante). Sem rodeios, escrito sobre tela preta: “Um dia de maio 1981 / Jean-Roger e sua mãe deixam Paris para se instalarem em um HLM da periferia leste...”. Primeiro plano: Jean-Roger olha por poucos segundos a sua nova sala de aula e os seus colegas, dentre os quais em seguida duas garotas oferecem resistência e não o acolhem perto de si. Ele então é encaminhado pela professora a ocupar um lugar ao lado de outro garoto. O que rapidamente esta encenação nos mostra? Muito pouco entendo o francês falado, tento ver o que ocorre.

1. A tentativa do aprendizado pela leitura. Um fracasso. As crianças desinteressadas com dificuldade reúnem as palavras e, quando o conseguem, não encontram seu sentido. Enquanto isso, o colega ao lado de Jean-Roger acena a alguém, que ainda não apareceu, e lhe envia dinheiro.

2. Contrariando a fixidez ou panorâmicas dos planos anteriores dedicados ao estudo penoso, Brisseau faz um movimento de travelling com a câmera para acompanhar a transação, uma espécie de captura da realidade que, por contraste com o modo anterior de registro, imprime certa relevância especial ao dinheiro passando de mão em mão por debaixo das mesas, escondendo-se. As crianças aí desempenham alegremente um movimento que lhes é comum e dominado, organização entre os colegas para conseguir algo que lhes é interditado. O dinheiro chega ao seu destinatário, que rapidamente separa a encomenda, algumas revistas que viajam até seu comprador, fazendo o mesmo caminho inverso.

3. A professora flagra o pequeno comerciante ainda manuseando outras revistas de mulheres nuas. Jean-Roger, incitado pelo colega ao lado (o comprador), lança algo no chão para distraí-la. É o tempo para o comerciante substituir sua mercadoria por materiais de estudo rasgados, destruídos. A professora ordena que ele leia. Ele obedece, mas, no momento de dizer o que as palavras significam, ele se revolta. A professora se cala, afasta-se cansada e, provavelmente como em outros tantos momentos, desencantada, infeliz. Aqui, a poesia, a ligação: a paisagem se abrange, vemos o exterior da escola, vemos do alto os prédios residenciais, as fábricas, os carros apinhados, seus movimentos em estradas umas sobrepostas às outras, a devastação. O piano de notas tristes - bem batidas, espaçadas e nítidas - em lamento. A devastação do ambiente, a sobrevivência do ser humano. Olhamos para isto.

L’échangeur, curta-metragem de 23 minutos encomendado para a televisão, nos mostra a partir de então uma criança que já aprendeu a sobreviver em uma guerra cotidiana, esquecida, naturalizada. E Jean-Roger, pelos olhos de quem ficcionalmente vemos tal mundo, durante este dia se tornará amigo do pequeno servidor do mercado ilegal. Os dois serão filmados contra a paisagem cortada por viadutos, por debaixo dos quais eles podem avançar, entrando e saindo das sombras, carregando mercadorias em uma caixa sobre rodas. Eles estão absorvidos aí, mas ainda vivem e atuam. O pequeno ladrão corre descendo escadas com a mão levantada em direção a uma garota mais velha, uma garota bonita e magra, pobre e orgulhosa, perseguindo-a, insistindo; e finalmente organiza em sua casa entulhada um show de strip-tease para os companheiros pagantes. Continuidade do mundo: a mesma música volta a tocar, a cidade, a violência, o desamparo, a infância nua, toda a tristeza e ainda a esperança de um pequeno prazer, um esquecimento se possível, se concentram no corpo daquela garota que se despe, concentram-se nos seus olhos voltados para nós, e nos olhos dos garotos voltados para ela. Então uma mão aparece sozinha em primeiro plano. A música cessa. O pequeno briga com o colega que tentava tocar a garota como quem deseja tocar um anjo, de baixo para cima. Intimamente, esse desejo, o pequeno o comunga com o outro, mas deve, agora ele, interditá-lo. Ele fez o negócio. E esse anjo, essa garota foi paga para ser olhada e não tocada! É o limite estabelecido desde quando o preço foi acordado. Você precisa lembrar! Tudo tem limite, o que é que não o tem? O pequeno negociante parece que vai chorar olhando outra vez para o corpo que poderia lhe dar abrigo. É grave e frágil o seu olhar, a sua cabeça esquecida apoiada na parede. Estava já aí sintetizado um motivo comum a todos os filmes de Jean-Claude Brisseau: a distância dificilmente superável entre aquilo que se é e aquilo que se ama.

Como, porém, a tragédia não só é imitação de uma ação completa, como também de casos que suscitam o terror e a piedade, e estas emoções se manifestam principalmente quando se nos deparam ações paradoxais, maior é o espanto que ante os feitos do acaso e da fortuna (porque, ainda entre os eventos fortuitos, mais maravilhosos parecem os que se nos afiguram acontecidos de propósito - tal é, por exemplo, o caso da estátua de Mítis em Argos, que matou, caindo-lhe em cima, o próprio causador da morte de Mítis, no momento em que a olhava -, pois feitos semelhantes não parecem devidos ao mero acaso), daqui se segue serem indubitavelmente melhores os mitos assim concebidos.

Aristóteles, Arte Poética


 

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