CONTRA A NOVA CINEFILIA
Creio que seja útil precisar, para uma melhor compreensão deste texto, que ele foi escrito entre os meses de outubro de 1977 e fevereiro de 1978. Isso quer dizer que deveria (logicamente: dentro dos prazos normais) ter sido publicado no final de março (o número com data Abril/78). Se ele só aparece hoje nos Cahiers - porque, como se diz, “apresentou dificuldades” - não é tanto, no meu entender, porque rompe com a linha (implícita) da revista, mas porque não marca de forma alguma sua posição em relação aos Cahiers.
Por quê? Hoje em dia é secundário, ao menos acredito nisso, situar-se explicitamente em relação aos Cahiers quando se ocupa (como é meu caso) uma posição marginal ou periférica. E se é secundário atribuir boas ou más pontuações (dizer que tal texto teórico permite avançar, que outro faz retroceder, ou fazer crítica sobre crítica para finalmente recordar que os Cahiers são ainda e de qualquer forma a melhor e mais apaixonante revista de cinema) é porque me parece diabolicamente mais importante, fundamental, urgente, colocar todos aqueles que vivem atualmente, em maior ou menor medida, da indústria de cinema na França, no mesmo saco. Os Cahiers - nós - incluídos. Porque da mesma forma que eles estão incluídos, nós também estamos.
E porque nos arriscamos, se não tomarmos cuidado, a não encontrar mais para nossos textos um único leitor que seja capaz de ler, e para nossos filmes um único espectador que seja capaz de desfrutar e extrair alguma coisa deles. - L.S.
c’était la dernière séquence
(era a última seqüência)
c’était la dernière séance
(era a última sessão)
et le rideau sur l’écran est tombé.
(e a cortina sobre a tela caiu)
Eddy Mitchell
(La dernière séance)
O cinema - o bom como o mau - mudou muito. Os espectadores e os meios de comunicação - os bons como os maus - também. Dessa mudança não há rastro em lugar algum. Atuamos como se aos autores de ontem se sucedessem os de hoje, e aos cinéfilos da antiga geração, os da nova. Excetuando alguns arrependimentos acerca de uma era de ouro ou de uma belle époque do cinema (arrependimentos retrôs, lamentos suspeitos), nenhuma falsa nota na continuidade do cinema como encenada pelos meios de comunicação, travestida. (E os Cahiers têm uma participação nessa farsa, uma participação singular, que não deve deixar de ser interrogada).
A analogia que não pode deixar de vir ao espírito é, certamente, a de um filme, um filme no qual teria sido feito qualquer coisa para se dissimular a montagem, para torná-lo transparente a fim de que os rompimentos, as quebras, as mudanças não apareçam em lugar algum: ficam sob a calçada da história do cinema, mar tranqüilo, com algumas ondas ainda por cima para lhe dar movimento.
Esse filme é uma mentira, essa idéia: poeira que jogam nos seus próprios olhos os jornalistas mais sérios e nos olhos dos outros os mais maliciosos. É necessário dar ao cinema a sua descontinuidade, ao espectador as suas questões: são as nossas contradições e as do cinema que escondemos ao mesmo tempo e trata-se, hoje, não tanto de resolvê-las, mas de colocá-las em destaque para se ver alguma coisa.
CINEFILIA 1
Quando se fala de cinefilia creio que se deva explicar, especificar, esclarecer as coisas: colocar-se em pé e ir lá em pessoa, caso contrário o outro, o leitor, corre o risco de não compreender nada. Nos Cahiers, desde que voltamos a falar de cinefilia, nunca se falou menos disso: cada um faz a sua confissão, admite seus pecados (“sim, eu fui, eu talvez ainda seja um cinéfilo”), mas fundamentalmente tudo permanece nas sombras, a cinefilia permanece uma coisa misteriosa, ritualística, do passado e do presente, contraditória, enigmática. Tudo se passa como se não se pudesse dizer nada da cinefilia: na época em que ela ocorria, quando estávamos imersos nela, sem qualquer recuo, nada podíamos proferir sobre o fenômeno; na época em que ela tende a se dissipar, a se tornar mais precisa em virtude da própria distância temporal, ela se deforma, ela se transforma, ela se torna a cinefilia de um outro (politicamente condenável ou suspeita, não sabemos muito bem, por isso tome cuidado, é melhor usar aspas etc.). Não é apressar-se demais dizer, como o faz Jean Narboni em sua crítica de O Amigo Americano (Cahiers nº 282), que “se revela qualquer coisa do caráter sagrado, clandestino (vagamente pornográfico) da cinefilia”, se não se tenta, primeiramente, medir, narrar o aspecto autobiográfico, vivido, profano?
No início dos anos 60 (e já anteriormente para outros, entre os quais não me incluo), algumas dezenas de espectadores vivem furiosa e cegamente sua paixão pelo cinema: na Cinemateca da rua Ulm, mais tarde na da Chaillot, nos cineclubes especializados (“Nickel Odéon”, “Ciné Qua Non”), e até mesmo no decorrer de expedições a Bruxelas (sete, oito filmes por dia, um fim de semana de cinema americano de série Z, filmes invisíveis em Paris), apesar de algumas diferenças que nos singularizam, compartilhamos duas ou três coisas: um amor louco pelo cinema americano (contra ventos e marés, crítica oficial, bom gosto), a admiração incondicional por alguns realizadores (cada um tinha sua lista, suas preferências) e sobretudo um mesmo espaço: as três ou cinco primeiras filas da sala eram nossas, aquelas de onde nós víamos os filmes, aquelas nas quais nos encontrávamos em um terreno conhecido, onde nós nos reconhecíamos pelo que somos: cinéfilos avançados.
Quando alguém se encontra tão perto da tela (e o lugar não variava de acordo com o tamanho da tela, já que era também um lugar ritual e simbólico), há algo que não vemos, que não podemos (nem queremos) ver: a moldura. Sem recuo, entra-se, tenta-se entrar no filme. Perdemo-nos, afogamo-nos ou chafurdamo-nos para nos esquecermos dessa moldura essencial, para nos tornarmos cegos: uma vez no interior do filme, como podemos ver algo, seja da encenação, seja do tema? E, no entanto, se efetivamente existe uma cegueira ao querer se fundir o máximo possível a alguns roteiros, com algumas referências e alguns nomes como balizas, como explicar que dessas alucinadas sessões, desses olhos que piscam sob a luz sempre muito forte do despertar aos finais dos filmes, emergem também uma lógica e uma lucidez, um discernimento e um pensamento? Se abstraímos a preguiça intelectual em relação ao juízo crítico sobre o conteúdo (esse período em que os filmes chegavam a se confundir com a vida nos viu defender temas ultra-reacionários, perdoados alegremente - mais: ignorados - desde que se inscrevessem em obras emocionantes ou convincentes), existe um rigor e uma coerência nas escolhas - de filmes, de realizadores - que já quase não encontramos mais hoje em dia. Não sei a quê isso se deve, mas a idéia do cinema que está em jogo, esta ainda conta.
CINEFILIA 2
Houve erros e injustiças; sempre os há quando se especula sobre o futuro: quando se aposta em cineastas que tiramos da sombra a fim de convertê-los em campeões, os lances sobem rapidamente. Assim, enganamo-nos ao preferir o rigor matemático e altivo de Keaton - um comediante frio, gélido - à irredutível mistura de maldade e ternura de Chaplin; enganamo-nos, também, ao reter de todo o cinema japonês somente o nome de Mizoguchi - certamente um imenso cineasta - quando Kurosawa, nem que fosse por ter realizado aquele que talvez seja o mais belo filme do mundo - Dodes’ka-den -, seguramente deveria ser reavaliado; era estúpido menosprezar Buñuel ou Wyler em prol de falsos autores como Preminger ou Minnelli. Os exemplos são numerosos: não há que ver nisso senão um anti-conformismo furioso e um desejo de desvincular-se, um desejo que fazia até com que um dos nossos (que desde então passou à televisão, onde freqüentemente programa bons filmes) considerasse Richard Thorpe - lamentável cineasta onde quer que seja - como “o melhor de todos!” Essas batalhas de nomes e essas rivalidades de listas hoje sem dúvida parecem muito fúteis. A Cinemateca, a de Henri Langlois, era então um lugar privilegiado onde se avaliavam, se desvalorizavam, se reavaliavam os cineastas e seus filmes: enormes retrospectivas onde se podia, de uma só vez, averiguar toda a obra de um cineasta. Os autores não eram ainda - como é o caso hoje em dia: ver como os filmes são sempre justificados, no “Pariscope” e em outros lugares, por seus criadores, freqüentemente fantasmas e fantoches - designados de antemão como tais. Só tinham direito a esse título os que acreditávamos que possuíam ao mesmo tempo uma temática e um estilo suficientemente reconhecíveis e originais, os que tinham, como alegremente dizíamos, sua visão de mundo. Essa famosa política dos autores, lançada ao grande desagrado e para o furor de todos, tanto para os críticos como para os espectadores, por alguns arautos dos Cahiers de então, não era evidente para ninguém: aqui e ali gerava indignação tanto mais ela era aplicada, em primeiro lugar, a um cinema, o cinema americano, que parecia, segundo a opinião de quase todos, ser regido pelos grandes estúdios hollywoodianos, pelos produtores poderosos que impunham seu ponto de vista.
Quem tinha razão?
Todo mundo e ninguém, sem dúvida: é certo que naqueles anos em Hollywood o diretor tinha poucos direitos e muitos deveres, tarefas a cumprir que lhe agradavam ou não, mas também é inegável que o cinema que surgiu de tudo isso foi, segue sendo, é, extraordinário, único e insubstituível.
Não seria esse então o motivo pelo qual alguns diziam que o fato de o cinema americano não poder ser um cinema de autor é que o permitia - o paradoxo aqui só pode ser aparente - ser o mais propício à criação, à expressão do talento, e até mesmo do gênio?
De qualquer modo é bastante notável, surpreendente até, do ponto de vista da lógica, que um cineasta como Joseph Losey, a partir do momento em que pôde finalmente filmar sem entraves os temas que tocavam o seu coração, com toda a liberdade que não possuía antes, perde quase por completo suas faculdades: seu período americano é tão rigoroso, exemplar, cheio de êxitos únicos e singulares quanto seu período livre é morno, desmesurado e os meios colocados à sua disposição desproporcionados em relação ao que está em jogo e seus resultados. (Basta comparar O Menino dos Cabelos Verdes, para citar um filme ao acaso, a Cerimônia Secreta, para citar outro, não exatamente tomado ao acaso, e observar de maneira flagrante que os filmes do período de entraves são sem comparação com os do período dito livre).
CINEFILIA 3
É raro que um cineasta possa fazer tudo: escrever, realizar, produzir, controlar seu filme de ponta a ponta. E quando consegue (exemplos existem, em todas as épocas), não é ele levado a reduzir sua atenção sobre alguma parte, obrigado que está a cuidar de várias coisas de uma só vez? O cineasta hollywoodiano de nossa (faustuosa) época não tinha essas preocupações: posto em ação por uma máquina bem oleada, seu trabalho consistia em obedecer, em realizar o que se pedira que se fizesse, ou em desobedecer. Ou seja, para um artista perverso (ou um artesão - pouco importa o nome), o que estava em jogo era algo muito mais sutil: tratava-se de fingir que se realizava, que se entregava o pedido, enquanto se insistia - era necessário ter a vontade, a obstinação, a seqüência de idéias - em reservar-se, no interior dos limites impostos, algumas zonas francas onde se poderia insinuar algo de diferente, alguns elementos do filme - considerados menores ou que passassem desapercebidos por parte dos comandantes - sobre os quais era possível efetuar, clandestinamente, sob o olhar cego dos patrões apressados, um trabalho de topeira, preciso, lógico, anônimo. Enquadrado por todos os lados e privado de liberdade de expressão, o metteur en scène podia, se tivesse o desejo - e é esse desejo, incensado, inútil e vão, um desejo por nada, um desejo por tudo, um desejo de dizer sem dizer, de fazer sem fazer, de estar em outro lugar sem deixar de estar aqui, de expressar-se sob pressão, sob a opressão, um desejo derrisório de querer trabalhar, de querer manter uma boa aparência e um bom coração contra uma má fortuna, um desejo de dizer, um desejo de fazer um pouquinho mais do que a parte imposta do trabalho, um desejo de expor-se a riscos, de expor-se em alguma parte, de arriscar alguma coisa, é esse desejo que desapareceu, que desaparece do cinema - sim, o metteur en scène podia, se tivesse o desejo - e talvez agora já não possa mais -, podia trabalhar no sublime, na cinzelagem de um detalhe ou na colocação de um olhar, na iluminação de um gesto ou na elocução de um diálogo, na ordenação delicada de uma cena, na menor das coisas: ele ali podia deixar algo seu.
[Talvez seja essa situação que à sua maneira os mac-mahonianos mostravam. Esse grupo de cinéfilos - cujo nome procede do cinema onde estava colada a foto da “quadra de ases” deles: Lang, Losey, Preminger, Walsh - era um exemplo total de lógica e rigor, inseparáveis de um fanatismo certo, que presidiam então o amor (louco) pelo cinema. A teoria deles se resume em algumas frases: existe uma perfeição do cinema da qual certos filmes se aproximam, e é essa perfeição o quê devemos perseguir sem cessar, uma transparência, uma adequação do estilo à matéria, uma elegância e uma inteligência do gesto, uma economia dos meios: teoria do momento privilegiado, isto é, do triunfo e da sublimação do fragmento, um fragmento que possuiria tal beleza e tal força de evidência que ele constituiria por si só um modelo, o modelo a que todo o cinema deveria tender. São os únicos cinéfilos, ao meu entender, que permaneceram fiéis à sua lógica até o fim: dispostos a defender apaixonadamente tal ou qual fragmento americano, fazia-se necessário reconhecer o bem fundado e a legitimidade do sistema que os havia tornado possíveis, daí o elogio da sociedade americana, a defesa do sistema político mais reacionário, a adequação mais radical da forma defendida ao fundo que ela implica e veicula. Os avatares dessa teoria - o texto, por exemplo, de Jean Curtelin, defendendo o personagem fascista de Aldo Ray em A Morte tem Seu Preço, esse “Sargento Croft, Pequeno Irmão” de quem o próprio Walsh se distanciava - são o anverso de um mesmo e único cenário, um mesmo e único sistema crítico, o único verdadeiramente coerente até hoje que explica e justifica um certo tipo de paixão cinefílica, o único também que não foi, desde então, substituído nem questionado. Coerência: mais do que converter em inseparáveis as obras da ética de que elas participam, é a coerência de escolhas o que, hoje em dia, segue ainda merecendo meu interesse: Mourlet nos Cahiers, e outros na Présence du Cinéma, adicionam àquela quadra de ases Ludwig, Heisler, Lupino, King, Dwan, Fuller, DeMille, Ulmer, Guitry, Pagnol, Mankiewicz, McCarey, Tourneur, e outros, todos eles grandes cineastas, alguns reconhecidos mas muitos ainda desconhecidos ou ignorados. Há aqui uma mina de talentos e de descobertas, ainda mal explorada, abandonada em prol de um cinema mais chamativo, menos secreto, feito de reedições de filmes superficiais que não são mais que ilustrações planas de tal ou tal gênero, filmes que funcionam com o menor dos denominadores comuns - o efeito -, filmes de “ôteur”[1]. O cinema do Mac-Mahon é um cinema mínimo, da defesa e da ilustração maníacas do detalhe sublime e transparente no qual os vestígios dos últimos valores do Ocidente cristão estariam contidos, e cuja soma formaria um afresco: estandartes despedaçados, bandeiras de gestos enfeitados, sonho de uma totalidade recobrada e soberana. Utopia fora de moda e surrada, talvez menos abjeta do que parece: quando seu desgaste é comparado à trama de suas aberrações definitivas - Uwasa no onna (Mizoguchi), Um Crime por Dia (Ford), A Noite do Demônio (Tourneur), Tarde Demais para Esquecer (McCarey), Os Inconquistáveis (DeMille).]
CINEFILIA 4
1959, 1960: críticos de cinema, os dos Cahiers da época, passam à realização de filmes, tornando-se manchetes de jornal mas, de modo algum, unanimidade entre os espectadores: a “Nouvelle vague” - Godard mais particularmente - atrai o ódio feroz de um bom número dos críticos e cinéfilos e de parte importante do público. Nossa paixão ensandecida pelo cinema começa com esse pano de fundo.
Para o cinéfilo de então, Godard é um herege: um exemplo a não ser seguido (ele parece jogar na fogueira aquilo que adorou, que nós mesmos acabávamos de conhecer com adoração: o cinema americano, sobretudo os filmes da série B), mas ainda assim um exemplo: a prova de que a freqüentação intensiva das salas escuras pode levar à atividade criativa, caracterizada, num primeiro momento, por uma crítica ativa dos filmes, e, num segundo momento, pela passagem ao ato: à realização propriamente dita. Apenas os mais jovens entre nós conseguirão sobrepujar a desconfiança provocada pelos primeiros filmes de Godard. Bande à part, com seu aspecto mais clássico, permite aos retardatários pegar o trem em movimento (outra etapa importante dessa reconversão foi Tempo de Guerra). Para os mais velhos já é, com freqüência, tarde demais: da direita como da esquerda (apesar de esses termos não darem conta da política da época) vem a condenação sem direito a recurso: a equipe da Présence du Cinéma tanto quanto a da Positif cobrem Godard de injúrias (o mais constante em relação a isso, aquele que permaneceu preso a essa época de reações epidérmicas as mais violentas, foi com certeza Benayoun, o atrasado). Os grupos se formam ao redor dos cineclubes e das revistas, ou melhor, minigrupos, cada um com suas particularidades; há, porém, uma idéia (mal chega a ser uma teoria: trata-se de um a priori implícito) que, por não ser formulada, é no entanto comum a todas as capelas de amantes do cinema: a transparência. O filme deve colar: aproximar-se o máximo possível de uma concepção fluida que nós temos da realidade. Ele não deve se sobrecarregar de truques e efeitos. Deve refletir o real. Primeira conseqüência: a montagem deve ser invisível a fim de que a ilusão de realidade, a ilusão de que todo o filme é uma só cena, um só movimento, seja total.
Compreende-se que os cortes de Godard fizeram os corações saltarem dos peitos de algumas pessoas.
(Se eu não falo dos textos de André Bazin, principalmente daqueles sobre a montagem, é porque eu não os conhecia à época: seria inútil, pois, querer fazer uma (sobre)impressão, gozar de um efeito de saber retroativo: isso só embaralharia as cartas. Por outro lado é indispensável relembrar a importância e a influência enormes de Jean Douchet. Nem Astruc, nem Rivette, nem Rohmer, apesar da pertinência e da precisão de suas idéias, obtiveram tamanha repercussão entre os cinéfilos. Isso porque a abordagem de Douchet - uma tematização rigorosa daquilo que constituía o universo de tal ou tal grande cineasta -, a abordagem temática como era chamada, era a mais propícia, porque ela explicava, quase que palavra por palavra, por que um cineasta era digno de carregar o nome de autor.
O que foi (de fato) feito: ainda hoje, para os céticos, os textos de Douchet sobre Hitchcock ou Lang possuem valor de ilustrações exemplares e de provas.
Como falar (com justeza) desses grupos de espectadores fervorosos que nós formávamos?
Pode-se dizer (Jean Narboni, artigo citado) da cinefilia que ela é “por essência fundamentalmente homossexual”? Não é mais uma vez ir rápido demais? Não é reprimir o real, ultrapassá-lo pela análise (aparentemente justa)?
A realidade, na sua simples estupidez, ultrapassa todas as ficções: a cinefilia é a princípio um fenômeno masculino, que não concernia (e não concerne nas suas novas formas bastardas) senão os homens. Devo dizer que quando uma mulher cineasta, irritada pelos hábitos e pelos tics da cinefilia, me fez perceber que isso se tratava de uma paixão exclusivamente masculina, a evidência da coisa fez com que eu não duvidasse nem por um momento, certo de sempre o saber, mas também quase convencido de nunca o ter formulado, de nunca o ter dito. (O porquê das mulheres não fazerem parte da cinefilia me interessa menos, hoje, que a explicação de como os homens a vivem). Mais que todos os ritos e todas as aberrações da cinefilia de ontem, a que era feita de passividade e de frenesi, de inconseqüência e de lucidez, de entrega e de rigor, é esse não-dito que nela constituía, que constitui, creio, sua essência irredutível, seu nó significante. De certas coisas não se fala, não se falava: o sublime pode se enfeitar com todas as palavras, desde que não interroguemos seu caráter sagrado. Do mesmo modo, e por via de conseqüência, a paixão cinéfila sonhava com esse caráter de evidência que jamais é questionada, senão nos seus aspectos triviais, essenciais, porém secundários. (Assim, o homem das fichas - como era chamado quem anotava conscienciosamente, metodicamente, os menores detalhes dos créditos dos filmes - nunca é perguntado sobre o porquê dessa ocupação, à época pouco evidente, mas sobre o seu saber: ele responde às questões, preenche as lacunas. Ponto).
Há duas evidências então: uma a respeito do que se é (o cinéfilo não questiona nunca seu posto de cinéfilo) e a outra a respeito do que se ama (ele não questiona seus objetos de predileção). (Poder-se-ia dizer, brevemente, que a unidade se dá mais no ódio - em relação aos maus objetos - que no amor: os bons objetos, os objetos adorados - “sublimes, geniais” - se invejam, se contestam, e assim é colocado voluntariamente em xeque o fervor do outro).
O que nós amamos (e o que nós odiamos também) não pode deixar nenhuma dúvida sobre aquilo que nós somos: um ser apto a responder a todas as questões (erudições e entusiasmos encorajam a conversa e a deriva; “que o dia recomece e que o dia termine sem que jamais...”) exceto uma: mas quem é você, afinal?
CINEFILIA 5
Era a época das descobertas, das classificações, das listas, das notas: uma história selvagem do cinema, que se fazia anarquicamente ou metodicamente, semana a semana. Nos Cahiers, o Conselho dos Dez atribuía suas estrelas (a fórmula foi, desde então, copiada por todos os lugares, esvaziada, portanto, de seu sentido): uma bola preta (não vale a pena se preocupar), uma estrela (assistir se for preciso), duas estrelas (assistir), três estrelas (assistir sem falta), quatro (obra-prima); tomavam-se riscos: descobrir a obra-prima ao longo de um mês era difícil, mas era possível (exemplo: maio de 1960: Acossado (Jean-Luc Godard), A Um Passo da Liberdade (Jacques Becker), O Tesouro de Barba Rubra (Fritz Lang), A Bela do Bas-Fond (Nicholas Ray), A Canção da Estrada (Satyajit Ray), O Sol por Testemunha (René Clément), De Repente, no Último Verão (Joseph L. Mankiewicz), mais um Blake Edwards, um Claude Sautet, um Henri Decoin, um Michael Curtiz com Presley. A ordem dos filmes é a da classificação deles naquele momento, obtida pela média das notas dos Dez, compostos por seis membros dos Cahiers e quatro de fora. Esse exemplo não foi absolutamente escolhido ao acaso, mas ele não possui nada de único ou de excepcional).
Cada um tinha então sua lista, suas classificações (os melhores filmes do ano, os melhores filmes do mundo, as obras-primas de tal ou tal realizador, os maiores cineastas), suas notas. Era necessário um estudo aplicado (com freqüência desprovido de humor, salvo raras exceções - Godard e Moullet notadamente), mas também um fervor e uma religiosidade sem falhas: a ambiência era de uma instituição religiosa marginal (underground, subterrânea), uma instituição fragmentada em diversos grupos - que eram nomeados justamente de igrejas - cujos participantes possuíam um desejo louco de trabalhar.
A emissão televisiva de Tchernia, Monsieur Cinéma, (retomada recentemente com um - já - doloroso perfume retrô), lembra irresistivelmente seu ancestral oficioso: as noites de terças no Studio-Parnasse: às perguntas mais difíceis e capciosas (atores do segundo plano, técnicos...), os mesmos dois ou três concorrentes (cinéfilos também, o que hoje em dia não é nem necessário nem suficiente para ganhar) respondiam com os pés nas costas, dividindo entre si os prêmios - ingressos para as próximas sessões. Mas isso não é tudo. Além de um sofisticado mural de cartazes (que apresentava as notas atribuídas por J.-L. Cheray, animador e programador daqueles jogos, e também a média das cotações dos espectadores), além dos debates que as atribuições dessas notas suscitavam (debates muito escolares: “O que vale a música? E a atuação dos atores? E a fotografia? E a mise en scène?”), havia o caderno. Ali eram escritas as reações (apreciações, injúrias, piadas infames, reflexões...), mas também conferia-se espaço aos desejos: “Por que não podemos ver Fabricantes do Medo (Tourneur)? E Delírio de Loucura (Ray)?”. Com freqüência já se sabiam as respostas antecipadamente (“As cópias foram perdidas. Os direitos expiraram”), mas podia-se formular um pedido, escrever...: isso não custa nada além de uma louca esperança, isso nos transporta por um instante para aquilo que é, que poderia ser, da ordem do milagre.
Mas por que esse amour fou? Para compreendê-lo, é preciso explicar suas circunstâncias. É preciso lembrar que além do fato - inegável hoje - de que os filmes que nós amávamos loucamente serem - quase sempre - extraordinários (eles nos tiravam do ordinário, tanto por suas ficções como pelo gênio deles, longe da mediocridade da “qualidade francesa” que então reinava), era preciso merecê-los: sair à procura deles nos velhos cinemas de bairro que os (re)exibiam em velhas cópias dubladas em francês (o que incluía expedições rumo às zonas mal-afamadas de St. Denis, à Cinemateca e até ao estrangeiro, tudo isso sem guia, às cegas), ter uma idéia sempre nova de um cinema desconhecido e maravilhoso, baldio, abandonado pela crítica oficial à perspicácia insolente dos que não queriam outros terrenos para desbravar senão os dos seres encantados, terrenos nos quais, para situar-se, era preciso ter uma idéia.
Ter uma idéia: o período é tão rico em descobertas (os filmes dos anos 60, mas também tudo o que os precede, largamente inexplorado, mal compreendido e mal visto pelos historiadores do cinema) que elas de forma alguma se esgotaram. Quem conhece Asas do Coração, Dirigível (os primeiros Capra do começo do sonoro - e do começo da aviação), ou, do mesmo Capra, Chuva ou Sol (que anuncia e já contém - e até mesmo vale - todos os filmes dos Irmãos Marx reunidos)? E para não se ater apenas ao cinema americano, quem se lembra de La nuit du carrefour, talvez o mais belo Renoir (e o único que faz justiça ao gênio de Simenon, que restitui alguma coisa da ambiência e do clima - não no sentido psicológico, mas no sentido meteorológico - dos seus romances)? Toda uma (nova) geração que não conhecia Ozu até poucos dias atrás, ainda ignora completamente O Arco-Íris (Donskoï), Confins (Barnet), Alemanha, Ano Zero (Rossellini), O Tigre de Bengala (Lang), Le diable boiteux (Guitry), Le voleur de femmes (Gance), A Imperatriz Yang Kwei Fei (Mizoguchi), Ensaio de um Crime ou A Adolescente (Buñuel), Entrevista com a Morte (Losey). E o quê dizer dos Dreyer, dos Renoir americanos...? A lista não tem fim e ajuda talvez a compreender o gosto por listas, precisamente: um pequeno jogo em que o saber e a erudição marcam presença, com certeza, mas também um meio de fixar - no papel ou noutro lugar - um pouco dessa memória fabulosa que resiste ao tempo e às modas, um meio de não se esquecer: confrontar essas imagens - que com mais freqüência costumam existir na e pela lembrança - àquelas que nós vemos hoje e, sobretudo: não se deixar influenciar; recusar a nostalgia (que deforma bem) tanto quanto o gosto do dia (que informa mal: o nascimento cotidiano de um novo cineasta, de um novo autor).
E que o fetichismo da lista não impeça jamais o retorno do vivo: o vestido amarelo de Ann Sheridan que salpica a tela em Almas Selvagens (Tourneur), o sangue vermelho brotando dos lábios feridos de Louis Jourdan em A Vingança dos Piratas (Tourneur, mais uma vez) ou o garoto atingido num piscar de olhos por uma bala perdida que o arranca literalmente do quadro em Choque de Ódios (Tourneur, sempre).
CINEFILIA 6
Todo este espaço destinado a Tourneur merece algumas explicações. Eu não creio que as análises de Biette (na honestidade direta delas, fiéis e imutáveis - contemporâneas do passado cinéfilo -, elas devem parecer ainda mais misteriosas e ambíguas) são suficientes para informar, esclarecer o leitor. Na verdade, só os filmes mesmo permitem ao espectador (começar) a ter uma idéia. Na ausência quase total deles, pode-se tentar - pura ousadia, talvez - enxergá-los com um pouco mais de claridade.
Por que eu considero Jacques Tourneur o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de resposta os seus dois únicos filmes a que tivemos oportunidade de assistir recentemente: O Homem-Leopardo (programado há não muito tempo no Ciné-Club da A2) e Choque de Ódios (relançado no Action-République e já criticado - voltaremos a falar disso - por J.-C. Biette).
De O Homem-Leopardo (um filme do qual Tourneur não é tão orgulhoso: mas isso é outra história, ainda que seja a mesma, a sua continuação e a sua conseqüência, ambas lógicas: suas declarações reúnem o que há de mais inverossímil, mais incoerente e mais contraditório, misturado com verdades de uma pertinência e de uma sutiliza únicas, contra-verdades, contradições - muito difundidas, muito recorrentes nas declarações dos cineastas americanos, divididos entre os discursos deles e aquele, onipresente, do cinema americano, um discurso de poder que tem força de lei e que implica regras e deveres, um discurso rígido, estereotipado, moral, com o qual eles são sempre, num momento ou noutro, levados a se confrontar, obrigados a se contradizer, a fim de salvar sua pele, um discurso do qual eles podem se desviar adicionando alguns toques subversivos pessoais, ou, o que é mais difícil e que Tourneur escolheu fazer, esposando totalmente esse discurso, o que elimina dele qualquer substância e qualquer realidade, o que o torna oco como uma convenção, superficial como uma tela, ficando entendido que, assim que esse discurso da lei tiver sido totalmente ridicularizado, é preciso contrabalancear esse efeito tomando-o plenamente para si, é preciso se criticar e enxergar-se dentro da lógica do todo poderoso sistema, é preciso tornar-se esse sistema e colar nele, fundir-se nele, implacavelmente -, uma mistura da qual a entrevista feita com J. T. por Simon Mizrahi no número 22/23 da Présence du cinéma - que será enormemente citada no anexo sobre Tourneur[2]- carrega os traços mais produtores de sentido, tanto os mais raros como os mais contemporâneos, traços proféticos os quais são os únicos a anunciar a chegada de um cinema novo, excessivo e sutil, invisível e presente, definitivo, irremediável), de O Homem-Leopardo pode-se dizer que é o mais completo, mais perfeito e representativo da série de três filmes produzidos por Val Lewton (foi o último. Os dois primeiros são Sangue de Pantera e A Morta-Viva). Um cenário quase único, uma rua, uma rua principal. Figurinos estereotipados, atores que possuem mais ou menos a mesma altura, as mesmas características. (Na última entrevista que ele concedeu - que lhe foi concedida, na verdade - a Jacques Manlay e Jean Ricaud no espaço de uma emissão da FR-3 Bordeaux, entrevista publicado no número 230 de Cinéma 78, Tourneur aponta nos filmes que ele vira na França - ele se retirara em Bergerac havia alguns anos - o seguinte defeito: “o jovem rapaz e seu amigo se parecem como duas gotas de água, confundimos ambos todo o tempo, embora isto seja elementar: o cinema conta uma história, como quando éramos crianças; nós precisamos compreendê-la”. Talvez seja aí que se deva buscar o motivo da baixa estima que Tourneur nutria por este filme). Enfim, quase todos. Uma exceção: um personagem - central, principal assim como secundário na distribuição -, que organiza o roteiro, que dá as cartas, que tem as cartas na mão (Tourneur: “havia apenas alguns momentos interessantes nesse filme e uma boa atriz, Margo, que interpretava o papel de uma cartomante” Pr. du Cin. ob. ct.). Dessa mediocridade, dessa pobreza de contrastes, Tourneur retira o máximo, o filme que mais perfeitamente causa medo na história do cinema: a estrutura da história (uma rua, uma mulher que anuncia o que vai acontecer, alguns personagens em miniatura como marionetes todos feitos a partir de um mesmo modelo) não é outra senão aquela (nenhum a priori teatral ou linear, nenhuma ambiência onírica ou poética convencional), a qual se conhece o tempo inteiro - confusamente - e dentro da qual se avança, enquanto uma espera monótona por um clarão que pusesse fim ao nosso medo nos prende numa agonia total, numa agonia ordinária. Com, por toda etapa neste trágico e triste trajeto, um galho de árvore que se quebra com o peso de um leopardo assassino e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta. Tudo numa luz transparente, translúcida.
Isso ocorre de forma diferente e parecida em Choque de Ódios. Diferente, porque se trata de um roteiro complicado (um roteiro que Biette erra ao seguir ao pé da letra, com tanta seriedade, primeiro porque ele não é muito bom, em seguida porque Tourneur não se preocupa de forma alguma com temas e tramas, mas sim em filmar nada além do que há entre: o espaço, o vazio, o ar entre os atores, com o cenário, e até o que há entre os atores e seus personagens, seus figurinos, suas vestimentas), um roteiro complicado e um filme entre dois orçamentos: nem o grande filme, nem a série B, um monstro de filme, uma aberração. Parecida, porque Choque de Ódios é, em decorrência do hibridismo livremente aceito por Tourneur - que salvo alguma rara exceção, jamais recusou um projeto de filme - do roteiro e de suas condições de filmagem, um filme sobre o tédio e um filme no qual nós nos entediamos. Não como se deve entediar-se - é a regra - diante dos grandes clássicos da pretensa história do cinema. Não há relação com isso. Diz-se com freqüência - e com freqüência é falso - que todo grande filme é um documentário sobre sua própria realização. Aqui, isso é verdade: um homem de mais de quarenta anos (Joel McCrea), sem dúvida um homem inteligente, sensível, orgulhoso, obrigado a disfarçar-se de Wyatt Earp, o célebre justiceiro do Oeste, para fazer reinar a lei e a ordem numa pequena cidade em desenvolvimento chamada Wichita. E tudo isso diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur (com quem ele houvera filmado, seis anos antes, um pequeno filme intimista, O Testamento de Deus, uma série de vinhetas sobre a vida num pequeno vilarejo americano, um filme que é, para os dois, a mais bela lembrança e o mais belo momento de suas carreiras. cf. Pr. du Cin. ob. ct.), um velho amigo com um olhar cético e divertido (mas sempre correto), que devia se perguntar, dado que (ob. ct.) ele gostava da idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e que esperam muito tempo até poder beber um copo; quando eles podem fazê-lo, eles bebem demais e quebram tudo. É real. Isso aconteceu na época, um velho amigo que devia se perguntar, diante de Joel McCrea irritado por debaixo do figurino de justiceiro numa missão implacável, como filmar ao mesmo tempo e muito corretamente as inépcias de um roteiro para crianças retardadas, e a violência que eclode mortalmente e que, para ele, confere a força à fábula. Para dizer a verdade, Jacques Tourneur não se perguntava nada, dado que ele houvera escolhido: ele filma ao pé da letra e sob comando os protagonistas entediados e fantasiados dessa mascarada histórica a qual reconstitui as pequenas verdadeiras histórias do Oeste folclórico (e nós nos entediamos como eles ao vê-los ocupar como podem aquele espaço impossível de preencher do CinemaScope o qual, no entanto, Tourneur consegue ocupar completamente; mas esse é um tédio formidável, de uma inteligência e de uma precisão fotográfica tais que nos dão a ver ainda mais, sobre o Oeste e sobre a máquina hollywoodiana, dois mecanismos que têm hoje para nós o estatuto de pré-históricos, que cem dos mais belos - ou dos piores - westerns. Tudo está em quadro. Não há fora de campo. Nada existe - e é infinitamente suficiente - salvo toda a complexidade fielmente e minuciosamente recriada de uma decupagem impossível de se acreditar, porém possível - e para Jacques Tourneur tudo é possível - de ilustrar, de filmar, tal qual), mas ele filma também a morte, e como ninguém: na moldura de uma janela, na moldura de uma porta, atingido por duas balas perdidas e precisas, um garoto e uma mulher, ambos inocente (apenas culpados de serem parentes dos atores do drama), passam, num piscar de olhos, na velocidade mais terrível e mais inexorável, do estado de vida ao estado de morte. Aquilo que há apenas um instante se movia é marcado definitivamente pelo selo da imobilidade, da rigidez. A morte é a parada brusca e irreversível de toda vida, de todo movimento. E não há mais nada a se dizer.
“Para Jacques Tourneur, os personagens de uma história são perfeitos desconhecidos cujo mistério não precisa ser esclarecido ou explicado.” (J.-C. Biette).
Acrescentemos: nada existe além da fidelidade mais escrupulosa à decupagem escolhida para se impor; nada existe além daquilo que há na tela, no quadro. O cinema de Jacques Tourneur é certamente o cinema do invisível, mas de um invisível que se lê e que se desenha sobre o próprio tecido da tela: os traços estão lá, as impressões, e as sombras, e basta, no seu pequeno fora de campo passional e pessoal, saber não vendar os olhos; basta saber não vendar os olhos diante da persistência do real, das manchas do real que são as marcas efetivas na tela de uma experiência única do invisível; basta ver o filme, faz medo, isso está lá, se vê.
CINEFILIA 7
Tourneur representa a escalada derradeira, a conquista absoluta da cinefilia. Talvez ele não seja, “como quem não quer nada, o grande negativo do cinema hollywoodiano entre 1940 e sua decadência em 1957” (Biette, Posfácio a Trois Morts, Cahiers nº 285), simplesmente porque, como quem não quer nada, todos os autores desse cinema hollywoodiano são, em proporção menor, seus negativos. Não existe nenhum grande cineasta americano que não tenha, à sua maneira, revelado o inverso (cúmplice ou denunciador) do sistema e suas estruturas. E, não é por nada, por acaso, que os filmes sociais de Ford assemelhem-se como duas gotas d’água aos mais belos filmes socialistas da Rússia Soviética. Um grande cineasta se engaja sempre (e em todos os sentidos da palavra). Tourneur é mais moderno, mais radical, mais inteiro/disperso que os outros grandes autores da cinefilia, autores de que falamos menos porque são mais conhecidos (aqueles que o são menos não param de nos surpreender, mas sem dúvida este não é o momento nem o lugar para empreender um trabalho de escrita de uma história do cinema, trabalho longo e metódico e sério que ninguém até hoje verdadeiramente começou), autores dos quais devemos esperar que a acessibilidade maior e mais democrática, por meio da televisão notavelmente, permita ao espectador escrupuloso ter uma idéia: é a única ilustração, a única prova razoável da busca apaixonante e apaixonada do cinéfilo, a única maneira também de comparar as obras do passado com o que se faz, se vê e se entende hoje em dia.
Nós estamos, portanto, no topo. A arte do invisível, do segundo universo, paralelo, da segunda vez. Muito perto e muito afim em intensidade e beleza daquele cinema, um outro, aquele da primeira - e da última - vez: o cinema de Lumière. (Eles honram seus nomes, tourneur, lumière, nomes comuns, lugares mágicos). Essas duas experiências-limite do cinema, as mais fortes e as mais definitivas, antecipam simbolicamente o que está povir: a explosão da cinefilia, sua morte e seu fim; um fim de realeza, uma morte vergonhosa: Maio de 68, uma data, um choque. Estranhamente, de maneira premonitória (duplamente: como prova de que Maio de 68 sentencia o fim deste cinema, desta cinefilia, e de que deste cinema é que serão tecidos - para sua maior desgraça e menor caso - os dias de glória sem fim de um irreal mês de Maio), o caso Langlois precede e anuncia uma seqüência, menos feliz certamente: Langlois, ameaçado de expulsão de sua própria cinemateca; um movimento espontâneo, anárquico e inesperado, se forma em defesa dele. Manifestações, brigas, os cineastas e cinéfilos se mobilizam (estes que com freqüência são muito pouco ou muito mal politizados, desta vez estão muito fortes, muito determinados, muito unidos). Anedota ou história pequena, dirão uns, sobre o que para mim é uma coincidência nada acidental: um jovem, belo orador gago (que sem dúvida se importa com o cinema como com a sua última meia - quer dizer, pensando bem...), um jovem de cabelos vermelhos anima com orgulho - rua de Courcelles - e febrilmente a multidão. Adivinha-se (hoje) o nome que não se conhecia (ainda): Daniel Cohn-Bendit.
Conhece-se a seqüência: Langlois reintegrado, mais lendário que nunca (tirânico, maravilhosamente bom, simplesmente louco, um homem maravilhoso e inesquecível - tantas lendas que se encaixam na realidade, o que não é costume). O que se conhece menos é o que segue à seqüência: como a (pequena) revolução de Maio de 68 - que não enterrou grande coisa - meteu a sete palmos do chão, e por muito tempo, a cinefilia, seus sonhos, suas esperanças, suas realidades.
(limito-me aqui a contar algumas fases de uma evolução que me é totalmente pessoal, uma evolução brutal que sem dúvidas me abalou de maneira mais forte, duradoura e intensa que a muitos outros. Ela não me parece, porém, menos sintomática de uma doença e de uma evolução mais geral que prevê, do meu ponto de vista, um pouco como a estrutura viva, o quadro geral).
Maio de 68: manifesta-se, move-se de modo febril nas cabeças e nos corpos. À paixão entretida e vivaz de um tête-à-tête permanente com sombras mais vivas que a vida das salas de cinema perdidas, sucede um corpo a corpo também febril com idéias generosas e loucas, idéias que devem se confrontar sem cessar aos corpos e às idéias dos outros, os passantes anônimos, os corpos de reencontro. Cada um se expõe, cede suas esperanças, se liberta de velhas obsessões: pro cinéfilo, a tentação de uma autocrítica radical é grande, como é insanamente grande o desejo louco de se juntar a um passado escravo (sim, eu fui enganado) e de encontrar ao mesmo tempo - como uma luva, como um desafio - a parte da escravidão - de dependência alucinada e beata - de cada um.
Na rua, o que parece ser, pela primeira vez, desmesurada, utópica, real, é a consciência.
Nos arrabaldes do Cineclube Universitário, enquanto do lado de fora ela move e coloca em questão o mundo, diante de uma tela ocupada por filmes políticos e militantes, numa sala constantemente cheia - as sessões são gratuitas -, os novos cinéfilos (já) estão a trabalho: contentes (aparentemente) de aprender o lado bom das coisas, espremidos à esquerda do mundo espetacular do non-stop (permanente, interrompido) e do fluxo político, miseravelmente reduzidos à mais escura miséria estudantil, aquela que não tem a menor idéia e a menor perspectiva sobre sua estupidez e pobreza beatas.
Desta dualidade flagrante, gritante, entre um exterior que grita, um exterior que queima e um subsolo que dorme, que geme, que fecha os olhos - o mesmo público, em suma, que o da cinemateca da rua Ulm, onde os estudantes sem dinheiro mas embriagados goela abaixo de cultura poderiam ao acaso assistir a filmes, sem importar quais, no acaso absoluto - o importante não era aquilo se mover no escuro? -, deste confronto dual, uma idéia (de ex-cinéfilo não recuperado de suas emoções passadas mas disposto a colocar seu saber e suas experiências a serviço de lutas mais exaltantes, mais generosas) deveria nascer: se o cinema aliena (tão bem e tão forte) no momento mesmo em que uma tomada de consciência (uma desalienação) está em via de se produzir, é 1) porque ele tem a ver com esta alienação geral. Que é culpado. Que deve pagar 2) que há talvez alguma forma de se servir da causa mesma - o cinema - de uma boa parte do mal, em prol dos interesses contrários: o bem, o despertar, o questionamento, uma outra política e um combate maior, mais largamente inédito, mais revolucionário - era essa a palavra - numa só palavra.
A idéia: três filmes (um Renoir, um Hawks, um filme cômico, se me lembro bem), três filmes populares seriam projetados em quatro bairros diferentes, na rua, sem anúncio, sem explicação. Com a esperança - legítima: deve-se recordar o fervor da troca de palavras, das discussões espontâneas até muito tarde da noite, o acaso dos encontros - com a esperança, então, de perguntas populares e simples, com a esperança de um debate vivo, de um debate bruto sobre a natureza do cinema, sua função adormecida, seus mecanismos de identificação, suas estruturas fechadas, pagas, particionadas, normatizadas, esperando algo totalmente diferente talvez: uma abertura, um estalo - de voz? -, uma resposta do outro a duas ou três obsessões do próprio.
A idéia não foi levada adiante. Os dirigentes (políticos como os outros) do Cineclube U. recusaram, sob os pretextos mais fúteis, vazios, contraditórios: sem dúvida havia para eles algum perigo.
A idéia foi levada adiante: uma intervenção (posterior) para substituir a projeção de um filme (noutro local da universidade) por um debate contraditório sobre o porquê e o como da relação (em maio/junho de 68 isto se colocava de maneira urgente) com este filme - com todo filme - ter se degenerado rapidamente: provas tangíveis e dolorosas (pelo espírito mais ainda que pelo corpo) da resistência violenta de quem tentam privar de seu filme, da relação violenta que a pessoa tem com esse filme: golpes, brutalidade, poucas palavras trocadas. Resultado nulo para os espectadores, aprendizagem viva para o cinéfilo que navega em dúvidas. A idéia foi levada adiante: não quero falar dos États Généraux du Cinéma e outras (sobre)impressões mais ou menos passageiras sobre uma profissão que perdia vivacidade. Simplesmente recordar algumas idéias, destas que não se esquece facilmente: frente a uma realidade violenta - tangível, bruta, brutal - da relação do espectador (e do cinéfilo: fomos os primeiros, alguns meses antes de Maio, a gritar contra certos heréticos que se permitiam perturbar a quietude e serenidade duma projeção) com seu filme, não se pode mais não se perguntar algumas questões: por que e como a invenção dos Lumière (alguns minutos de tomadas fotográficas e animadas sobre o real fugaz, num espaço que tem algo de feira e algo de museu) se transformou, se normalizou a este ponto: uma sala, de imagens falantes, montadas, mixadas, estandardizadas em sua duração e seu formato; imagens e sons reunidos de tal maneira que formam uma história, uma ficção, com seus códigos, suas convenções, todo um ritual imutável e fixo etc. (embora se conheça a história, sabe-se que poucas vezes mergulha-se nessa aberração - inevitável - que constitui a formatação definitiva do cinema tal e como o conhecemos). A idéia foi levada adiante: da utopia (trabalhar sobre a câmera mesma, imaginar outras hipóteses para a evolução do cinema, fazer como se tudo aquilo não passasse de um sonho - ruim - e que poderíamos despertar, recomeçar o cinema do zero) à realidade mais próxima do possível (o cinema de autor e o cinema político se tornando uma única e mesma coisa, que se quebra, que morre, que, enfim, pode fazer surgir um novo tipo de filme, um novo espectador, uma nova relação entre os dois), uma evolução teve vez, irreversível: talvez, depois de tudo, o cinema (a representação) não fosse o mal absoluto (comunicação impossível, mediatizada, dessacralizada), talvez não tenha sido tampouco a fonte de toda alegria, de todo o deslumbramento (diante do loucamente real, o loucamente imaginário), mas com certeza não foi grande coisa, nada - ou quase: nem um meio de expressão, nem uma arte, nem uma indústria, mas um pouco dos três: uma atividade que não implica tantas conseqüências; que não tem senão pouca energia e efeito, nada, mas ao menos uma ínfima parte de tudo, uma mescla contraditória do sagrado (o homem convertido em deus no fora de campo do enquadramento) e do herético (desafiando o proibido de toda representação humana, ímpia): somente hoje, quando se esvazia o pouco de sentido que ainda persiste em aderir, agora que se é menos do que nada (uma impostura, uma farsa, um sopro), somente hoje essa enferma e informa mescla que já não tem nada de cinema além do nome poderá - talvez, sem dúvida - deixar-se fazer e permitir-se algumas liberdades em filmes, filmes sem esperança e sem ilusões, novos e afiados, saídos do nada para chegar a apenas algo mais - mas este pequeno suplemento é que fará toda diferença - um pouquinho mais que nada (e nada a ver com um certo suplemento de alma), um pouquinho a mais de nada.
God Save the Queen
Deus salve a Rainha,
She ain’t no humain being
Ela não é um ser humano
There is no future
Não há futuro
In England’s dreaming
Nos sonhos da Inglaterra
Sex Pistols (God Save the Queen)
Louis Skorecki
Notas:
[1] Jogo de palavras que aproveita a pronúncia parecida, no francês, de auteur (autor) e ôteur (usurpador) (n.d.e.).
[2] No artigo original Skorecki incluiu, entre “CINEFILIA 6” e “CINEFILIA 7”, um longo “Anexo sobre Jacques Tourneur”, constituído principalmente de (belas) declarações do cineasta. O autor “convida” “aquele que teme perder o fio da história” a considerar isso como “uma simples nota”. Por razões de espaço, optamos por não incluí-lo aqui (n.d.e.).
[3] Metzitude é um neologismo que reúne o nome do teórico da semiologia Christian Metz e a palavra platitude a qual se refere a algo raso, medíocre. Ça-gesse literalmente significa “isso engessa”, no entanto é um trocadilho, pois “sabedoria” em francês é sagesse (n.d.e.).
(Cahiers du Cinéma nº 293, outubro 1978, pp. 31-52. Traduzido por Cauby Monteiro, Luan Gonsales, Marlon Krüger e Matheus Cartaxo. Revisado e editado por Matheus Cartaxo)
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