COISAS SECRETAS
(Choses secrètes). 2002. Les Aventuriers de l’Image/La Sorcière Rouge/Centre National de la Cinématographie (112 minutos). Produção: Jean-François Geneix, Jean-Claude Brisseau. Produção executiva: Jean-François Geneix. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Wilfrid Sempé (Eastmancolor). Som: Olivier Grandjean, Xavier Piroelle, Bernard Leroux. Música: Johann Sebastian Bach, Henry Purcell, Antonio Vivaldi, Zipoli, George Frideric Haendel. Música original: Julien Civange. Cenografia: Maria-Luisa Garcia. Montagem: Maria-Luisa Garcia. Elenco: Coralie Revel (Nathalie), Sabrina Seyvecou (Sandrine), Fabrice Deville (Christophe), Blandine Bury (Charlotte), Roger Mirmont (Delacroix), Olivier Soler (Cadène), Viviane Theophilides (Senhora Mercier), Dorothée Picard (a mãe de Delacroix), Pierre Gabaston (o dono da boate), Lisa Hérédia (a mãe de Sandrine), Arnaud Goujon (diretor de recursos humanos), Liès Kidji (o ladrão), Patricia Candido Trinca, Lydia Chopart, Michaël Couvreur, Boris le Roy, Aude Breusse (os empregados do escritório), Aurélien Geneix (o homem na festa), Alain Couesnon, Bruno SX (os seguranças da festa), Jean-Claude Brisseau (o pai de Sandrine - não creditado).
Para começar, uma constatação proposta pelo filme: a vida é um sarcófago. A felicidade e a verdade estão escondidas, fora de alcance. É necessário se organizar, refletir, agitar-se para tentar trazê-las novamente à superfície. O que quer dizer que é preciso confrontar-se muito consigo mesmo e com o mundo para ter uma chance de descobrir a pedra filosofal. O orgasmo é uma via possível rumo à eternidade e ao absoluto. Os corpos são instrumentos cujo perfeito controle pode significar o acesso à transcendência.
É nestas condições que a exaltação da vida das pulsões e das fantasias parece ser uma solução para fugir da espada de Dâmocles da morte e das relações de interdependência entre economia e sentimentos. Mas esta vida é, em si mesma, uma armadilha, pois ela supõe o reino do mal, da violência e da morte. Ela não se separa nunca de sua parte sombria. O erotismo age como uma droga estimulante e viciante, sem deixar de ser um estratagema arrebatado pela paixão e um conjunto de cálculos frios perturbado por titilações incontroláveis. Essas contradições do erotismo fazem com que ele seja apresentado em um conjunto de espaços e de cenas isoladas, até mesmo herméticas, mas onde o olhar e o desejo podem circular livremente. Os personagens são hieróglifos (o roupão de Nathalie; as palavras violentas de Nathalie aconselhando Sandrine; a primeira aparição de Charlotte no escritório...), mas se deixam ser decifrados quando o querem (a coberta levantada; a espera do colega no escritório; os discursos do método e as explicações do jogo proposto por Christophe...). As cenas e partes dos cenários são caixas comunicantes onde evoluem os corpos e as paixões que eles geram: as evoluções na escala social; os deslocamentos em um corredor ou em um apartamento escancarado; a pista de dança; as garotas em banheiros ou em seus quartos; a masturbação para o prazer de ser vista e de imaginar o desejo do outro... Mas, na realidade, essas caixas são fossos, sarcófagos, onde caem paixões, excitações e cálculos que evoluem por um momento, depois terminam por se esgotar e apodrecer (o pai no seu jardim de subúrbio; o metrô; os escritórios separados; as cavernas do castelo; Nathalie repudiada por Christophe...). Ascender ou circular na sociedade é sempre se fechar mais enquanto que ficar em seu próprio lugar é morrer. A intensificação da emoção se faz sem se perceber. Um plano após o outro. Uma performance de atriz após a outra.
Nesta pirâmide que se fecha lentamente, a agenda está cheia. A destruição da possibilidade de uma transcendência se opera com o caráter inexorável do fluxo de uma ampulheta. O prazer e a ascensão social pela sexualidade são armadilhas. A vida interior e a vida exterior se equivalem. A eternidade e a felicidade são sempre tocadas de relance antes de se esvaírem pelas mãos. Mil sensações. O verdadeiro e o falso são utilizados com uma ciência de complexidade infinita pelas manipuladoras sobre os manipulados, pelas manipuladoras que são as manipuladas. É que aqui os seres e as coisas não sabem mentir. O didatismo, dado pelos personagens e pelo roteiro, pode parecer agir como uma proteção, mas, de qualquer forma, a câmera não mente. Este cinema está nu em pelo, nu consigo mesmo e na sua aproximação com as coisas. Sua estética é a sua moral. Ele funciona em modo de economia, o que significa que ele sabe gastar quando é necessário. Não se trapaceia. Nem com as pessoas, nem com as palavras, nem com a voz off, nem no pico do orgasmo, nem na simulação integral.
No interior de um primeiro paradigma estético, as coisas se formam ao adotarem um aspecto compacto, padronizado em blocos de percepção limitados ao formato 1.33. Com isto feito, o sexo é apresentado o mais diretamente possível como um espetáculo, uma pose, uma performance e uma cerimônia sagrada. A organização de uma percepção compacta das coisas permite também sua fragmentação (desaparecimento de uma protagonista; montagem enfatizando as passagens surpresas; supressão de acontecimentos importantes; hesitações e observações de uns sobre os outros expressas através de cortes secos...). A nudez funcional - assim criada graças também a uma fotografia supressora de equívocos sobre as formas e os espaços - revela-se propícia à análise materialista global, que se deseja sócio-psicológica e filosófico-medicinal, sobre a mulher e o homem [vistos] como compostos de elementos que se decompõem (infância; libido; sonhos; liberação física do orgasmo; desejo de ascensão; desejo de se estabelecer...).
O mundo das paixões é apresentado da maneira mais racional possível. Especialmente porque o irracional bate à porta. Trata-se da parte séria e fundamentada do roteiro e dos personagens, cujo controle e a frontalidade da abordagem devem contrabalançar a desordem interior e exterior mais e mais pronunciada. E isto, em parte, para se proteger, e mais ainda para se assegurar. A realidade deve ser aprisionada, escravizada por um sistema de esconderijos (os cenários e os enquadramentos já mencionados), mas também pela extrema ornamentação das bijuterias e pela nudez atuante do sexo, os quais remetem às mesmas coisas. Ou seja, a panóplias, a uniformes, a um percurso e a uma aprendizagem. Em uma palavra, a arquétipos. Os personagens são objetos vivos vistos de uma perspectiva luciferiana. Eles são vistos como grãos de poeira perdidos no universo, como grãos de areia se dirigindo cegamente para o seu fim nos suspiros do orgasmo, este entendido como uma mecânica e como a condição infeliz do animal humano. É o trágico em pequena escala. É o estilo “código civil”, o tom “os homens: modo de uso”. Não há desvios. É preciso completar uma agenda política, filosófica e social do triunfo pessoal. “Ousar” como palavra de ordem, e “masturbe-se” como método.
Nesta perspectiva, o filme é concebido para analisar o espetáculo do gozo, mostrando-o de forma distinta. Trata-se de uma reflexão em obra que produz categorias de análise, repartindo desta forma o que mostra. Por exemplo: os clientes da casa de strip; as garotas arremessadas na calçada; o pai no seu jardim; a porta batendo na cara do usuário do metrô; as duas mulheres sozinhas em um quarto/nuas debaixo de seus impermeáveis em meio à multidão; os ruídos do metrô; as fantasias na cabeça; o erotismo de tele-sexo dos trabalhadores do escritório; a secretária enclausurada no seu box; os planos de uma parte do corpo de Sandrine durante a sedução ao seu patrão... Brisseau se enerva com os jogos muito bem ordenados. Tal como o Bresson de As Damas do Bois de Boulogne (Les dames du Bois de Boulogne, 1945), ele suprime o verossímil e o conforto da percepção sem renunciar a uma lógica de progressão no íntimo até chegar ao sublime.
Mas um segundo paradigma estético ultrapassa os casos específicos exigidos pela voz off e a linha narrativa. É o da violência poética, da contradição interna, do terrível imprevisto, da dimensão inesperada saltando à vista (a música; a dimensão mítica e principesca dos personagens; uma maquiagem remexida pelas lágrimas). Nesta perspectiva, o cinema é feito para que tudo queime, para revelar a dimensão subitamente perturbadora de um personagem: a duplicação ou triplicação de formas de olhar para a narradora; ver o sol de frente para Christophe... O ser humano é revelado à sua própria natureza. Ele sonha a dimensões intensas demais para ele e praticamente intoleráveis ao espectador. O mundo extraordinário no qual ele evolui (telas orgíacas; o mundo do escritório simbolizado por um corredor com aparições e desaparições) está súbita e inteiramente ao seu alcance, mas este pode também esmagá-lo (coações após coações; as zonas escuras da paixão; liberdade e jogos intensos demais; presença insustentável em um lugar ou mesmo muito sofrimento de ver ou imaginar o outro...). As dimensões atribuídas ao homem pelo filme são, portanto, imensas, e blasfematórias nas suas aspirações à divindade. É interromper a trajetória do sol ou ver de frente a morte. É o desespero em um nível de intensidade inédito. É o sexo como misterioso ponto de acesso à eternidade pela confusão entre exterior e interior: as danças; o túnel do metrô e o esconder-se atrás da porta ou na entrada de um prédio; a paixão expressa diretamente através de coreografias amorosas; a transparência das motivações expressa pelos diálogos apesar de uma total opacidade dos rostos; as cortinas que dissimulam ou revelam um corpo ou uma cenografia. Neste cinema, o ponto de equilíbrio permanece invisível. As verdadeiras motivações se mantêm sempre em retração. A fronteira entre o verdadeiro e o falso é indefinida. É impossível saber o que se quer. Todos manipulam e são manipulados em todos os níveis. O tecido do mundo é ruidoso, caótico. O estilo de escrita é ágil a fim de recolhê-lo sem destruí-lo. As ascensões arfantes e os gastos de energia em vão são como que compensados pela maestria no controle de um travelling ou a gestão perfeita de um plano-seqüência. Brisseau mantém a cabeça fria diante dos extravasamentos interiores de seus personagens. Ele compõe quadros com uma matéria friável. Ele sonha com a eternidade através do papelão régio, como DeMille em Os Dez Mandamentos (The Ten Commandments, 1956).
Mas então onde está o verdadeiro? Onde está o ser? Ele ainda está por vir. Ele ainda está acorrentado. Ele não governa o seu destino. Ele tem um mestre neste mundo.
Quem, então, governa esse mundo violentamente material? O Príncipe da Terra? Dionísio? Prometeu? Um jovem patrão de uma pequena-e-média empresa francesa do início dos anos 2000? Não importa. Ele é o alfa e o ômega dos jogos do desejo e do poder. Com ele, tudo é matéria e imagens. Ele próprio é uma imagem perfeitamente lisa. Seus discursos e seus atos são de uma clareza perfeita. Ele se insinua dentro das consciências e das vidas antes de serpentear, formando uma linha estilhaçada, feita de toques de vida e de morte. Ele faz movimentar a máquina do mundo antes do aprisionamento da pirâmide. Seu escritório e os outros cenários onde ele aparece são templos, do mesmo modo que sua perfeição física parece não poder sofrer nenhuma alteração. Mas, ao seu lado, à sua frente, no mesmo plano que ele, ou nas malhas de seus planos e manipulações, os seres e os corpos (e, primeiramente, aqueles das mulheres) são quantidades de matéria perecível, são zonas de escuridão tais como são filmadas a boca aberta, a mente repugnada ou a nudez capaz de sempre ser despida, os olhos claros insondáveis, a pele tornando-se cera, a penetração útil ou gratuita. Este senhor alimenta-se do emaranhamento complexo de redes de poder e desejo. Ele governa um reino dedicado à morte e à destruição, mantendo sua decadência permanente. Ele coordena o grande atrito permanente em que a vida se desmorona em esperanças frustradas, bloqueios sociais e autodestruições por imolação. Mas ele o faz primeiramente, e antes de tudo, pelo sexo, suas ilusões mantidas ou sofridas, suas manifestações fascinantes de poder e seus patéticos esgotamentos (corpos entrelaçados; dinheiro queimado; compulsivas contagens de dinheiro por uma garota abismada e ajoelhada em um canto). Essas pungentes vaidades, que ele organiza em um jogo prometendo e procurando a liberdade absoluta, vaidades cuja derrisão ele saboreia, são imagens precisas (o relógio; o relato de infância e a decomposição de sua mãe diante dos seus olhos; o falcão; o envelhecimento...). Elas são dadas explicitamente como explicações de seu desprezo pelo mundo sensível e pela vida, com a qual ele faz o que quer. Estar sob o seu controle é seguir sem escolha, conspirar sem escolha, viver sem escolha. É ser escravo. Os seres e as coisas são integralmente desvalorizados.
Mas o diabo em pessoa procura a transcendência ao querer perenizar seu poder (o raio de luz no momento da união com a sua irmã). Esta forma absoluta e brutal de materialidade, visível ao ponto mais alto nas cenas de triunfo da matéria (orgias; exibições; seduções; o espetáculo do dinheiro), ainda que de maneira subterrânea nas repercussões desses triunfos, é a própria maneira de revalorizar a vida pelo sublime artístico (os corpos sempre entre a mecânica e a liberação da graça; a música de Bach e Vivaldi; a intensificação da luz...). O império da matéria, o grau zero da moral e a libertinagem mais completa têm esta tendência a um niilismo tão absoluto que se torna, apesar de si mesmo, no seu próprio esgotamento e uma vez atingido seu ponto culminante, o vetor de um possível acesso à transcendência. Por definição, o manipulador-chefe brinca com fogo. Ele mesmo faz a citação que explica as coisas secretas. Para além do seu sentido aparente, referente às sociedades secretas, às manipulações, aos mistérios do desejo feminino e à dominação perante a morte, as coisas secretas significam que a transcendência é sempre possível nas rupturas visíveis dos jogos das atrizes e na interseção da verdade e da simulação, que reverte um poder contra a ele mesmo...
O que pode permitir uma visão mais clara tende a liberar a beleza e a verdade, de uma cerimônia ou de uma estratégia, ao fracioná-los em partes que poderão enfim recompor um todo coerente. Diante das coisas secretas, importa ao filme privilegiar a redefinição permanente de sua abordagem dos atores, dos espaços, das durações e da narração, ao mesmo tempo em que não renuncia a perseguir um movimento linear. Um terceiro paradigma estético aparece. Consiste em levar o segundo paradigma às suas últimas conseqüências para eclipsar, pouco a pouco, o primeiro paradigma e depois subvertê-lo. Tudo é inflamado com a festa, a morte do pai, a derrubada do primeiro patrão... O que significa uma progressiva perturbação das referências e até mesmo a revelação do mundo atrás do mundo. É uma abertura à pura irracionalidade (a morte, a eternidade, as imagens de olhos, o desejo, a embriaguez, a paixão, o fogo, o fogo, o fogo - atirar contra o sol como em O Tigre de Bengala [Der Tiger von Eschnapur, Fritz Lang, 1959]). É uma ascensão rumo à beleza pura através da aliança dos contrários, da coalescência, e depois a lenta queda a uma destruição repleta de promessas.
Quando, por uma ruptura do ciclo quase miraculoso de temeridade sublime, o príncipe é destronado e ele mesmo se dissolve na morte, a liberdade e o mundo são vistos como que pela primeira vez. Da mesma forma que a primeira seqüência passa da sombra à luz através do desenvolvimento da graça corporal, o filme abandona a obscuridade da presença tácita de espectros, e do fluir da ampulheta pontuada por um relógio, para se dirigir a uma claridade frágil, mas limpa. Fim da narrativa, fim da vida material. As garotas ficam de frente a si mesmas. O grande esgoto de todas as aspirações e de todos os percursos, o grande receptáculo das paixões e dos prazeres, o conjunto das cavidades e das poeiras humanas terminam por tudo regurgitarem à luz do dia. Trata-se de um novo equilíbrio ou, antes, de um equilíbrio inédito após o caos da inocência, seguido do falso controle e do caos violento. Ele conecta o esfacelamento do primeiro paradigma ao desprendimento do segundo. Este equilíbrio se aplica a um mundo que, se não é inteiramente novo, ao menos recomeça do zero (a saída da prisão; as posições sociais invertidas; a chuva). E, assim sendo, trata-se de um mundo que recomeça a partir de uma ordem miraculosa, operando a aliança dos contrários, camadas de humanidade que agora integraram o poder destrutivo do racional com o do irracional. É o sublime de midinette[1] juntando-se ao sublime simplesmente. É Barrados no Baile reconciliado com Tomás de Aquino. A pirâmide do mundo se abre finalmente, o sarcófago da vida é aberto: o mundo jorra sobre si mesmo em plena rua, as garotas se reencontram novamente, as consciências se liberam, tudo é livre e simples. Aceita-se modestamente sua posição no universo, com “estupor e estremecimento”, e após tantos percalços. Uma pequena inquietude permanece: a de uma existência restituída a si mesma, que deverá trabalhar sem um mestre pela sua própria salvação. As coisas secretas não o são mais.
Nota:
[1] Expressão que descreve uma típica garota proletária francesa (n.d.t.).
(Traduzido por João Gabriel Paixão)
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