A MIRACULOSA
por Camille Nevers


CÉLINE (Céline). 1992. Gaumont/Gaumont Production/La Sorcière Rouge/Sofica Investimage 2 - Investimage 3/Sofiarp/Canal+ (88 minutos). Produção: Jean-Claude Brisseau. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Romain Winding (Eastmancolor). Som: Jean Minondo, Jean-Pierre Laforce. Música: Georges Delerue. Cenografia: Maria-Luisa Garcia. Montagem: Maria-Luisa Garcia. Elenco: Isabelle Pasco (Céline), Lisa Hérédia (Geneviève), Danièle Lebrun (Sra. Giraud), Daniel Tarrare (Gérard), Damien Dutrait (Roland), Lucien Plazanet (Lucien), Sébastien Lenfant (Sébastien), François Eychart (o pai de Sébastien), Marie-Thérèse Eychart (a mãe de Sébastien), Pascale Simeon (a enfermeira), Pascal Eychart (a criança com o braço machucado), Jacques Gelat (o amigo do acidente), Élodie Plaquet (a garota com o gato), François Rauscher (Olivier), Yves Jeannin (Sr. Giraud), Sr. Plaquet, Sra. Plaquet, Sr. Haas, Sra. Haas, Sr. Disant, Sra. Disant, Sr. Rayer, Sra. Herby, Sr. Houdrichon, Sra. Houdrichon, Sra. Dessagnat, Laure Vaultier, Liza Gabaston (não especificados).

Como ele é professor, Jean-Claude Brisseau professa. Como ele ama o cinema, Jean-Claude Brisseau faz cinema. Como ser professor, no sentido etimológico, é “ensinar em público”, Jean-Claude Brisseau faz do cinema um anfiteatro. Seus filmes têm a ver com o teatro de paixões e têm de ser vistos como uma lição do cinema. Não de cinema. Não o cinema que se ensina, mas o cinema como - possível - ensinamento. As salas de cinema freqüentemente, e justamente, foram comparadas às igrejas; mais raramente a escolas: o local onde nos sentamos para ver, para escutar, para se preencher, para se confrontar com o Outro, se informar. Para ver, saber, e saber ver. Em Brisseau “o professor”, o filme perfurou o quadro negro, a professora (maîtresse) dança com o aluno, o professor faz da aluna a sua amante (maîtresse) e o espectador, que assiste à transgressão, participa assinando a nota de liberação. Nós apagamos tudo e recomeçamos.

Em O Som e a Fúria, há o momento em que a professora dança com o menino (Aux marches du palais...), e em Boda Branca, há o momento em que o barco desembarca o homem e a menina sobre uma colina de flores (ainda Aurora...). Os dois momentos flertam com o ridículo, tanto a graça aflora do ridículo e que “do ridículo ao sublime vai apenas um passo” (disse Michelet), mas são realmente dois momentos de graça onde o tempo não tem curso, a cena da escola, a extensão imensa da natureza compõem a cena primitiva, livremente ingênua - como a arte, e ingenuamente livre. Céline inteiro se abisma nesses momentos, nessa cena, nessa passagem feita pela janela aberta ao mundo, o filme passa pela janela, e o olhar transposto vai até o fundo da paisagem, acaba por se confundir com ela na escuridão - do quadro negro, como em um sonho de Akira. Assim se delineia Céline. Fazendo cinema, Brisseau gazeia a escola.

Trata-se então, tratou-se sempre, de uma aprendizagem. Nos filmes precedentes, a aprendizagem era algo como “aprenda a vida para aprender a morrer”, amores defuntos freqüentemente entrevistos, corpos de crianças vítimas de sua clarividência. Céline começa na queda mas não é preciso muito tempo para sentir o filme cair para cima, uma aspiração que resulta de uma expiração. Aprender a não mais existir para aprender a viver. Não pensar mais em nada para estar no todo. A aprendizagem, desta vez, nasce do nada e se revela na sua plenitude, o filme chega depois da morte e, assim sendo, ele está “além”: na terra, sob a chuva, nada resta a Céline que esse nome; um homem que morreu e que não é seu pai, um homem que a abandonou e que não é mais seu amante; ela mesma se deserda, e depois se joga na água. Que uma outra mulher a salve, não importa: Céline é de agora em diante uma miraculosa - para não dizer uma ressuscitada. Mas o que importa é que Geneviève, a outra mulher, já tenha, desde então, permitido o milagre (arriscando a própria vida).

Eu vejo bem, a partir de agora, a impossibilidade e a inutilidade que há em relatar Céline. E é por uma razão muito simples: a razão de ser do filme é de tornar visível o indizível. Poderíamos muito bem “dizer” qualquer coisa sobre a morte, o milagre, a aparição, a levitação, a santidade, tudo aquilo que quisermos, essas palavras permanecerão clichês que não “falam” (do mesmo modo Céline, tentando descrever o que ela sentiu a Geneviève, encontra apenas a palavra “Deus” para dizer - talvez o “clichê” supremo - e não se satisfaz). Ora, o filme é o contrário do clichê. Ele refuta visivelmente e sistematicamente toda fixação do movimento, da imagem, ele flui suavemente da fonte, pela concentração (a própria idéia de uma imobilidade que se move - e permite avançar) de onde ele retira sua energia luminosa (como o fogo ateado no carro concentra subitamente nele toda a luz: a noite apareceu de repente).

Céline é um filme feito (de) intensidade. Portanto emocionante (émouvant) (em inglês “moving” quer dizer tanto “emocionante” como “em movimento”, assim o filme extrai seu movimento de uma tensão interna: o que me emociona [m’émeut], me move [me meut]...). E aquilo que ele mais é - emocionante e em movimento, pois Brisseau não faz cinema como se ele fosse o primeiro, não é a inocência do começo, é mais como se ele fosse o último dos homens[1] com uma câmera -, é uma fragrância de fim. Brisseau chega depois, mais uma vez. Depois da morte e depois do cinema (Murnau antes de tudo, Bresson, Godard sobretudo) . Chegar depois, sabê-lo, é forçosamente estar no além; eis porque Céline não é fúnebre, mas transcendente; eis porque o cineasta não é religioso, mas místico. Eis porque o seu filme é fantástico.

A religião egípcia, voltada inteiramente contra a morte, fazia a sobrevivência depender da perenidade material do corpo. Ela satisfazia com isso uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte nada mais é que a vitória do tempo. Manter artificialmente as aparências carnais do ser é retirá-lo da correnteza da duração: fixá-lo à vida. [...] Assim se revela, nas origens religiosas do estatutário, sua função primordial: salvar o ser pela aparência.” Esse possível sumário de Céline assinado por André Bazin[2], outro “professor” - e em quem, penso eu, Brisseau terá pensado na sua introdução “faraônica” do filme -, diz bem qual é a questão maior: o resgate, depois a salvaguarda do espírito pelo corpo (a yoga), passando pela iniciação de Céline por Geneviève, depois do corpo pelo espírito (o milagre), passando pela última aparição - aparência - para Geneviève do espírito de Céline. Dialética literalmente extraordinária que, em termos de arte-mística, engaja-se entre o talento e o gênio. Entre Geneviève e Céline. E sua união faz a sua força, pois, se há uma vida após a morte (algo de que o cinema se dá conta às vezes), o filme mostra também que há uma “morte após a morte” (algo a que o cinema toca raramente): Céline começa no drama e conclui no trágico - mas não é triste por isso, e é o amor de duas mulheres que é trágico. Elas estão condenadas. Estejam em um convento ou no grande casarão do filme.

As palavras de Bazin, antes de dar uma idéia do que é o filme de Brisseau, dão uma idéia do que é o cinema[3]. Daí a pensar que o filme de Brisseau constitui por ele mesmo uma “idéia de cinema”... Essa idéia gira sempre em torno da inocência, e da sua perda. E de como a reter ou retornar a ela - pelo cinema. Para Bazin, o trabalho de embalsamento; para Brisseau, o da restituição. Salvar o ser restaurando a ele a aparência (mais que) humana. Revelá-lo. Fazer de uma forma que o cinema possa registrar o milagre, e que esse milagre pareça com a vida (um joelho que sangra sem ferimento, um paraplégico que se recupera porque lhe dizem que ele pode). Não somente que isso tenha uma aparência verdadeira, mas que isso seja verdade. O trabalho de Brisseau consiste não na restituição de um cinema-verdade mas, o que é mais difícil, de uma verdade do cinema. E se ele sucede, é porque ele tem o senso do cinema: uma moral das imagens.

Quando Céline “aparece” a Geneviève várias vezes, por exemplo, e depois desaparece, é um simples caso de reenquadramento: ela está lá, ela não está mais. É uma imagem que se constrói a partir de uma outra imagem - em relação a uma terceira, aquela de Céline em meditação, fora da casa. Quando Geneviéve presencia a levitação, questão de ponto de vista, nós vemos Geneviève que vê Céline, em seguida vemos Céline, as duas não estão reunidas no plano porque (montagem proibida, ao inverso) nós só podemos ser as testemunhas do olhar de Geneviève, não as testemunhas da cena: para cortar, isso seria trapacear, teria uma aparência verdadeira sem sê-lo (haveria montagem na imagem, uma redundância grosseira já que Céline monta sozinha), então que a verdade venha do olhar de Geneviève sobre Céline (ela dirá a seu amigo que ela não sabe se Céline levitou, simplesmente que ela acreditou tê-la visto levitar). É preciso acreditar em seus olhos.

À parte talvez Órfãs da Tempestade (Orphans of the Storm, 1921), de Griffith (certa perversidade de menos), nós nunca vimos filme igual colocando em cena o amor entre duas mulheres. Geneviève, a lunar, e Céline, a solar, são duas figuras inesquecíveis. Dois anjos do pecado[4]. A energia luminosa que cada uma emite - luz negra de uma, luz ofuscante de outra -, que ambas se transmitem alternadamente quando necessitam aquecer seus corpos trêmulos, que renunciam, é um calor humano praticamente visível na imagem, como uma aura (não realmente uma auréola) que emanaria de seus corpos e irradiaria tudo aquilo que as rodeia. Como o encontro de duas “atmosferas”...

Entre elas, por elas, não há percursos, via-crúcis, as coisas acontecem quase que brutalmente, ou melhor, de forma bruta; e Céline salta aos olhos, se impõe a nós: é um filme que, da mesma maneira que o recolhimento leva subitamente ao milagre, estabelece um suspense que leva de súbito a um efeito de surpresa. É um filme que assombra. Geneviève, muito humana, e Céline, muito evidente, completam-se, como dois pólos de energia que se atraem. Quem é a mais santa das duas? Esta já é outra história. A história de amor, ela, exala um odor de santidade, na alternância absoluta do filme - e primeiramente a alternância de dois olhares: dar e receber. É simplesmente muito belo.

Eu percebi que esqueci de dizer que isso se passa em pleno campo, em um grande casarão branco, que Geneviève é enfermeira e que Céline não é. Mas que bom: dizer isso não é dizer grande coisa. Por outro lado, é preciso dizer que Brisseau não realizou um filme ecológico (écolo) de bom tom ou new age do tipo certo. Esses filmes, nós podemos reconhecê-los porque eles são de um só modo e de uma só época, porque eles envelhecerão rápido com a sua imagética galopante. Céline é de outro feitio, daquele que vemos raramente no cinema francês, o feitio místico (indubitavelmente a única maneira na França de se ter direito a um olhar sobre o gênero “fantástico”). O filme de Brisseau (que me faz decididamente pensar muito no Nouvelle vague de Godard) toma uma dimensão “sobrenatural” porque ele consegue fundir o ser na natureza, que o enraíza. Alguma coisa se passa, se comunica entre Céline e o campo (os campos, a árvore sob a qual ela medita). Na “perspectiva” da mística do filme e do tratamento de seu espaço, a natureza abre a Céline “a passagem”. Ela suscita uma exaltação melancólica, um sentimento de plenitude que absorve literalmente a jovem mulher na paisagem. Em Brisseau, a natureza é sobrenatural...

Natureza e panteísmo. Contemplação, meditação e iluminação. A relação trágica do ser no tempo, no amor, na morte. “Salvar o ser pela aparência.” E fazer um filme do cinema... Acreditando que o cinema, desta vez, de fato entrou na sua era romântica.

Enquanto isso, Céline e Geneviève vão de bicicleta[5].

Notas:

[1] Referência ao filme de F. W. Murnau, A Última Gargalhada (Der letzte Mann, 1924), que teve como título francês Le dernier des hommes (“O Último dos Homens”) (n.d.t.).

[2] “Ontologia da Imagem Fotográfica”, O Que é o Cinema?, Cosac Naify, 2014.

[3] Outra referência ao livro de Bazin (n.d.t.).

[4] Referência ao filme de Robert Bresson, Os Anjos do Pecado (Les anges du péché, 1943) (n.d.t.).

[5] Referência ao filme de Jacques Rivette, Céline e Julie Vão de Barco (Céline et Julie vont en bateau, 1974) (n.d.t.).

(Cahiers du Cinéma nº 454, abril 1992, pp. 12-16. Traduzido por Cauby Monteiro)

 

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