TRAÇO DE UM COMETA
por Gérard Legrand


Eis um filme eminentemente paradoxal: ele solicita sem embustes o interesse do espectador por uma problemática que suscitará muitas recusas e, no mesmo movimento, tira suas virtudes do que continua sendo a universal quintessência da arte cinematográfica, e que continuaremos a chamar de mise en scène.

Para fixar as ideias por uma comparação, a ausência de mise en scène em Bresson “inflige” no espectador uma escolha simples, e o embuste (até mesmo o recurso ao thriller ou ao western), em outros casos, permite ao espectador “inocente” negligenciar a problemática. Em Brisseau a problemática, iniciada por O Som e a Fúria, precisava-se em Boda Branca através de um impacto erótico particular. Ela permanece a mesma: um ser humano aparentemente “equilibrado” encontra outro, por sua vez enigmático e incandescente, cuja passagem transtorna sua existência. Não sairíamos do quadro psicológico habitual se o “passante” em questão pertencesse à tribo desses “desconhecidos” que, com fórmulas contaminadas pelo charlatanismo, nos entretém por vezes a literatura esotérica de boa aparência. Ainda não se trata aqui de um “guru”, muito ao contrário: Céline é uma jovem traumatizada pela pior perda (o nome do pai mais o espetáculo doloroso de sua morte) e acessoriamente pela fuga de um amante. Ela só escapará da pulsão suicida primeiramente deixando-se conduzir por uma outra mulher. A enfermeira que a acolhe, Geneviève, vê na yoga apenas uma técnica de relaxamento quanto aos seus próprios problemas, acompanhada de uma aprendizagem quase hipnótica de uma certa serenidade. Para Céline essas práticas (rapidamente desembaraçadas de toda teoria) são um salto para um mundo ligeiramente diferente do nosso - digo também para um cinema ligeiramente diferente do cinema comum na França.

Por qual acaso misterioso Céline tem o mesmo nome de uma heroína de Rivette dotada de poderes “mágicos” que brincava de trocar com uma camarada de ocasião? Mas permanecíamos, é bem sabido, com Rivette (como com o Woody Allen do fim de Neblina e Sombras [Shadows and Fog, 1991]) nos prestígios do circo e da manipulação pura. Enquanto que Brisseau, falando da doença (sob diversas formas) e de um “trabalho de luto”[1], propõe uma versão “séria” de sortilégios análogos, e coloca em questão uma “realidade” de outra ordem. Trata-se de nada menos que a experiência mística. Experiência “vivida” por Céline que invade a existência de Geneviève: esta a solicita, a alimenta, depois a constata com espanto e, após a dissipação dos fenômenos “supranormais”, provavelmente extrairá dela um novo equilíbrio, ao passo que Céline “desaparece” de nossa vista.

Pois na mesma medida em que o filme começa fornecendo-nos, pelo diálogo, todo o curriculum vitae dos personagens, incluindo o pai morto, o que se segue se desabrocha em nosso olhar e na nossa audição. A câmera é de uma lealdade constante: as visões de Céline são banais (o deserto, o Oceano, enquadrado como em Boda Branca, enquanto que desse filme Céline retoma também, invertendo-o em relação ao espectador, o plano em que as crianças zombam de um coito, aqui de uma mulher abatida). Pensa-se no Kaspar Hauser de Werner Herzog, com alguma grandiloqüência a menos. Seu pressentimento (de um acidente na estrada) não ultrapassa o fait divers, mas uma panorâmica evidencia nesta ocasião seu isolamento e seu terror. Quase todo o resto é visto do ponto de vista de Geneviève. Ou, mais precisamente, às vezes do seu ponto de vista (a levitação poderia ser apenas uma ilusão, mesmo se o tetanismo constatado é “real”), às vezes do ponto de vista “deslocado” ou indireto, aquele que Hitchcock refinou ao longo de sua carreira. A câmera é colocada (ou seja: nós somos colocados) ao lado da protagonista, e às vezes nós a vemos enxergando algo. É particularmente o caso do episódio em que Geneviève assiste ao carro que queima (episódio-chave: ela começa a ficar fascinada por Céline para além da piedade), decupado para sugerir que alguém olha ao lado dela: é o famoso “ponto de vista de Deus”. Este já se manifesta na mudança de escala implicada na descida ao jardim, onde as duas mulheres estão menores que no plano anterior em que as vimos, com um efeito de surpresa graças ao plongée sobre e sob as árvores, cujo verdadeiro tamanho é de imediato encoberto. Ponto de vista de Deus? Do demiurgo, ou seja, do diretor simplesmente[2]. Céline, por sua vez, não escapa do seu meio: ela fala em um tom condizente de “crueldade gratuita” e “aliviar a miséria do mundo”. O que acontece com ela lhe é “superior”, mas ela quer admitir que pode não se tratar de “Deus”: somos tentados a dizer, sobre Ele, o que o lamentável Pierre Janet dizia, em um lapso magnífico, do inconsciente freudiano: “É uma forma de dizer”.

Em somente dois momentos Brisseau apresenta de maneira frontal uma intervenção “sobrenatural”: é a cura repentina do jovem paralítico que se põe a andar. Observar-se-á que ele está atrás de Céline, e que não é por menos senão para “alcançar” Geneviève (sua interlocutora habitual) que ele se recupera e dá dois passos. Mesmo que a medicina “não explique” esse ressurgimento da medula espinhal, isto simplesmente ainda não autoriza a se falar de milagre. E, também, a visita do menino que afirma sangrar muito, e que não passa aos olhos de Céline de um impostor: a hemorragia que cessaria, que apagaria a imposição das mãos (como, ao final de Rio Lobo, a mão de John Wayne sobre o rosto de sua parceira concluía a carreira de Hawks ao abolir a cicatriz) talvez fosse apenas o mercurocromo ou outro emplastro destinado a fazer rir seus amigos. Efetivamente, se Céline “se desdobra”, esse desdobramento só nos é proposto do exterior: o processo não excede (e também não alcança) a média do cinema fantástico de outrora. Quando o homossexual a visita e diz enxergar Jesus ao lado dela, o contracampo nos ensina rapidamente que não há ninguém ao lado da jovem. (Eis por que - por sinal - não há cinema “espiritualista”, exceto no discurso de pobres comentaristas: a tela mostra espectros, anjos, ou “sugere” o infinito, a imensidão pelas imagens naturais; jamais mostrará almas separadas dos corpos, e por boas razões.)

Ao mesmo tempo em que Geneviève evolui em torno de Céline, a jovem também evolui. Mesmo antes que apareça, os créditos nos propõem a silhueta de uma deusa egípcia da Noite, na fachada de entrada de um hipogeu: era também a evocação das Águas, tanto celestes como terrestres, que inauguraram a ação (chuva torrencial durante a qual Céline é descoberta por Geneviève; tentativa de suicídio na lagoa; fixação da enfermeira no “Velho Moinho...”). Mais tarde, um gato preto também lembrará a deusa egípcia: a “menina com gato” é uma transposição da relação “infantil” entre Geneviève e Céline. Como os inserts que dizem respeito às civilizações do passado, reais ou imaginárias (visto que se fala até mesmo do desembarque das divindades extragalácticas!), esse motivo mítico recorda o cinéfilo do episódio das sequóias em Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), que dá uma tocante dimensão cósmica à crise de identidade representada por Hitchcock[3]. Mas a evolução da Céline é diferente: surgida bruscamente, ela desaparecerá progressivamente, separando-se dos “poderes” que a rodeiam. Esses poderes resumem-se na realidade a jogar com o espaço e (em menor escala) com o tempo. Prestígios, aqui ainda, da mise en scène. O motivo quase musical da bilocação é “retomado” plasticamente na cena da estação, onde Brisseau sucede a fazer mover um trem: a) para que “venha pegar”, com a porta quase aberta, a heroína; b) para fazer com que esta fique imóvel, a câmera adere ao movimento e o anula ao mesmo tempo. (Cf. já era o caso do trabalho de Céline em meditação, “abandonada” e depois reencontrada pelo carro de Geneviève.)

Aqui as visões “alucinatórias” restringem-se às de Geneviève: premonição da partida de Céline, sonho final (simétrico àquele em que Céline vê retornar seu amante), aparição ambígua do anjo da Morte. Esse último traço é preparado por um plano enigmático entre todos (sob um azul marcado por nuvens, dois personagens minúsculos) que faz referência à “fronteira chinesa” para a qual Céline foi enviada numa missão: homenagem à conclusão totalmente pessimista, ou até mesmo atéia, do último filme de John Ford, o belíssimo Sete Mulheres (7 Women, 1966)[4]. No total, essas “visões” não excedem em nada o que nos ensina a psicanálise, quer dizer, a literatura do “duplo” e a dos “casais” reunidos para além da morte: muito mais que o desigual Peter Ibbetson, deve-se citar todo o romantismo alemão, do qual Brisseau “participa” evidentemente.

Com as restrições e dificuldades às quais se impõe, o cineasta não engana. Ele não se inscreve na óptica da “graça” bressoniana, articulado a uma ascese em que o próprio cinema acabaria por se dissolver. Preferiríamos sonhar, para qualificar o misticismo de Céline, com uma espécie de panteísmo: o auge da meditação é anunciado pelo crescente sussurro da folhagem, que equivale ao do Oceano. (A propósito do misticismo, lembremos que há pelo menos uma religião radicalmente ateia, o Hinayana ou “Pequeno Veículo” do budismo, onde a reconciliação e o apaziguamento são descritos em termos semelhantes aos emprestados por Brisseau de Teresa d’Ávila). Um lirismo maior seria inadequado.

Uma certa neutralidade da interpretação contrasta de forma semelhante com a esplêndida veemência de Boda Branca. Mas é que a conclusão é menos desesperada: Céline, ao “apagar-se”, recupera seu próprio equilíbrio e garante a Geneviève uma existência mais calma. Seu apego mútuo, apesar da alegoria do anel passado ao dedo, terá permanecido abstrato (como as figuras de ginástica que elas executam com uma geminação perfeita). A existência final de Geneviève será até mesmo marcada por uma sabedoria “pagã” (cf. a conquista final de Gérard e o reenquadramento sobre as folhas verdes, que nos faz pensar em Rohmer). O que resta de nostalgia não seria, entretanto, surpreendente, imaginado por quem colocou sua produção sob o signo de No Rastro da Bruxa Vermelha (Wake of the Red Witch, Edward Ludwig, 1948)[5].

Sobre o quadro negro que abria Boda Branca se opõem “o império absoluto que o homem pode adquirir sobre as suas paixões”, segundo Descartes, e a frase de Spinoza: “Os que crêem que falam ou permanecem em silêncio ou fazem qualquer ação que seja por um livre decreto da alma, sonham de olhos abertos”. Mais adiante, no mesmo longo escólio (Ética, II, 2), Spinoza acrescenta estranhamente: “Os homens não sabem o que pode um corpo (...). Tais são as ações de sonâmbulos durante o sono que os surpreendem quando estão acordados.” Isso permite ler em Céline um apelo - certamente enigmático no contexto atual - muito menos a uma distração com fantasmas do que a um auxílio, para além desses mesmos fantasmas, à consciência de si.

Notas:

[1] De acordo com Freud, o trabalho de luto se realiza de tal forma que toda a libido é retirada das ligações com o objeto amado quando posta à prova pela realidade, a qual mostra que esse objeto não existe mais (“O trabalho de luto consiste, assim, num desinvestimento de um objeto, ao qual é mais difícil renunciar na medida em que uma parte de si mesmo se vê perdida nele.”) (n.d.t.).

[2] Um grande e longo plano geral no campo nos lembra igualmente da “existência do mundo exterior”: a Seine-et-Marne torna-se então, com suas estradas, suas florestas, suas plantas, suas usinas, um lugar também carregado de mitologia, como o Velho Oeste ou os planaltos do Peru.

[3] Alguns inserts são emprestados, assim como a música, da apaixonante série documentária de Robert Pansard-Besson, Tours du monde, tours du ciel, feita pela SEPT e exibida no canal FR 3 (1990). Não posso recomendar o suficiente a visão e a revisão desse trabalho exemplar, mesmo que isto signifique, para aproveitar as explicações precisas, modestas e resistentes do astrofísico Pierre Léna, que se tenha que suportar o falatório descolado do pretenso filósofo Michel Serres.

[4] O título francês de Sete Mulheres é Frontière chinoise (“Fronteira Chinesa”) (n.d.t.).

[5] A produtora de filmes de Brisseau chama-se La Sorcière Rouge, sem dúvida em referência ao filme de Edward Ludwig, que na França recebeu o título de Le réveil de la sorcière rouge (n.d.t.).

(Positif n° 374, abril 1992, pp. 12-15. Traduzido por Luan Gonsales)

 

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