O SOM E A FÚRIA
por Vincent Zeis


Um Anjo Passa

A canção de Trenet ouvida no início arranca lágrimas: nostalgia inexplicável, solidão tenaz do Schlüsselkind[1], vozes dolorosas e luzes/raios X que não deixam nada na sombra. Ela parece ter inspirado o filme: a história da passagem impalpável e volátil da graça (um pássaro, um anjo, uma professora, um menino solitário) em meio ao som e à fúria de um mundo em guerra.

As cenas oníricas (mas seriam elas somente imaginárias?) são de um simbolismo gritante (erótico, mágico e realista como em O Iluminado [The Shining, Stanley Kubrick, 1980], com o seu menino-luz), numa luz azulada de filme fantástico dos anos 1980. Elas intervêm freqüentemente no interior das cenas e, portanto, não rompem a continuidade estética entre o milagre e o cotidiano mais banal (a sala de aula, o apartamento de periferia), o qual elas transfiguram por sua sublime ingenuidade (imagens de criança, imagens religiosas, as palavras e as imagens de uma mãe ausente).

A referência a Shakespeare no título e na epígrafe é outra referência do filme a uma sociedade onde todos estão em guerra contra todos. Trata-se de uma sociedade de clãs violentos (a família de Cremer com o patriarca irascível e o cadete incontrolável, a gangue, o autoritarismo do diretor do colégio, as relações entre os alunos, a invisibilidade das mulheres) que afirmam a lei do mais forte. E do outro lado, encontram-se frágeis sobressaltos de humanismo (a pedagogia da professora, o irmão que tenta fugir da influência familiar, a poesia, a compaixão de Bruno pelos moribundos e os animais). A guerra é incessante (o jogo, a frustração, a amargura, as rivalidades incestuosas, as lutas pelo poder e por influência) e as cenas de caos se sucedem (a rebelião na aula, o ataque de Cremer na sua sala, a emboscada contra o bando rival, a seqüência de violências catárticas no fim), com apenas a morte como escapatória e lugar de esperança (a carta relatando a experiência sobrenatural de Jean-Roger, Bruno reencontrando aqueles que ele ama).

Colocando tudo no mesmo plano, Brisseau suprime os traços de mise en scène (pouca decupagem, insistência nos espaços vazios da periferia parisiense), salientando apenas as manifestações mais discretas e mais pudicas da graça (os gestos do anjo, o revolver na grama, o pássaro, os corredores brancos, uma escadaria vazia, o longo plano da dança de Bruno com a professora, o travelling que passa pelas carteiras vazias da escola).

Sem ser um relatório sobre a violência na periferia nem um manifesto de qualquer tipo, o filme não diz menos voluntariamente o que a vida em um conjunto habitacional de Bagnolet[2] em 1988 poderia ter de intolerável (o imaginário violento como passo rumo ao ilimitado e à morte, as atividades ilegais, as relações sociais rudes, a dificuldade de uma criança crescer, o recuo da lei visto no recuo do carro de polícia e da assistente social aterrorizada).

Ele o faz através de um estilo que concentra as ações como a dos dois alunos no quarto ou de Jean-Roger acedendo coquetéis Molotov na janela de exibição 1.37 ou estabelecendo uma relação de montagem entre dois espaços contíguos, por exemplo entre duas partes do subterrâneo onde se dão as práticas de iniciação do bando. Isso impulsiona às piores violências em um grito de revolta (a mise en scène dos personagens espremidos no quarto do avô preso à cama é seguida pelo irmão gritando pela janela; à mise en scène da rebelião na aula segue-se a escalada revolucionária da fachada = a atração terrestre contra o apelo do vôo livre).

Mas ao mesmo tempo esse inferno é uma fantasia rumo às estrelas, a organização de um pedaço de paraíso nos locais mais sórdidos e mais solitários, todos aptos a suscitar o maravilhoso. O mundo está lá, pronto para ser tomado pelas mãos. Um mapa-múndi ou um pássaro, aberturas rumo a um conhecimento mesurado, apolíneo ou a uma desmesura. Em ambos os casos, a câmera de Brisseau se faz tecelã para apreender as agitações delicadas dos seres em meio aos choques tectônicos do ambiente deles. Trata-se sempre da graça pelo caos, o delinqüente e a criança, a confusão entre o abraço terno e a agressão. Marcando tudo a fogo e sangue, Brisseau filma, sem nunca procurar forçar nada, uma alma em todos os seus conflitos espirituais, os quais assumem diretamente uma forma sensível: passos de dança, a conservação de uma atitude, falcão e dama branca, incêndio e conjuntos habitacionais como castelos apontados para o Céu.

E isso, inferno ou paraíso, é filmado com um grande respeito por todos os personagens (todos vítimas de uma estrutura social desnaturada, transformada em campo de batalha mas também carrascos, mas também sonhadores, mas também amantes, mas também príncipes autistas e magníficos de pequenos reinos selvagens) e de forma perfeitamente modesta: uma modéstia de criança olhando seus sapatos. O personagem de Bruno é o elemento central do filme junto com a atmosfera da sala de aula: sua aparência angelical e suas palavras de santo não o tornam um personagem etéreo; ele acompanha de mobilete seu amigo marginal e carrega sua mochila como um pequeno francês, nada mais do que simplesmente uma criança.

Notas:

[1] Criança que volta sozinha do colégio em decorrência do trabalho dos pais (n.d.t.).

[2] Comunidade localizada nos subúrbios do leste de Paris (n.d.t.).

(Traduzido por Matheus Cartaxo)

 

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