POR VOLTA DA MEIA-NOITE, Bertrand Tavernier, 1986
por Jean-Claude Brisseau


No mês passado o cineasta Jean-Claude Guiguet nos falou do filme de Gérard Frot-Coutaz (Beau temps mais orageux en fin de journée). Neste mês, Jean-Claude Brisseau, o realizador de Um Jogo Brutal, desejou comunicar aos nossos leitores seu entusiasmo (o qual nós compartilhamos) pelo último filme de Bertrand Tavernier. Que a ele se agradeça.

Jean Collet

Acontece-me apenas muito raramente de me emocionar no cinema; o filme de Tavernier me comoveu.

Conhecemos o enredo: estamos no fim dos anos 50; Dale Turner, saxofonista negro americano, toca todas as noites no Blue Note, em Saint-Germain. É um alcoólatra, sob a constante supervisão dos seus próximos. Basta que um de seus truques para beber escape à vigilância e ele vai parar no hospital. De súbito, Dale se encontra na total incapacidade para compor, já não pode sustentar-se em pé sem dificuldade, não toca mais a não ser sentado. Francis, apaixonado admirador do músico de vanguarda que foi Turner, assume plena responsabilidade sobre ele. O outro começa a emergir do buraco, chega a tocar em pé, a compor novamente, reassume a sua existência. Seu amigo o leva em uma visita à família dele, em Lyon. O calor simples, a gentileza com que é recebido, lançam Dale de volta à sua ausência de raízes, à sua solidão, às suas faltas, seus medos, a si mesmo; o músico retorna a Nova York e morre.

Encontram-se em Por Volta da Meia-noite (‘Round Midnight/Autour de minuit, 1986) os temas e os personagens que povoam o universo de Tavernier. Seus heróis são seres frágeis, falhos. No seu íntimo são solitários, sem verdadeiras raízes (como Galabru em Le juge et l’assassin), deslocados, na verdade em oposição, em luta com um mundo cruel e sem piedade que eles não podem afrontar; mundo que os excede e por vezes aniquila-os. Daí vem o refúgio na novela cotidiana (L’horloger de Saint-Paul, Un dimanche à la campagne), a cegueira (L’horloger..., Que la fête commence), as orgias (Que la fête...), mas também as presenças amigáveis (todos os seus filmes). Essas mesmas presenças parecem precipitar o face a face inelutável com a morte (Noiret-Galabru em Le juge et l’assassin; o “domingo na campanha” é vivido como uma última reunião de família).

Porque a morte está sempre lá, ao menos latente. Mesmo quando temida (Noiret, em Que la fête commence), mesmo quando provocada (Galabru, em Le juge et l’assassin), ou quando em última instância ela fascina docemente (Un dimanche à la campagne).

Estas observações gerais deverão permitir mostrar que Bertrand Tavernier é um verdadeiro autor de filmes. Se o público não se engana, a crítica, até agora, o tem subestimado muito injustamente.

Em Por Volta da Meia-noite, todos esses elementos se organizam através da errância do personagem de Dale Turner. Por toda parte ele é um estrangeiro, mesmo nos Estados Unidos, mesmo ao ouvir sua música, muito pessoal, muito à frente. É isso o que filma Tavernier: um músico, arrastando-se de hotel em hotel, todos idênticos, de Paris a Nova York, o desespero tranqüilo deste homem solitário que seguimos com ternura, que vemos afundar e se dissipar lentamente, apesar do suporte da amizade de Francis.

De filme em filme afirma-se em Tavernier uma simpatia profunda pelos perdedores, os pequenos homens devorados ou rejeitados por um mundo violento e sem piedade (aqui, Nova York e sua selva imediatamente visualizáveis no personagem interpretado por Scorsese). Há também uma maneira tranqüila de apreender a atração-repulsão pela morte que me é próxima. Toma forma, no fundo, a dúvida dolorosa e secreta de um artista sobre a sua obra (em Por Volta da Meia-noite é precisamente isto que, sem jamais ser explicado, corrói Dale Turner).

É por isso que este tableau do universo dos músicos negros americanos é tão bem-sucedido. Tavernier pinta o modo de vida deles, seus hábitos (com uma precisão documental ainda mais notável por tudo ser reconstituído em estúdio). Mas, sobretudo, ele pinta o que eles são para além das aparências, como são em profundidade.

Os atores são sempre notáveis nos filmes de Tavernier. Neste há o músico de jazz Dexter Gordon. Tocante, marcante, magnífico: por sua presença, sua voz, suas invenções (sua maneira de chamar seus amigos de Lady Francis, Lady Hersch...). Percebem-se as suas contribuições para o roteiro: quando ele faz um homem bêbado, ele não se afunda numa sarjeta; ao contrário das idéias ordinárias, ele procura por um canto “confortável”, qual seja - o capô de um carro -, para dormir. É preciso vê-lo retornando do mercado, um saco de compras em uma das mãos, a mão da filha de Francis na outra, e ele hesitante, oscilando sobre os pés, prestes a desmoronar. Ou ainda se descrevendo ao psiquiatra com um imenso - e contagiante - acesso de riso. Há algo de pungente na sua simples presença.

Diz-se: “É verdade, ele é extraordinário, mas neste caso bastou a Tavernier escolhê-lo e filmá-lo.” Vejamos... Em primeiro lugar, a escolha não era assim tão simples: quantas pessoas se enganam no seu casting! Além disso, e é isso o essencial, esta escolha deve ter sido inicialmente um risco enorme. Dexter Gordon, sabe-se, é ele mesmo um homem doente. Ora, ele teve que dizer um texto escrito, respeitando o roteiro, mas também as enormes limitações de uma filmagem importante como esta. Tavernier também assumiu o risco de deixar os músicos tocarem em som direto. Daí a necessidade de recorrer à montagem. Com a obrigação de montar de modo draconiano trechos em grande parte improvisados, sem contudo lhes ferir seu caráter, sua beleza e sua coerência.

Que o resultado seja um filme tão discreto, pudico e terno como o de Tavernier implica um talento ainda mais formidável, pois a dificuldade não aparece, não se deixa ver. Clint Eastwood invejou Tavernier ao ver seu filme; ele não é o único...

Os cineastas capazes de realizar grandes filmes populares são muito raros. Não é de surpreender; é a coisa mais difícil, porque o trabalho se faz sem amarras. Tavernier é um desses cineastas.

(Études, novembro 1986, pp. 515-517. Traduzido por André Barcellos)

 

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