KARL MARX
por Jean-Claude Brisseau


Para Marx: da luta de classes à guerra dos sexos

Há uma questão que surge freqüentemente assistindo aos seus filmes: você foi influenciado pelo marxismo?

Eu li Marx relativamente tarde, devia ter 25 ou 26 anos. Mas o que me interessou nele foi que, após ter descoberto um tipo de inconsciente individual, eu me via diante de um inconsciente coletivo e social. O primeiro texto que li era tirado de Contribuição para a Crítica da Economia Política e me fascinou. Tive a revelação de que não se pode compreender as pessoas somente a partir do que dizem, mas também a partir dos contextos nos quais elas vivem - sociais, políticos, estéticos, sexuais -, e que as levam a dizer tal ou tal coisa. Da mesma forma, não se pode julgar as sociedades a partir da maneira que elas têm de se pensar, mas sim de acordo com o que as restringe a pensar de tal ou tal forma. Apaixonei-me por Marx, que li sistematicamente. Eu inclusive subscrevi O Capital integralmente. Para mim Marx teve a ciência de predizer, em certa medida, como as sociedades viriam a evoluir. Em O Manifesto do Partido Comunista você já podia observar o mundo tal como está mudando hoje, cento e cinqüenta anos mais tarde! É interior; tudo corresponde. Marx teve a visão de um mundo do conflito político e social que durou e que, na minha opinião, dura ainda. Marx não acabou, e não é porque a União Soviética se esfacelou que ele se tornou obsoleto. Exatamente como a Revolução Francesa. Os revolucionários desapareceram por um momento mas, quase um século mais tarde, um certo número dos seus conceitos retornam. É esse lado conceitual, que permite compreender os seres no seu contexto social e político, o que me fascinou em Marx. Nossa maneira de pensar é condicionada por aquilo que ele nomeia as superestruturas e as infra-estruturas. Eu fui bastante tomado por essa idéia. Desde então permaneci sempre interessado, embora menos fascinado. Emprego deliberadamente a palavra “fascinado”. Mas penso que, assim como Freud, Marx foi um dos pilares da compreensão da sociedade. Há certamente problemas de modismo: ele esteve na moda durante certa época, neste instante está menos. Mas e daí? Isso não muda em nada seu estatuto de grande pensador do séc. XIX; até mesmo do séc. XX, pois, para mim, ele ainda permanece atual.

Você considera seus filmes como marxistas?

Digamos que há freqüentemente nos meus filmes uma luta social, uma luta das classes, dos conflitos de classes sociais. Mas eu não sei se é porque eu li Marx! Se você pegar O Vermelho e o Negro, quando você vê a tentativa de ascensão social de Julien Sorel, ou se você lê Os Camponeses ou vários textos de Balzac, não há a necessidade de se requisitar Marx para ler conflitos entre as classes. Não se pode dizer que Balzac era lá muito marxista!

Mas houve leituras marxistas de Stendhal ou de Balzac...

Dito isto, ao se ler Os Camponeses, tem-se a impressão de uma análise quase marxista. Ao passo que Balzac era monarquista e evidentemente católico. Pode-se certamente se fazer uma leitura marxista de Coisas Secretas - o que, aliás, foi feito. O filme narra revoltas sociais e lutas “sexuais” através do percurso de duas garotas. Elas o dizem explicitamente: “Estamos na parte baixa da escala social, e temos apenas o nosso cu para ascender. Faremos com que os homens que estão acima de nós paguem.” Elas utilizam o cu para conduzir a luta no conflito de classes. Em resumo, duas garotas querem suceder uma ascensão social, mas isso não é novo: não foi o marxismo que inventou isso! A outra revolta de Coisas Secretas é uma revolta metafísica, que nada tem de marxista. No fundo o assunto é um rapaz que é de tal forma abalado pela idéia do mal e da sua presença física, em particular através da sua fascinação pela morte, que acabará mandando Deus à merda, exatamente como fez Don Juan. Coisas Secretas mescla todas essas revoltas, uma social, a outra sexual, a terceira metafísica.

Você parece ter uma clara consciência das relações conflitantes no interior da sociedade.

Relações de classes, certamente. Pois é provável que as duas garotas de Coisas Secretas, no que diz respeito a este terreno da relação entre força social e sexual, já perderam de antemão. Os métodos que elas utilizam são na realidade os mesmos métodos utilizados pela classe acima delas, mas que esta utiliza com mais força, mais poder, mais coerção. Ao mesmo tempo, elas não têm chance alguma de ganhar com as armas do seu adversário. Elas são demasiadamente ingênuas, o que descobrimos pouco a pouco na segunda parte do filme. Nesse domínio há em mim um tipo de rigidez: tenho a idéia, talvez falsa, talvez maniqueísta, de que existe um determinismo profundo das classes sociais. Essa rigidez não impede uma certa flexibilidade individual, mas em tanto que classe social, penso que são sempre os mais poderosos que prevalecem. É uma lei social tão intangível quanto a lei do mais forte em Darwin. As pessoas vivem em função das classes sociais e das suas inércias. Não apenas as pessoas das classes superiores; as das classes inferiores também. É uma idéia fatalista e pessimista da natureza social que aumentou em mim depois que ingressei nos meios do cinema. Lá onde, justamente, tem-se o ar de se negar mais a rigidez das classes sociais: somos todos iguais porque somos todos artistas. O caralho! Se você escavar um pouco verá que tudo isso é extremamente artificial. E o meio do cinema faz com que todos os proletários paguem por sua ascensão nas profissões cinematográficas, quaisquer que sejam. Conheço poucas pessoas no mundo do cinema, proletários ou não, que desencadearam um mecanismo de revolução social! Ou mesmo simplesmente de protesto social. Há certamente algumas manifestações de tais ou tais que vêm bradar suas solidariedades para com os fracos para se darem a graça da boa consciência e porque há a imprensa e as mídias. Mas, profundamente, porra nenhuma. É um meio tão hipócrita como conservador sob os seus exteriores abertos e tolerantes.

(L’ange exterminateur: Entretiens avec Antoine de Baecque, Éditions Grasset & Fasquelle, 2006, pp. 81-85. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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