DEUS RECONHECERÁ OS SEUS
por Bruno Andrade


ou


JEAN-CLAUDE BRISSEAU E A VERDADEIRA REVOLUÇÃO


Sou a favor do povo e não dos príncipes, mas acredito que a mise en scène deva fazer entender o quão importante é o menor gesto de um Príncipe, e quão importantes são as suas mortes.

Vittorio Cottafavi

O privilégio é meu de filmar e de viver na França como artista. Nada como um país que descende um pouco mais a cada dia na curva de seu inexorável declínio. Nada melhor que uma terra sempre mais provinciana, dirigida por alternadas equipes igualmente incapazes, desonestas e corrompidas pelo apoio a um regime de total e permanente corrupção. O que se pode preferir a habitar sobre um lugar onde a justiça é a pior bagunça? Que artista não sonharia com tal nação? A quarta maior potência econômica do mundo, dizem, enquanto a negação disso dorme diante da porta, pedindo esmola para aliviar a dor de quem tem fome. Sim, é do nosso tempo que eu sou o inimigo em fuga.

Jean-Luc Godard

“As paixões ensinaram a razão aos homens”, disse, certa vez, William Shakespeare.

O raio de alcance da frase acima é, como bem se sabe, infinito e, portanto, incalculável. Seja pela sua potência de esclarecimento e de revelação (do que somos, do que já fomos e do que nos espera), pelo prolongamento extraordinário que gozou em séculos de atividade humana (de todos os tipos: artística, filosófica, prosaica, mundana...) ou por inspirar a transmissão de uma verdade fundamental que se vê renovada a cada geração, esse raio se amplia até hoje e é o seu horizonte que nos estarrece e nos deixa perplexos quando nos deparamos com trabalhos que, como os de Jean-Claude Brisseau, são capazes de evocá-lo, descrevê-lo fielmente e, assim, conservá-lo.

Se, por um lado, e pelos motivos acima expostos, esses trabalhos revelam uma inclinação à universalidade que está na origem de obras como a do próprio Shakespeare, por outro o que distingue Brisseau é a perspectiva cósmica perturbadora, obscura e por vezes turbulenta à qual ele finalmente orienta a sua obra, próxima nas formas mais extremas que assume (À Aventura, A Garota de Lugar Nenhum) das fronteiras léxicas exploradas por Kubrick em 2001 ou por Georges Bataille em O Erotismo. Se algo nos desorienta na lacuna entre o classicismo inicial da obra e a vocação natural de Brisseau para o paroxismo, isto jamais diz respeito à técnica - sempre firmemente ajustada à matéria que aborda, tendo tanto como pressuposto quanto como finalidade uma equivalência espantosa entre o traço do artista e o modelo que ele toma -, mas sim ao que esta é capaz de detectar e averiguar: a descoberta do mundo num coração jovem, “o universo inteiro” que bate no coração da pequena Isabelle em Um Jogo Brutal. Mas, como o filme na sua totalidade nos mostra, essa descoberta precisa passar pelo conhecimento do mal, bem como pela sua representação, para poder descrever todas as latitudes, todas as tonalidades, todas as gamas da cadeia vital que o personagem de Bruno Cremer (louco, assassino, gênio, agente de Deus? Tudo isso ao mesmo tempo) convoca para explicar a natureza como um sistema de auto-equilíbrio, um absoluto. O método de que Brisseau se vale para chegar a esse conhecimento, e que será extensamente explorado, renovado e adensado nos filmes seguintes, é o mesmo que leva Isabelle a abandonar sua condição original, selvagem, bruta e seguir rumo ao cumprimento pleno de seu papel neste mundo, ou seja, da sua existência: permear-se de tudo o que se faz presente no mundo sensível, atingindo uma espécie de epifania material e carnal (próxima daquilo que a teologia chama de “encarnação”), aderindo, absorvendo e sentindo no mais profundo de si cada substância que se integra a essa arquitetura cósmica “cuja beleza global nasce da exatidão do papel atribuído a suas partes”[1], e que é comumente e sugestivamente chamada de transparência.

O paradoxo a que esse método se encaminha, tanto para Brisseau como para a personagem interpretada por Emmanuelle Debever, é que ele acaba por desempenhar o oposto do papel que habitualmente lhe é atribuído: o arco descrito por Um Jogo Brutal, que abrange o amor que nasce numa filha pelo pai que a rejeitou, concretiza-se apenas na súplica da filha por uma intervenção divina que levará o pai à morte. A forma, em Brisseau, tende ao mesmo: almejando a transparência, a completa aderência da matéria por uma forma de devoção dedicada ao que é nítido e evidente no mundo, ela designa melhor que nenhuma outra aquilo que é opaco, inacessível e insondável - asceses, milagres, todas as manifestações dos grandes mistérios do cosmos. Trata-se, muito simplesmente, de algo que não é nem um pouco simples: sondar o insondável.

Essa fé na matéria, essa crença resoluta de que a experiência concreta terminará por restabelecer a ordem primitiva do mundo, a qual ainda é capaz de preservar a sacralidade e a anterioridade das coisas (secretas ou reveladas) na sua imanência, é, em Brisseau, e contrariamente ao que observamos em Shakespeare, Hugo, Goethe ou Murnau, um traço irredutível da sua modernidade. Como Straub, como Buñuel, como o Balzac de Ilusões Perdidas e como Simone Weil, ele se coloca na rota das adversidades, ele chega mesmo a colidir violentamente com as contrariedades para pôr em prova a validade, a pertinência, a integridade do seu método. As paixões ensinam a razão ao homem, mas ao contato com esta razão o homem prova pela primeira vez a sede do absoluto, e cabe a ele a partir de então mantê-la viva no mundo em forma, novamente, de paixão. Essa contenda entre paixão e razão, representada de maneira extremamente simples, esquemática, arcaica mesmo, cuja elegância se situa entre a iluminura e a “image d’épinal”, remonta menos aos grandes clássicos que aos diagramas abstratos e a frontalidade violenta, ferrenha para sermos honestos, que compartilham os maiores e mais intransigentes autores modernos (de Lang a Bresson passando por Ford e Tourneur, de Matarazzo a Fassbinder passando por Newman e Blain). Se, como diz Pedro Costa a respeito de Straub (“Para ser um materialista, você tem que ser um místico no começo... ou no final”) ou Vittorio Cottafavi sobre Buñuel (“Se a relação entre homem e Deus tem como primeiro grau a prece, como segundo grau tem a blasfêmia: a indiferença não cria relação entre homem e Deus, e, portanto, a blasfêmia já sinaliza o primeiro passo do itinerarium rumo a Deus”), é “a adversidade que põe à prova o espírito” (Shakespeare novamente), então sim, “tudo é Graça”, isto é: serenidade diáfana após tempestade epifânica, supremacia da evidência após o furor da revelação.

Mas como pode um cinema eminentemente materialista sustentar a revelação da infinita Graça de Deus, que também atende pelo nome de eternidade?

Com uma precisão fulgurante, sua mise en scène vai direto ao centro da vida e agarra o homem na verdade mais nobre do seu confronto com o universo. Ele é, por excelência, o cineasta cósmico. Ele representa a concretização do projeto cinematográfico, na medida em que restitui ao mundo sua brutalidade original.

Michel Mourlet[2]

E, afinal de contas, o que vem a ser um cinema materialista?

Em síntese, isto:




O plano-contraplano corriqueiramente é nada mais que uma figura de linguagem, um macete retórico: a imagem de alguém que fala, seguida da imagem de alguém que escuta. Transgressor incansável, como Losey, McCarey, Tourneur, os irmãos Marx e Godard, Brisseau explode do interior (o que finalmente o aparenta mais à linhagem Guitry ou Tourneur que à linhagem Guiraudie ou Godard) a função reiterativa de todos os recursos elementares do cinema - partindo, como se vê acima, do mais elementar de todos:

1) Uma garota, Sandrine, vestida de noiva, observa algo fora do quadro (e diz, em voz off, que trata-se de alguém escondido num canto);

2) Na realidade seu olhar vai de encontro àquela, Nathalie, que odeia-a sob a forma de um olhar, e que por isso podemos julgar ser sua rival (vendo o filme, sabemos que foram amigas e, mais importante, cúmplices até certo ponto da narrativa);

3) No que é de fato o contraplano (ou seja, algo que não poderíamos antecipar nem pelo primeiro nem pelo segundo plano), vemos a mansão que pertence ao sujeito que casou com Sandrine após dispensar Nathalie.

As duas garotas, pela posição que ocupam no quadro e pelo próprio fato de cruzarem seus olhares, e a despeito do que nos é dito pela fala em off, equivalem-se mais do que se opõem: são, se não intercambiáveis, complementares (o que nos será confirmado mais tarde, nos dez minutos finais do filme). Da mesma forma, o objeto de ódio de Nathalie é menos Sandrine do que o homem com quem esta se casa (o que também nos é revelado nos dez minutos finais). Mas a simples aparição do homem nesta seqüência de imagens beiraria a tautologia televisiva (com a qual, deve ser dito, Brisseau não cessa de flertar, apenas para ir além dela, continuamente criando em nós expectativas que são uma após a outra frustradas), mais ainda por ser menos o homem que seu poder, sua vontade de potência, o verdadeiro objeto do ódio de Nathalie. Nesta progressão, a simples imagem desse homem não passaria de um pleonasmo (Brisseau chega a mostrá-lo antes, rapidamente, apenas para se desfazer de sua presença), um homem bonito vestido a caráter para um casamento. Uma vez que o que importa é atingir o cerne, ir direto ao centro, ou seja, ser o mais concreto, o mais material possível (ver o ódio pelos olhos de Nathalie), é da mansão, símbolo da fortuna que esse homem esbanja em uma vida alcoviteira e libertina (eis o que leva Nathalie a odiá-lo), que se ocupará o verdadeiro contraplano, aquele que não poderia estar contido nem ser designado pelos planos anteriores.

Esse abreviamento da significação, favorecido pela sucessão inequívoca das imagens e reforçado, além do mais, pela articulação precisa entre a fala em off e essas imagens, torna-se ainda mais eficaz a partir do momento em que Brisseau estabelece uma disjunção entre a continuidade da voz off e a descontinuidade do que vemos no campo da imagem. A articulação do discurso se dá, aqui, pela coordenação da alegoria (a imagem da mansão simboliza ao mesmo tempo a rivalidade pessoal e o poder social almejado pelas duas garotas), além de recorrer a um expediente elementar em matéria de linguagem metafórica: a finíssima - e, no caso desta seqüência de planos, afiadíssima - construção elíptica do filme, na sua retidão, na sua transparência absoluta, permite ao espectador prosseguir adiante e sempre, mas sempre em volteios. A partir dos sentidos que nos são propostos, a partir do que somos capazes de deduzir e articular das informações no momento em que estas nos são dadas, serpenteamos, supomos, conjecturamos, vacilamos, eventualmente recuamos do absurdo, e mais tarde aceitamos que, aqui (o mundo de intrigas da alta burguesia; a luta de classes; um universo de conspirações em que cada lance de dados é definitivo), o absurdo faz-se lei.

Mas é estranho; por vezes, para nos perdermos, contam-nos os agentes das trevas alguns fatos verídicos, seduzem-nos com coisas inocentes, porém de pouca monta, para nos arrastar a conseqüências incalculáveis.

William Shakespeare, Macbeth, Ato I, Cena III (prefácio do roteiro de Os Anjos Exterminadores)

Oh, Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre.

Martin LaSalle ao final de Pickpocket, de Robert Bresson

Ao final de Coisas Secretas, o filme dos planos acima, Nathalie e Sandrine reencontram-se. Suas vidas tomaram rumos opostos: Sandrine transformou-se numa rica empresária enquanto Nathalie, após anos passados na prisão, casou-se com o guarda prisional que conheceu nesse período e com ele teve uma filha. As duas se aproximam e se olham (mais uma vez), desta vez de muito perto. Nathalie, a que ficou anos presa, dá um beijo em Sandrine, e pede perdão. Ela, a que se fodeu, a que foi abandonada e vilipendiada de todas as formas, pede perdão àquela que a fodeu e a traiu. Nenhuma dúvida quanto ao que vemos: o beijo sela a manutenção do abismo entre as classes. O absurdo faz-se lei, mas apenas para ao fim e ao cabo restaurar a ordem eterna, irredutível, das coisas: secretas ou sagradas, obscurecidas ou reveladas nos corações dos homens, pouco importa, são e permanecerão sendo eternizadas pelas ações do homem aqui - isto é, entre o céu e a terra. Um círculo se fecha. As grandes obras são por ele circunscritas tanto como o circunscrevem. A de Jean-Claude Brisseau, como a de Michael Cimino, é uma grande obra circular - isto é, tocada por Deus.

***

Nos últimos 40 anos vimos um cineasta (de acordo com a denominação “controlada” por Louis Skorecki) partir dos meios mais rudimentares e primitivos para atingir uma forma de ascese na qual o cinema, após ser conduzido ao extremo de sua materialidade, despoja-se desta matéria para revelar-se na sua própria essência. Como a relva que, somente refletindo a luz do sol, parece capaz de absorver e sublimar a própria manifestação do divino em Os Indigentes do Bom Deus e Céline (talvez os dois mais belos filmes da história do cinema), os filmes de Jean-Claude Brisseau - A Vida Como Ela É, As Sombras, L’échangeur, Um Jogo Brutal, O Som e a Fúria, Boda Branca, Céline, Anjo Negro, Os Indigentes do Bom Deus, Coisas Secretas, Os Anjos Exterminadores, À Aventura, A Garota de Lugar Nenhum e, atendendo aos nossos anseios, Des jeunes femmes disparaissent - descrevem, através das conquistas da carne e as vicissitudes do espírito, os caminhos que levam ao contato com algo maior do que nós (o divino, a finitude, as revoltas, as paixões fulminantes, e finalmente consentir em participar do Grande Plano), algo que extrapola o quadro de nossas consciências e nos faz alcançar uma espécie de supralucidez, a qual também podemos chamar, mais simplesmente, de conversão.

Portanto, tudo pode recomeçar. O próprio mundo, se soubermos ver bem (os finais de As Sombras, Céline, Indigentes, Coisas, À Aventura), algo que necessariamente passa pelas nossas próprias capacidades de transformação - tanto a nossa, espectatorial, como aquela, vital, dos personagens de Brisseau. São essas duas transformações que, mais do que qualquer outro filme de nosso conhecimento, Coisas Secretas conjuga ao seu final: o retorno ao metrô, o mesmo local em que, ainda no começo do filme, Nathalie, com a cumplicidade de Sandrine, confabula seu plano de revolução e ascensão social: “começaremos a ousar imediatamente”. Vemos as companheiras de luta de outrora agora separadas, e aqui o pedido de perdão não sela outra coisa senão a não reconciliação: Nathalie toma o rumo do metrô, condução para proletários, imergindo mais uma vez no mundo subterrâneo (o mundo dos escravos), mas desta vez com a sua família, ou seja, acompanhada da sua prole (a filhinha), enquanto a Sandrine resta apenas retornar, sozinha, à limusine-carro funerário que a aguarda em frente a uma mansão, e que a conduzirá ao seu império (ao seu sarcófago). Eis aqui, em todo o seu esplendor, a chave da conversão brisseauniana: o consentimento na participação do Grande Plano não exclui a insurreição e a possibilidade de novas revoluções. Assim sendo, e como a própria diz que sua mãe fez com ela, caberá a Nathalie (a soma de todas as heroínas e heróis brisseaunianos, da Agnes de A Vida Como Ela É ao Fred de Os Indigentes do Bom Deus) transmitir à sua filha o que a vida lhe ensinou, lá onde a vida lhe ensinou.

Aquele que diante do plano final de Coisas Secretas não vê, nesta boca que se abre para a escuridão, a história de todas as revoluções (bem como a última trincheira possível dessa história) engolindo a todos nós, protagonistas e espectadores dessa tragédia, não vê nem jamais verá nada.

Eis, portanto, o que esse cinema designa como armas necessárias para a verdadeira, a única, a derradeira revolução: ser capaz de arrumar a própria cama (Céline); saber perdoar ao próximo (Um Jogo Brutal, Coisas Secretas); e estar lá nos palcos onde nascem as verdadeiras revoluções, como quando uma mãe desce as escadas do metrô de mãos dadas com a filha, que poderá suceder-lhe lá onde ela fracassou...

Platão viu Diógenes lavando legumes para comer, e então foi até ele e disse: “Meu caro Diógenes, se você soubesse cortejar os reis, não estaria lavando legumes.” E Diógenes respondeu prontamente: “E você, caro Platão, se soubesse lavar legumes, não precisaria cortejar os reis.”



Notas:

[1] A fórmula, que faz pensar em Brecht, é na realidade de Michel Mourlet, num texto que em momentos parece descrever a técnica do casal Straub-Huillet, mas que na realidade aborda a obra de Raoul Walsh: “Uma Lucidez Viril”, Présence du Cinéma n° 13, maio 1962, p. 3.

[2] Michel Mourlet, Sur Joseph Losey, La furia umana nº 17, outubro 2013.

 

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