ACORDAR A VIDA
por André Barcellos


Nunca o indivíduo esteve tão completamente entregue a uma coletividade cega, e nunca os homens foram mais incapazes, não só de submeter suas ações a seus pensamentos, mas até de pensar. As palavras opressores e oprimidos, a noção de classes, tudo isto está muito perto de perder toda significação, de tal modo são evidentes a impotência e a angústia de todos os homens diante da máquina social, que se transformou em uma máquina de partir os corações, de esmagar os espíritos, uma máquina de fabricar inconsciência, tolice, corrupção, desfibramento e sobretudo vertigem.

Simone Weil, Reflexões Sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social

Je ne vois plus rien,
Je perds la mémoire
Du mal et du bien...
Ô la triste histoire!

Je suis un berceau
Qu’une main balance
Au creux d’un caveau:
Silence, silence!


Paul Verlaine, excerto de Un grand sommeil noir[1]

Creio que só há um problema conosco: Nós temos estado muito distantes.

Ed Avery (James Mason) para Lou Avery (Barbara Rush) em Delírio de Loucura (Bigger Than Life, 1956), de Nicholas Ray


A Simone Weil


A beleza do cinema de Jean-Claude Brisseau, como um radiante contrafluxo ao falso progresso, talvez não seja outra coisa senão a manifestação de um espírito que íntima e aparentemente se permite desprezar apenas uma coisa, ou antes de qualquer coisa: o fanatismo. Essa doença extremamente triste e perigosa, ele primeiro a rejeita com vigor nele mesmo: e podemos aí cogitar se não seria esta qualidade de caráter o fator decisivo para o desenvolvimento concreto de sua arte, a base ética sem a qual sua imaginação, que é realmente grandiosa e de visões quase sempre espantosas, poderia se perder na confusão e no desespero sem nunca se realizar, ou ainda se realizar de forma a não possibilitar, a si mesma e a nós, qualquer respiração. Mas Brisseau, como poeta e como professor, é um cineasta forte e humilde, e trabalha sua visão com firme zelo e inteligência. Faz pensar na clarividente sugestão de Kafka de que, no combate entre si próprio e o mundo, deve-se escolher o mundo... O que nada tem a ver com não intervir no mundo - antes o contrário. Mas para que uma intervenção desta extensão se dê, uma constante autocrítica deve acompanhar cada gesto do cineasta, e cada filme é então tratado como uma trama de questões que merecem toda a atenção. Sempre em busca de respostas, Brisseau precisa se dirigir ao real de modo adequado: utiliza métodos rigorosos para a dramatização a partir do que estudou e aprendeu em livros, em filmes e nas ruas, ambientes que freqüenta ou que já freqüentou, experiências que já teve ou que lhe foram narradas, conquistando por fim a encenação mais íntegra de um mundo que ele descobre emaranhado em contradições, nas quais ele também se vê e se mostra implicado. É um verdadeiro, exigente, rigoroso e superior cineasta experimental.

Este seu traço de franqueza junto à atenção ao drama sensível em toda parte, enfim, seu coração sempre sincero, seus sentidos saudáveis e seu juízo em constante exercício, permitem que Brisseau se despoje dos elementos que não teriam relevância nos universos em que situa seus filmes, e assim tudo o que ele conserva aparece brutalmente.

Seus filmes possuem uma arquitetura tão densa - de palavras precisas, de ações e reações, de vozes, de silêncios, de posturas e de gestos, de texturas e angulações, de perspectivas que se abrem para se investigar o mundo real e cotidiano, submergir nas fantasias da memória e nos desejos de homens e mulheres e iluminar a emergência de suas emoções, relacionando os seus dramas numa forma em que estes são postos tão intrincadamente uns em relação aos outros (e ao todo, como a grande criação), dando a ver o que há de extraordinário no ordinário de nossas vidas, de violento no inocente, de sofrimento no monstro, de prazer na dor, de dor no poder, de satisfação na obediência e de perigo de morte na assunção absoluta do ego - que se torna impossível assistir a eles sem participar de um sentimento de inquietude com relação à vida.

Infelizmente, é um lugar bastante solitário o que este cineasta ocupa, não por ser um grande intelectual prolixo cujos raciocínios se comprazem por si só em sua singular complexidade - não, Brisseau sempre buscou o grande público e a simplicidade, a frontalidade e não o obscurantismo -, mas justamente por fazer deste seu ofício uma constante afirmação de liberdade tanto em relação às suas próprias obsessões (ele as confronta em si mesmo, fazendo delas também motivos de seus filmes) quanto com relação aos preconceitos da norma e às modas que não produzem nada de positivo, mas apenas se deleitam em obedecerem torpemente ao mais cínico senhor: o dinheiro e as suas quinquilharias.

Seu pensamento, que não se submete, tem a velocidade e a força para chegar inteiro aos instantes fugazes das aparições inesperadas (ele diz que passou, quando mais jovem, por experiências mediúnicas de mesas girantes), dos relâmpagos que nos desorientam um pouco na nossa sonolenta vigília, mas que ele contempla e analisa, aprendendo os caminhos por onde corre a energia espiritual: uma palavra proferida não diz respeito apenas àquele que a proferiu, não revela apenas uma de suas facetas, mas ressoa e conturba o mundo, pode até mesmo matar alguém, então Brisseau precisa muito rapidamente nos mostrar o rosto ou todo o corpo daquele que a ouve porque ali também se encontra uma das aparências em que respira o infinito, e, se este corpo atingido pela palavra se manifestar sensivelmente, por mais sutil que seja essa manifestação, talvez voltemos a ver aquele que a proferiu, porque neste exato momento ele será tocado pela reação que já se tornará uma nova ação... Ou talvez sejamos levados para mais longe, em outro espaço e outro tempo, onde se estendem ondas de significações que darão motivos dramáticos a este novo momento que se abre.

Assim, Brisseau não encena apenas um mundo com os seus supostos desenvolvimentos irreversíveis e isolados numa linearidade hermética, mas, infiltrando-se nas leis da realização, da construção e da comunicação dos espaços e dos tempos, levanta pontes sobre abismos que acreditávamos intransponíveis e abre janelas - a serem atravessadas, como Fred a saltar após seu grito por Elodie - nos muros que separam os corredores de labirintos em que as consciências se enveredam: a realidade em Brisseau tem continuidade, contato, ela é feita de reverberações e reviravoltas de desejos contraditórios, ou ainda ramificações que tornam a se tocar e a reconhecer a origem única de sua vitalidade, para outra vez olharem para o horizonte, novamente desconhecido ou intimamente reconhecido após a catarse, e dispararem em busca de sua mais nobre realização possível. Os filmes não são um cristal de tensões que se anulam e duram, mas a dança de inúmeras fontes da imaginação que se encontram e voltam a se distanciar. Ocorrem a todo momento erupções na pele, nos olhos, na voz, nos cabelos, nas folhas, nas montanhas, nas mãos, sopros da alma que um dia foi livre. A encenação aqui é o que consegue não apenas harmonizar estes movimentos selvagens, sem contudo lhes tirar a força e a respiração, mas também encontrar a melhor posição para a mirada de seus vôos e de suas quedas. Este gesto que encerra em si o paradoxo da captura e da liberdade talvez seja o próprio ato poético, tão difícil, tão controverso, tão incompreensível.

Todas as questões da vida, o amor, a paixão, o medo, a morte, a violência, o idealismo, o materialismo, a natureza, o dinheiro, Deus, anjos, fantasmas, relações de classe, relações com o passado e com o futuro, desespero, revolução, fracasso, desencanto, progresso, sujeito, objeto, poder, olhar, respirar, desviar, fugir, comprar, inconsciência, sexo, lucidez, vontade de morrer, vontade de aprender a viver, tudo se encontra em Brisseau como interrogações, como coisas reais que se desvanecem, que perdemos, coisas irreais que permanecem e atormentam os personagens, e tudo se transforma em questões cinematográficas: onde e como o cinema toca todas essas realidades da fantasia humana, como ele age nelas ou atua com elas. Tudo se transforma em uma questão de encenação cinematográfica, de direção do olhar, de construção do espaço, de ritmo, de consecução de elementos precisos, de distâncias, de ângulos sobre atores que se defrontam com textos altamente complexos, que por sua vez se sustentam como uma coisa só, uma unidade cujos fundamentos se tocam e se ecoam mutuamente, ora se contradizendo, ora se reafirmando, mas sempre retirando dos personagens e de nós as certezas que nos permitem permanecermos confortáveis. A percepção que se alcança geralmente é a de que tais mundos, que reverberam o nosso, encontram-se em um estado geral de inconsciência coletiva e convulsiva, e também de que, parece, toda decisão é um risco, realmente toda, sem que aí os homens o percebam claramente. Um gesto, um destino que se traça. Para escapar: muita dor. Ou a graça, a ação do sobrenatural, o infinitamente pequeno que espera, o amor de Sandrine por Fred, em Os Indigentes do Bom Deus, ou a combinação de pessoas e acontecimentos muito precisos e muito minuciosamente bem colocados na vida de Isabelle, em Um Jogo Brutal, que a retiram da sua clausura de agonia e desespero, ou ainda o sopro da oração da mesma Isabelle pelo pai louco.

Todos os seus filmes possuem um lado benevolente, e todos, pela demonstração contundente da gravidade, da inconsciência de seu funcionamento nos movimentos da alma e da limitação do olhar humano, justificam ou compreendem a violência. Ao mesmo tempo em que Brisseau responsabiliza a todos pelo destino dos mundos encenados - pois todos os que aparecem nestes filmes realmente têm vida (encarnação - imagem, suor, sangue, ar e fogo anímico -, a visão destes corpos como corpos de seres humanos - pensamento, vontade, dor, prazer, medo, ganância...) e, como têm vida, têm também peso e influência -, num mesmo ato faz com que contrários se choquem, evidenciando a infinita complexidade das relações, seus jogos de luzes e de sombras que se intercambiam e a todo momento criam novos significados, invocando o passado e o futuro mais distantes, pondo a nu a perplexidade no momento de se julgar o Bem e o Mal, pondo a nu as infinitas nuances fugidias - às vezes em um único plano próximo de um rosto - que haveriam de ser ultrapassadas, compreendidas e superadas antes disso, mas para as quais já dificilmente somos capazes de dedicar a atenção. De modo que, abaladas as nossas certezas mais corriqueiras e acordadas outras mais comprometedoras e cotidianamente renegadas, sentimo-nos intimamente tocados e também implicados intelectual, moral, emocional, espiritualmente.

Brisseau fala que buscava fazer que quem visse A Vida Como Ela É descobrisse junto de Agnes, a sua personagem principal, aquele mundo periférico de Paris, em que ele mesmo passou a sua infância e cresceu, e algumas emoções possíveis que ele conhecia e tentava trabalhar, recriar. E o que vemos são enormes blocos de concreto, corredores escuros, porões, céu azul, branco, cinza sobre uma praça sem árvores, uma gigantesca maquete do progresso desumanizado, assassinatos e suicídios. Desde o seu primeiro longa-metragem profissional Brisseau não dissimula a sua ferocidade em relação à inconsciência construída, comprada e vendida, nem muito menos simula uma.

Vemos o trabalho de um cineasta já consciente do fato de que, se também a paisagem pode recordar a moral que a desejou, a projetou e por fim a realizou, e que assim o continua fazendo, é preciso olhá-la por um ângulo e de uma distância adequados para que se possa notar tal prolongamento. O ângulo e a distância, pelos quais a câmera se volta para as garotas que sobem as escadas em direção ao conjunto habitacional, nos dão a ver este bloco de concreto não como um lar que as recebe, mas que, imenso, indiferente e monstruoso, as absorve.

Para visões como esta é preciso exercitar uma atenção abrangente sobre o drama e o ambiente dramático, se relacionar íntima e pacientemente com a realidade que sempre muda de aparência. Caminhar, observar o espaço a partir de diversos pontos e decidir pelo mais adequado para posicionar sua câmera, aquele pelo qual podemos apreender diretamente as relações de força da sociedade radicadas na própria paisagem que ela constrói, nos próprios gestos que ela explícita ou veladamente impõe aos sujeitos... Mas além disso é de extrema importância em Brisseau o fato de que ele encontra também, no mesmo mundo, a perspectiva e a abertura do espaço que dá alguma chance à rebeldia e ao prazer, por onde vemos o céu, a luz do sol, o vento nas folhas e nas águas de um lago.

Pensemos um pouco, mantendo em mente toda a distância, no quê talvez podia sentir Jean-Claude Brisseau quando criança, morando em um destes conjuntos habitacionais que ele nos mostrou de forma absurdamente triste e violenta em seus primeiros filmes para a televisão e depois em O Som e a Fúria, desta vez ainda mais fantástica, triste e violentamente. Pensemos no que esta criança que viveu aí, que freqüentava estas escolas nas quais mais tarde lecionou, escolas das quais ele também nos deu a sua dura impressão, pensemos no que ele pôde aprender freqüentando assiduamente o cinema, Um Condenado à Morte Escapou... Também no que ele amou no cinema, os personagens encarando a vida, confrontando o inimigo e o espaço olhando-os, essa moral, essa liberdade, esse amor bravo pela existência, conseguir sempre se nutrir de uma beleza que justifique suportar o peso, a presença do perigo, a invasão, a morte daquilo ou de quem se ama... Em John Ford os homens viviam e aprendiam a viver e alcançavam alguma vitória - escapar da prisão, conquistar uma mulher, construir uma cidade ou uma casa, salvar um amigo, salvar a si mesmo ou manter a própria dignidade... - ao olhar francamente para o mundo. Agora lembremos o que fala a Agnes e a sua amiga o zelador (interpretado por Lucien Plazanet, o tio de Brisseau!) quando elas se mudam para o alojamento em A Vida Como Ela É: “As pessoas aqui são muito tristes, elas não falam mais umas com as outras. Quando não havia elevador, elas se misturavam mais, ricos com pobres, elas se cruzavam e conversavam nas escadas, elas discutiam!”

Um jovem futuramente gritará reclamando a todos que vivem ali: “Eu não quero morrer! Eu quero aprender a viver! Viver! Vocês estão todos mortos! Acordem, cadáveres! Levantem-se!”. Um tiro invisível o atinge. A agonia gritante e a cotidiana violência perturbam um pouco o grande sono que caiu sobre aquele ambiente, a ponto de alguém se levantar para abafar a rebeldia, e esta é toda a resolução. O despertar decisivo das consciências, isto não acontece naquele mundo. Temos desde o primeiro plano deste filme, o deslocamento horizontal pela caótica sala de aula, a visão de um mundo ofegante e de um tempo que passa já sem conseguir olhar para o horizonte, uma inércia.

As trajetórias dos personagens são movimentos de revoluções violentas: aspirações furiosas, delicadas ou já sem grandes esperanças, a um outro fluxo, levando a mudanças de direção: paradas, contemplações, aprendizados, retomadas, retornos e novas viagens. Personagens que despertam para uma realidade imprevista. Isto é o que importa. E eles são profundamente solitários, isto os une a todos. Almas solitárias, que com muita dificuldade encontram seus pares. Eles iniciam os filmes colocando os pés no limiar de um portal para uma radical transformação, e estão fazendo isso sempre sem antever as grandiosas proporções dos acontecimentos que os aguardam. A partir deste salto inicial, eles se encontram em uma extrema solidão (mesmo que se unam a comparsas para o desempenho de um golpe - Os Indigentes do Bom Deus, Coisas Secretas, Anjo Negro - ou sejam retirados gradativamente do abismo por novos amigos - Céline, Os Indigentes do Bom Deus -, mesmo com a amizade, durante muito tempo eles estão profundamente sozinhos e precisam fazer uma completa avaliação de toda a sua história, precisam aprender ou reaprender tudo, caso das trajetórias de Isabelle em Um Jogo Brutal, Fred em Os Indigentes do Bom Deus, Jean-Roger em O Som e a Fúria, Céline... E devemos notar que muitas vezes o aprendizado sofrido por um acaba levando o outro a também sofrê-lo, seja o mesmo ou diverso), mas sua vontade de viver ou de morrer é tal que suas ações acabarão, muito mais do que eles imaginavam, e muitas vezes catastroficamente, abalando as estruturas que sustentavam um estado de coisas viciado. Nada do que é feito cai no vazio. Tudo é dialético. Isto é devidamente salientado: a história e o aprendizado dos personagens não se passam no vazio, não acontecem sem uma dupla resistência, por parte deles e por parte do mundo exterior. Os conflitos em que eles estão amarrados são, desde muito cedo, colocados em cena, assim como a atmosfera em que estão metidos com maior ou menor inconsciência, e ainda o tom com que o filme tratará o drama: tudo isso nasce ao mesmo tempo e evolui aos nossos olhos como um mundo de relações interiores e sensíveis.

Não é difícil perceber a infinidade de fatos que interessam a J.-C. Brisseau, os quais ele ama, pelos quais ele se alegra ou chora. Cada mundo encenado se abre infinitamente, para dentro e para fora: cada movimento seu é visto como gesto, nada aparece sem relação com o todo do filme, e mesmo o gesto que seria geralmente considerado o mais espontâneo e banal é descoberto em sua tensão mais profunda, sendo encaminhado, pela extrema atenção que Brisseau lhe dedica, a uma outra dimensão na qual é descoberto prenhe de possibilidades de ligação com o que veio antes e o que virá depois. Nada ainda está dado e acabado. Jean-Claude Brisseau trabalha sem cessar. Fragmentando a ação, afastando-se e se aproximando dos corpos, concentrando o olhar ora no rosto, ora nas mãos, ora na distância entre as pessoas no interior de um quarto, ou na sala de estudos, ou à mesa, ou rodeadas por árvores, rodeadas pelo ar, ora na postura de alguém dedicado a uma tarefa, ou nos olhos que espiam, que desejam, que desprezam, que já não sabem mais nada, que estão à beira de se descobrir, que lêem um poema... Todo plano é intensamente dramático, vive, justamente porque neste pedaço do mundo é por onde deve passar toda a sua significação naquele instante, ou melhor, todo o seu sentido. Mesmo uma paisagem sem pessoas reverbera o drama humano. Devemos vê-lo, senti-lo.

(Nunca mais vou me esquecer, por exemplo, do plano dos dedos finos e compridos de Sandrine em À Aventura, segurando as fotografias de casamento de Sophie, um enquadramento dos mais despojados e inesperados que nos faz notar suas unhas bem pintadas e cintilantes. A luta de classes está também aí. Em cada plano Brisseau é um artista. Neste filme a sua dramaturgia atinge talvez o máximo da simplificação dos elementos sem perder nada em abrangência poética.)

(Christian Tessier em Um Jogo Brutal entrando no quarto da sua mãe, que, deitada em sua cama, espera serenamente pela morte: nos olhos do homem quase não resta traço do que possa ser a sua alma, subjugada que ela está à força que o governa. Uma negação da vida, um desenraizamento - a mãe lhe pede que volte a buscar suas raízes... Raras vezes ele aparece, mas sempre acaba se perdendo outra vez, e seu corpo, os músculos da sua face, não parecem corresponder a uma relação com o presente exterior. Algo o anima, mas o homem está desesperadamente absorto no mundo de sua loucura, longe de sua humanidade, um desespero calado que não se expressa a não ser na negação violenta de qualquer gesto que possa emocioná-lo sinceramente, na sua mortificação. Ele não consegue ser simplesmente doce com a mãe... A mão que ela coloca sobre a dele, ele não a consegue suportar e se afasta. Ela morre. E agora, no caixão, fria e passiva, agora Tessier toca a sua carne, para dizer que ela já não passa de um pedaço de matéria inerte. Tessier só toca aquilo que certamente não lhe poderá oferecer resistência. É um plano muito triste aquele no qual, mais tarde, quando a sua filha Isabelle é salva de um afogamento e trazida de volta para casa, e ela está acomodada em sua cama, rodeada pelos empregados, e desta vez ele tenta segurar a sua mão, provavelmente o seu único gesto espontâneo, verdadeiramente terno em todo o filme, e é ela quem o recusa. No corpo dele vemos circular abruptamente o sofrimento abafado de alguém que tentou, parece que sinceramente, se ligar pela última vez amorosa e fisicamente com o mundo, mas foi rejeitado. A relação entre pai e filha, que até se tornará mais próxima ao longo do filme - quando a garota começa a compreender algumas coisas por ela mesma inesperadas e a se transformar, fato que ele reconhece -, mesmo esta relação está infinitamente distante do que poderia ter sido caso aquela aproximação física anterior tivesse ocorrido. São poucos os cineastas que possuem tanta convicção do que precisam encarar e que o fazem com tamanha atenção e ciência.)

Que peso, mas também que batimento acelerado estes filmes têm. Uma respiração difícil de se conseguir é sempre necessária a eles, tão mais dolorosamente difícil, aliás, quanto mais necessária, tais são os dramas encenados aí e tal é a constante tensão das suas correlações, a infinidade de significações, a alta velocidade com que estes mundos se desestabilizam e se transfiguram e nascem renovados com todo o seu ímpeto e sua força de cruzamento entre a matéria e a consciência, aspirando a todo o ar que há, tantos são os canais interiores que precisam ser irrigados, o sangue a percorrer o ardente corpo da Nathalie de Coisas Secretas. Com alívio às vezes, quando uma tensão, um suspense, ou uma violência efetiva, muitas vezes no campo do discurso, chegam ao limite do que podemos suportar, quando já perdemos o fôlego e somos apenas concentração e esquecimento de nós mesmos, Brisseau faz um desvio que introduz um momento de relaxamento, uma parada. Talvez estes momentos de saída do inferno de emoções duras, secretas, incompreensíveis e radical e amplamente sensíveis, como um rio de pavor surdo e baixo que corre nas profundezas do mundo ou nos porões de “egos do tamanho de catedrais”; talvez estes momentos de serenidade sejam tão poéticos, frágeis e delicados quanto mais esperamos por eles na visão destas representações, de modo que podem ser alcançados às vezes com muito pouco, com tudo o que basta para preencher todo o espaço e o espírito, com as notas límpidas de um piano, ou o canto de pássaros, ou uma câmera na mão no interior de um carro que avança sobre uma estrada sinuosa na paisagem de montanhas e planícies, azuis, negros, verdes, dourados brumosos, cigarras, e uma voz paterna, grave, segura, relatando a Sandrine os mistérios do tempo da criação e a surpreendente possibilidade de o ser humano, perdido na imensidão, ser capaz de compreender tudo isto: violinos em tons agudos e de grave teor se elevam, avançam e se difundem na paisagem, e lembramos talvez o que era a música para Baudelaire (o que se tornou a arte para Isabelle em Um Jogo Brutal), as seduções do oceano, uma estrela a chamar, salientar o peito como velas de navio e tentar desvendar os reinos escondidos / Sob o manto da noite escuro e frio; / Sinto vibrar em mim todas as comoções / D’um navio que sulca o vasto mar; / Chuvas temporais, ciclones, convulsões / Conseguem a minh’alma acalentar - neste filme cujo primeiro plano é o de um porto, o mito da partida rumo a um continente desconhecido, (À Aventura). Sandrine deita-se acariciada pela fina relva comungando o vento que a envolve com o aroma da Terra.

Em Brisseau, apesar do mal que o homem engendra e dos seus erros catastróficos, ao menos um personagem, após todo um calvário, consegue perceber que é necessário retomar a consciência de si mesmo no mundo, a humildade perante o mistério da vida e o sentido da responsabilidade sobre os seus atos. Vemos os personagens fazendo uma parada na sua trajetória, que ganhara um novo curso, para olhar o horizonte, ação que finaliza alguns filmes. E o mundo aí não é mais aquilo que eles imaginavam baseados em idéias fixas, em obsessões. É assim que pelos filmes atravessa o sentimento de que algo novo pode acontecer no interior de um mundo viciado, algo como uma grandiosa redenção, retirando-o, ao despertar, de seu eterno retorno trágico (dissimulado pela palavra cinicamente utilizada - Progresso), gradativamente, encaminhando o destino no planeta para uma existência em que os homens não mais temam e não mais odeiem os homens.

O terrível em J.-C. Brisseau consiste na possibilidade - que permanece assediando eternamente a vida humana - de que toda a dor, toda a violência e também todas as horas de amor vividas no mundo acabem por não mover nada do seu lugar, passando sem serem realmente sentidas, sem terem sido capazes de acordar os homens. E talvez Os Anjos Exterminadores, neste sentido, seja o seu filme mais terrível. Quando o exercício da atenção é definitivamente sufocado e abandonado, as reduções planas a que o ser humano é relegado e comprimido são de toda ordem, esquecendo-se a sua original condição dramática, histórica, dialética. Mantém-se do pensamento apenas a idéia fixa, superficial, imediata, servindo ora a um senhor, ora a outro, mas os olhos já não se abrem mais, adormecendo a capacidade de perceber as infinitas nuances que a existência cria a todo momento, e por fim a capacidade do juízo, a liberdade fundamental e o desejo do convívio e da construção comuns.

A graça (que é o próprio fato da existência) está constantemente presente, e os personagens precisam aprender a vê-la e a senti-la para escapar à máquina infernal que eles mesmos mantêm em funcionamento, escapar à inconsciência coletiva (O Som e a Fúria) ou à vontade cega de converter o mundo na sua própria imagem mal entendida (o cientista de Um Jogo Brutal)... E Brisseau não esgota a totalidade de seus efeitos na amarga exposição de um mundo inconsciente de si, ficando sempre resguardados pontos de fuga, sempre muito frágeis, para a serenidade da consciência, lugares de natureza virgem e de amor sem culpa, refúgios por onde sopra um ar sereno que dá força e coragem para viver, relembrar e retomar sempre mais uma vez a eterna juventude da vida humana, seu contínuo nascimento. Ainda é possível viver e trabalhar, há esperança de que o mundo não acabe para sempre sendo o berço da loucura programada, comprada e vendida; é possível a união entre as mãos e o pensamento, os instrumentos e a idéia, o corpo e o espírito.

Cerca de dois mil e quinhentos anos atrás eram escritos na Grécia poemas muito belos. Hoje, eles não são mais lidos, a não ser pelos especialistas nesse estudo, o que é uma grande pena. Pois esses velhos poemas são de tal forma humanos que ainda estão muito próximos de nós e podem interessar a toda gente. Seriam até muito mais comoventes para o comum dos homens, ou seja, para aqueles que sabem o que é lutar e sofrer, muito mais do que para os que passaram a vida entre as quatro paredes de uma biblioteca. (Simone Weil, Antígona, 1936.)

Essas palavras de Simone Weil se encontram em uma espécie de introdução sumária ao poema de Sófocles, a qual deveria ser entregue à leitura dos operários de uma fábrica. Lembro a vontade de Brisseau de que seus filmes sejam vistos pelo maior público possível, sem, no entanto, tratá-los pela palavra comercial. Lembro também a sua impressão de que a maior parte das pessoas que puderam realmente compreender ou se sentir tocadas por Os Indigentes do Bom Deus foram as pessoas mais comuns do povo...

***

Brisseau diz que, se há um personagem com o qual ele se identifica, este é o Fred de Os Indigentes do Bom Deus. No seu mais recente longa-metragem, A Garota de Lugar Nenhum, Dora beija Michel (encarnado pelo próprio Brisseau) quando ele está à beira da morte. E então ele pode morrer, tomar seu rumo, porque, graças a ela, como Fred graças a Sandrine, ele saiu da agonia de sua caverna e recordou o prazer de estar vivo, o prazer do vento, da luz, do pensamento, da criação, com ela, seu “doce presente do presente”. Como Christian Tessier, que também ao final redescobriu sua humanidade, Michel aparece para Dora, eles levantam as mãos um para o outro, à distância, e se despedem. Este gesto aparece em quase todos os seus filmes: ou mãos que se tocam e se seguram quando estão partindo juntas para uma aventura perigosa (os dois anjos exterminadores quando desobedecem a Lei; Fred e Sandrine no balcão do banco, pouco antes do assalto...), ou que se dirigem uma à outra no momento de uma partida solitária, para um outro mundo, como o sinal de um eterno vínculo, agora reconhecido e desejado.

Nota:

[1] Poema de Paul Verlaine dito, não exatamente, por Charlotte, a personagem de Os Anjos Exterminadores, a triste e desesperada “amante do diabo”, pedindo socorro quase sem esperança a François, o cineasta que representou para ela uma possível fuga das mãos da loucura, mas que acabará abandonando-a. Traduzo para indicar parte do sentido, apesar das perdas concretas, poéticas:

Eu não vejo mais nada,
Eu perco a memória
Do mal e do bem...
Ó a triste história!

Eu sou um berço
Que uma mão balança
No fundo de uma tumba:
Silêncio, silêncio!


 

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