JEAN-CLAUDE BRISSEAU, O PODER DA IMAGINAÇÃO
por Maxime Renaudin


“Para mim, a definição de imaginação no cinema é um plano de The Wings of Eagles,
[quando] John Wayne se arrebenta todo na escada.”

Jean-Marie Straub

Foi durante uma famosa entrevista com Serge Daney[1] que Jean-Marie Straub lhe deu esta concepção do imaginário cinematográfico, a qual exige do cineasta que mostre apenas as coisas que sabe que existem, as que lhe amedrontam tanto quanto as que ama. Quando a experiência passa pela imagem, quando os sonhos passam pela matéria. Dois anos mais tarde, Daney recebe Jean-Claude Brisseau no mesmo programa[2], e por um instante parece ter esquecido a lição straubiana; ele entoa esse refrão bem conhecido por Brisseau, o da narrativa autobiográfica (“Você, professor dos subúrbios...”), que não tarda a lhe refutar amigavelmente: “Não, não é o caso em absoluto; é simplesmente que falo daquilo que conheço”. Não se deve ver aqui a profissão de fé um tanto tola do esteta em busca da Verdade absoluta mas, mais visceralmente, a obsessão de um homem que crê no valor da experiência individual, na importância de sua transmissão, e na necessidade de sua transmissão. É bem disto que Daney queria falar, sondando a idéia de “pedagogia”.

E Brisseau conhece os segredos subterrâneos de Courneuve[3] tanto quanto os do professor Hitchcock[4]. Ele conhece essa cena de Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960) em que a câmera do alto nos mostra Anthony Perkins transportando sua “mãe” pelos degraus. Quem jamais ouviu Brisseau evocando com paixão essa cena fundadora - do seu cinema - sem dúvida alguma jamais o escutou. O caráter infimamente obsessivo dessa recordação banalizada após inúmeras entrevistas pode surpreender; mas ele restitui razoavelmente bem uma certa idéia de cinema que trabalha - e é trabalhada por - Brisseau. Nada o fascina mais que essa cozinha da criação de imagens, cuja principal virtude seria o sentido lógico, a evidência de um raciocínio matemático que garante à cena sua legibilidade. Pois a cena deve ser lida, assimilada sem ambigüidade, antes de ser eventualmente interpretada. Brisseau admite de bom grado a distância entre a intenção do cineasta e a recepção do espectador - ele a constata regularmente no seu próprio trabalho, mas parece ver neste caso o sinal de um déficit técnico, um vício de procedimento, um erro gramatical que deveria ter sido evitado[5]. Defensor da legibilidade, ele está constantemente trabalhando para erradicar essa lacuna. Em decorrência disso há um trabalho de precisão que calcula milimetricamente e no milissegundo um gesto de uma mão enervada, o alcance de um olhar que se esconde. Poder-se-ia dizer também que Brisseau inverte a célebre fórmula de Manoel de Oliveira[6]: os signos magníficos se banham aqui na luz da evidência. O que não exclui a parte de sombra, de dúvida, que é introduzida - de forma igualmente calculada - pelos elementos fantásticos (retornaremos a isto).

Essa precisão dos gestos é a da experiência. “Você precisa ter visto um homem matar outro para filmar um assassinato?”, ter-lhe-ia perguntado Lisa Hérédia. “Não, porque vi Hitchcock e Fritz Lang”, teria respondido ele[7]. A menos que suponhamos que o próprio Lang tenha passado pela experiência do assassinato[8], podemos considerar que Brisseau aqui se sai bem de uma oportuna pirueta[9]. Mas se lhe acontece efetivamente de tomar emprestadas dos grandes anciãos algumas de suas imagens, não é pelo prazer auto-satisfeito da citação (Brisseau nada tem de um maneirista) mas para consolidar todas essas pontas de experiência, aquelas que são arrancadas do seu próprio passado como aquelas que são furtadas dos anciãos e dos amigos, tocado pela beleza de algum contorno ou pelas ressonâncias de uma emoção. Talvez haja um pouco de Brisseau no personagem de A Garota de Lugar Nenhum, o qual vive recluso entre livros e dvds, em um mundo de recordações metade vividas, metade fantasiadas, e atravessado tanto pelos ícones da cinefilia como pelos fantasmas de uma vida perdida. Brisseau martela o prego no próprio coração de seus atores, o qual deve sangrar sem trucagens: “Não se pode obter das pessoas emoções se elas não as viveram.”[10]

Mas para que isso “dê liga”, como se diz, para que essa re-construção (à morte com o naturalismo!) da experiência vivida não se enrijeça de certezas muito confortáveis, Brisseau necessita de um elemento perturbador - de um contraditor - que, por contágio (termo dele), envenena o real e força o questionamento das imagens. É aí que intervém o fantástico. É interessante aproximar aqui o cinema de Brisseau ao de Jacques Tourneur, o qual, para retomar as belas palavras de Skorecki[11], é “o cinema do invisível, mas de um invisível que se lê e que se desenha sobre o próprio tecido da tela: os traços estão lá, as impressões, e as sombras.” 1) Como o seu primogênito, Brisseau crê em fantasmas. Um pouco menos, diz ele (e eu me perco aqui em conjecturas quando se trata de distinguir os diversos graus de aceitação do “outro mundo”, entre parapsicologia e mística...), mas ele crê suficientemente - nessas coisas “que ele sabe que existem”, portanto - para que seus filmes também creiam (o que é tudo o que nos importa). 2) Também como o seu primogênito, ele nega o fora-de-quadro. Todos os dados do problema estão na tela, assim como todos os signos, tanto os do visível como os do invisível. 3) Novamente como o seu primogênito, ele persegue o invisível e lhe dá corpo. Mas nele a abordagem é mais frontal; os fantasmas não deixam apenas traços, pois são de carne, de sangue e de luz.

É por todas essas razões que, escolhido entre centenas ao acaso, o close de Coralie Revel e Philippe Caroit à beira de uma estrada em Provence (Os Indigentes do Bom Deus) é um dos mais belos planos da história do cinema. Por tudo o que Brisseau conhece do olhar dessas pessoas ricas e belas do outro lado da periferia. Pelo mistério do duplo que impregna o rosto de Elodie-Kim Novak. Pelas palavras invulgares de Jacques-Gary Cooper. Por essa luz doce e cruel que escapa dentre os dois mundos.

Notas:

[1] Microfilms, 19 de julho de 1987.

[2] Microfilms, 29 de outubro de 1989.

[3] Comunidade localizada nos subúrbios do nordeste de Paris (n.d.t.).

[4] O autor faz referência ao filme de Riccardo Freda, Raptus - O Diabólico Dr. Hichcock (L’orribile segreto del Dr. Hichcock, 1962) (n.d.t.).

[5] Deve-se ouvi-lo falar, por exemplo, da remontagem da última seqüência de O Som e a Fúria.

[6] “É disso que eu gosto em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos que se banham na luz de sua ausência de explicações.”, Manoel de Oliveira, em “Godard et Oliveira sortent ensemble”, Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard (1998).

[7] L’ange exterminateur: Entretiens avec Antoine de Baecque (2006).

[8] Alguns não alegaram que ele não era assim tão distante do assassinato de sua primeira esposa?

[9] A questão subjacente sendo: por que ter a necessidade de fazer testes de vídeo com garotas que se acariciam?

[10] L’ange exterminateur: Entretiens avec Antoine de Baecque (2006).

[11] “Contra a Nova Cinefilia”, Cahiers du Cinéma nº 293, outubro 1978, pp. 31-52.

(fevereiro 2014. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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