O CRIADO, Joseph Losey, 1963
por Marc C. Bernard


Tendo-se em conta os filmes mais interessantes que puderam ser vistos de dois ou três anos para cá, parece que Losey é hoje o metteur en scène mais capaz de representar o mundo atual com, ao mesmo tempo, o dom necessário da caricatura e o máximo de força documentária. Apto também a fazer desfilar os seres de exceção tão bem quanto aqueles que correspondem a 95% de nossos congêneres e de nós mesmos (mistura de embrutecimento, tolice, fadiga, desejos vagos e diversão), ele mantém nos seus filmes essa “profundidade humana” sobre a qual o diretor de uma sala de cinema situada perto da Place de L’Étoile falava a propósito de Suplício de uma Alma (Beyond a Reasonable Doubt, Fritz Lang, 1956). Levando-se em conta que a profundidade humana se caracteriza por se situar ao mesmo tempo acima e abaixo da linha da cintura, ela não é definível, mas sim inesgotável. Ela diz respeito a quê (a quê, portanto, dizem respeito Eva e O Criado)? A um esforço de compreensão e de comunicação mantido durante várias dezenas de anos de uma vida. O que ela prova? Não o sabemos realmente, mas que, sem dúvida, o mundo é mal feito e que as chances de melhorá-lo são escassas. Que outra coisa ela poderia provar? Tudo passa e tudo passará: a doença, o sono, o álcool, o trabalho, o ciúme etc. (isto quer dizer o ciúme a rebentar, o sono que vos rebenta, o riso que vos rebentará etc. etc.).

Os filmes americanos de Losey possuíam a mesma emoção, a mesma compreensão e a mesma compaixão dos seus últimos filmes ingleses. E, apesar do que se diz, a dramaturgia de Eva e de O Criado não é diferente da de O Fugitivo de Santa Marta (The Lawless, 1950). Passemos a evolução de Losey vista sob o ângulo da mise en scène e da técnica, pois não somos capazes de falar disso e porque somente Losey deve saber de quê se trata. Por isso, é óbvio que, se nas suas épocas seus filmes americanos eram os mais realistas do cinema, O Criado é fundamentalmente diferente deles apesar de ele também ser de um realismo excepcional. Nenhuma explicação à qual se reportar visto que ela deveria, sem dúvida, remeter ao que foi a vida de Losey após dez anos. É plausível que o realizador de Eva constate ainda mais essa evolução para a qual não chega a dar explicações (e para quê tentar explicar o que quer que seja em si mesmo, se, como por sinal é verossímil e desejável, ele se esforça cada vez mais em viver o seu entorno. O Criado, como M, o Maldito [M, 1951] e A Sombra da Forca [Time Without Pity, 1957], não é de forma alguma um filme de obcecado e se distancia absolutamente daquilo que poderiam ser preocupações pessoais).

A diferença à qual se é, primeiramente, sensível, é de caráter humano. Essa sensibilidade para com os homens e as mulheres no mundo se assemelha à do doente e, em seguida, do convalescente. Sentindo, em tudo, o mal e o sofrimento, ela sente mais que qualquer outra sensibilidade aquilo que é rico, diversificado, concreto e signo de vida (da vida orgânica como da vida pública).

O adjetivo inglês washed up (vencido, esgotado) exprime muito bem uma parte de meu sentimento por esses filmes. Uma exaustão que é uma escavação (como a ação do mar sobre os ossos e as cartilagens) é a impressão direta dada por Armadilha a Sangue Frio (The Criminal, 1960). Após ter lutado durante toda a sua vida por certos princípios morais e artísticos, Losey realiza filmes que dão prova de um espírito livre mas esgotado. É na sua própria fadiga que Armadilha a Sangue Frio é gerador de energia e vida. O Criado, assim como Eva (cf. o plano em que Stanley Baker se despe diante de Jeanne Moreau), acumula os momentos de “verdade bufona e trágica”, segundo a expressão de Blake Edwards. E pode até ser que, efetivamente, nenhum filme americano de Losey tenha se beneficiado de uma visão tão rica, porque essa visão, assim como a fadiga, é o prolongamento natural dos anos de experiência e de uma reflexão lógica sobre esses anos.

Insistiu-se, até agora e merecidamente, a respeito das implicações sociais de O Criado. Não é menos verdadeiro que, no que diz respeito ao embasamento e à exatidão, muitos indivíduos entre Londres e Paris poderiam fazer o mesmo. A vivacidade da mise en scène não terá, em contrapartida, imitador algum. Um amigo que viu um número razoável dos filmes publicitários de Losey me citava aquele em que se vê uma velha senhora preparando e cheirando uma sopa, e a qualidade irresistível de veludez e de perfume que dele podia se depreender. Esses jogos e querelas entre dois tratantes que é O Criado abundam de efeitos similares, repletos de detalhes sensíveis e ativos como raramente se vê no cinema (na realidade vê-se muito mas inopinadamente).

Mais, talvez, que qualquer outro filme, O Criado mostra a que ponto o cinema é eficaz para criar uma atmosfera, exprimir uma emoção e adicionar a isso gags de todas as ordens utilizando os procedimentos mais simples (o filé flambado brandido pelo garçom-cossaco que abre a primeira cena com Wendy Craig; Bogarde manejando com destreza seu saco de compras; os olhos rotundos do mesmo quando anuncia “Just a Beaujolais, sir, but from a very good butler.”). Lembremos-nos também que em A Sombra da Forca a vida de Leo McKern era uma sucessão de gags. Para retornar à “profundidade humana” sobre a qual falamos no início, Losey é certamente o único capaz de fazer planos extraordinários com cães e patos.

(Présence du Cinéma n° 20, março-abril 1964, pp. 13-14. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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