À AVENTURA
por Felipe Medeiros


(À l’aventure). 2008. Moby Dick Films/La Sorcière Rouge/Soficinéma 3/Films Distribution/Shellac (100 minutos). Produção: Frédéric Niedermayer. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Wilfrid Sempé (Fujicolor). Som: Georges Prat, Cyril Jégou. Mixagem: Mélissa Petitjean. Música original: Jean Musy. Cenografia: Maria-Luisa Garcia. Montagem: Maria-Luisa Garcia. Elenco: Carole Brana (Sandrine), Arnaud Binard (Greg), Nadia Chibani (Mina), Jocelyn Quivrin (namorado de Sandrine), Lise Bellynck (Sophie), Estelle Galarme (Françoise), Étienne Chicot (o taxista), Frédéric Aspisi (o arquiteto), Michèle Larue (a mãe de Sandrine).

Tudo se fundamenta como questão de textura no cinema - corpos, paisagens e anima - no sentido de que um registro é antes de tudo uma superfície que remete a outras superfícies ou corpos, cujas sugestões preliminares e posteriores se dão pelo intermédio de uma ciência sedimentada através de técnicas de aproximações.

Esta diversidade de desdobramentos da matéria consiste no fato de que os objetos que jazem sob a cúpula da imanência ocupam uma série - séries - de espaços, ritmos, posições e tempos particulares na arte representativa. Essas técnicas, que visam aproximações perceptivas (a arte laboratorial de que falava Douchet), acabam por forjar invariavelmente, no espectador, um momento de “abstração” de si.

Isto decorre de uma razão simples: uma técnica em si não é capaz de constituir uma significação, mas uma fonte de significação - isto é, fonte, ou seja, o que funda a significação, mas que em si não significa nada, ou ainda: aponta para uma síntese estruturalmente (formal, cênica, modular) fértil para uma tomada de perspectiva que se dá dentro do enredo.

Quando se “disseca” uma obra de arte, tomando a objetividade científica como única forma possível e válida de objetividade, evidencia-se uma postura que está superada pelo menos desde Kant, que a partir do estudo da faculdade do juízo, diferencia o juízo estético dos demais. Ou seja, se as indeterminações próprias do “sentido” são excluídas, não se trata mais de estética. A objetividade estética é constituída sempre mediante aquilo que o filósofo chamava de “faculdade da imaginação” e, inevitavelmente, contemplará “sensações significativas”.

É impossível descrever qualquer obra de arte representativa estando fora de um contexto a priori significativo. Antes de se debruçar sobre uma obra de arte, já está dado por ela pelo menos um sentido preliminar que perpassa a familiaridade com aquilo que é visto ou mesmo de elementos inconscientes difíceis de serem expressos a partir da experiência.

Por outro lado, é possível descrever as pedras dispostas no leito de um rio sem que haja nenhum sentido preposto, nem mesmo um sentido científico. Da mesma forma que há uma dada disposição de um conjunto de pedras a qual evidentemente não constitui apenas um conjunto de pedras, mas uma “forma”, como no caso da escultura, seja ela de qualquer período histórico.

Foram estas divagações preliminares que me tomaram durante a terceira revisão de À Aventura, de Jean-Claude Brisseau. Se por um lado era fortíssima a sensação de se estar lidando com um artista de método profundamente científico na elaboração do que busca evidenciar em cena, por outro lado também são consideráveis as oscilações emocionais de seus tons e texturas, constituindo uma fusão de difícil caracterização.

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A princípio, não vejo outra forma de falar diretamente de À Aventura se não trazendo ao foco o personagem misterioso de Étienne Chicot - intitulado nos créditos como “o homem do banco”. Pois bem: o “homem do banco” se constitui como uma espécie de sábio medieval que teve um surto místico, saiu pelo mundo e, por acaso, chegou ao século XXI.

Diz em determinado momento a Sandrine, com quem constrói uma relação íntima sem sequer saberem o nome de um ou do outro, que é taxista e já foi professor de física. Não é difícil constatar que se trata de um tipo semelhante a Sandrine, que não se adapta a carreira nenhuma. Tudo que aspira é ser um vagabundo capaz de sustentar-se apenas com o fundamental, isto é: o suficiente para, além de ter um teto sobre a cabeça à noite (e uma parede sobre a qual pode desenhar o cosmos), poder pensar e reproduzir algo de valor, preservando assim, longe do caritativo espírito bovino, uma certa liberdade.

Parece ter aprendido o suficiente das implicações metafísicas da morte para preocupar-se com empregos. Assim como a única questão que de fato parece lhe importar é a existência de Deus - preocupação que transparece deliciosamente na contradição entre seu ceticismo científico e as figuras religiosas que decoram sua pequena moradia, visitada por Sandrine ao final do filme.

Neste sentido, cada gesto, cada movimento seu no mundo depende disso... Perseguir a beleza e a liberdade e crer que, no fim, as coisas não foram em vão. Não se acredita em mais nada além da beleza, neste filme estonteante, que retoma preocupações similares a O Som e a Fúria, Céline e Um Jogo Brutal. No sentido de que todas as teorias, todos os discursos, todas as filosofias, a ciência e as atividades paranormais que envolvem os protagonistas de À Aventura estão conectadas ao desejo de Brisseau transcender o estado das coisas em uma nova forma de autarquia do espírito - o retorno transfigurado de seus protagonistas em papéis místicos.

E é aí que reside talvez o que há de mais desconcertante nestes filmes: toda a sua poesia deixa rastros de fuligem, a realidade terá novamente pés descalços ao final das sublimações lançadas à tela. A arte de Brisseau se avizinha às de Murnau e Baudelaire na possibilidade de fitar o abismo através da beleza possível da arte - emblemático, aqui, na cena final de À Aventura, em que o diálogo entre Sandrine e o “homem do banco” desencadeia as sensações mais aterrorizantes via analogias da sobrevivência animal, à qual o homem se insere com o acréscimo da sua consciência de finitude (ecos, aqui, da conversa do cientista com a filha em Um Jogo Brutal).

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Também a Baudelaire me remete o modo como os protagonistas de À Aventura são apresentados por Brisseau - ou, mais precisamente, ao tratamento das criaturas notívagas na poesia de Baudelaire. Ambos não lidam diretamente com aspectos psicológicos dos seus personagens, mas com uma psicologia de cena que implica suficientes insinuações nas expressões pontuais em tudo aquilo que um personagem pode ser capaz de realizar mediante o contato (epifânico) com outros personagens - o que, conseqüentemente, alça a narrativa a um registro fundamentalmente físico no desenlace psicológico das cenas. Neste sentido, a maquiagem, os trajes, os penteados, a postura corporal em determinado assento também podem revelar nuances surpreendentes.

E é justamente por essa ciência de ofício, generosa nos detalhes e na exploração de seu sentido narrativo, que o espectador se vale de dois deleites em À Aventura: o primeiro, sem dúvida, diz respeito à imersão proporcionada por um Brisseau no auge da sua astúcia na arte de engajar nossa atenção na construção do filme; o segundo diz respeito à qualidade do seu elenco de atores aspirantes, cujo método remete dignamente a Bresson naquilo que este falava de portar o ator ao automatismo - o que, a meu ver, não exclui a teatralidade, pelo contrário, apura-a em função daquilo que se sujeita ao registro ontológica e implacavelmente físico desta câmera restituída aqui, como em Bresson, à sua origem de objeto de prospecção científica -, sobrando em arrojo tanto na indução da espontaneidade do elenco como na captação das suas contribuições mais inspiradas.

Do frescor alvissareiro de impressões que se atropelam e se alinham sem necessidade imediata de sentido, percebe-se uma regulagem da mise en scène, na qual se algo entra em “destaque”, por mais aparentemente ínfimo que seja, deve ser assim considerado para manter o equilíbrio em uma unidade geral de tom, e só então ser expelido, transformado, expresso, encorpado a gestos melodicamente significativos para a ação. É precisamente com esta dinâmica que nasce o sentido poético mais surpreendente deste cinema. Um tipo de poesia liberada por associação e deslocamento de peças e tonalidades impensáveis à primeira, à segunda e à terceira vista.

Tudo em Brisseau está ligado a questões de ritmo, de escalas ascendentes de fechamentos de “forma” para os enredos, a partir do material físico dos atores e do cenário como em Méliès e nos cineastas mais ousados do período clássico americano (a ver a fecunda década de 30). Contudo, se em Méliès e nos desbravadores do cinema inverossímil as cartas são postas na mesa durante a distribuição inicial de suas peças, em Brisseau jamais isso é expresso e tampouco se concretiza como nos filmes de Eugène Green (para citar outro par contemporâneo que flerta com o fantástico e a descrição quase documental dos acontecimentos), por exemplo.

O seu cinema, como dizia no início do texto a respeito do misticismo, borra o real e o fantástico a uma linha de expressão completamente independente das ordenações lógicas, que aparenta ganhar corpo por lidar com temas e situações cotidianas a cada época em que seus filmes se passam e que, ao contrário dos surrealistas também, não lidam direta ou indiretamente com sátiras sociais. Ao contrário: o grotesco, a desilusão, o caos e o esfacelamento das esperanças são filmados com a mesma obstinação na descrição dos “fatos” e a possibilidade de tocar a Graça através dos mecanismos da Arte. É essa Graça que consegue injetar possibilidades de expressão ao acaso e à realidade contingente, dando um ângulo justo a eles, uma vez que não teriam como adquirir uma força de expressão em uma posta em cena que não fosse, de uma forma ou de outra, tocada diretamente por tal Graça.

Sandrine e o “homem do banco” são menos fantasmas do que os que nos abordam em Baudelaire, esses perigosos fantasmas que ameaçam nos levar para o abismo num piscar de olhos, literalmente como Greg, o psicanalista por quem Sandrine cai de amores no decorrer do filme e que cria um elo de conversação entre ela e o homem do banco. Desejam tocar e serem tocados pelos contornos do mundo, preservado em uma inocência perdida - vistos e ouvidos por aspectos menos ideais, inclusive. E a Graça tanto em Brisseau quanto em Baudelaire, no final das contas, encontra-se no recôndito de cada sublimação (ou possibilidade de) a partir do encontro entre duas almas que se entrelaçam ao acaso.

Sandrine e o homem do banco são semelhantes, na ânsia de viver, a suicidas que do estibordo escaparam por pouco e que, em determinado momento, sentem a necessidade de cindir-se a dois para melhor ressoar o vácuo interior, amplificá-lo em um diapasão cósmico; e assim permanecerem lacunares às resoluções morais à sua volta, em busca de novos pretextos para chegarem mais perto de alguma coisa em genuína erupção... Que sempre teima em vir, mas que talvez ainda lhes valham a vida ou aponte para uma última sensação capaz de colorir o preto no branco dos papéis a que estão submetidos.

E é precisamente com esta ousadia e deboche, nunca cínicos ou distanciados em Brisseau, que o cineasta rompe com todas as linhas que o positivismo, a política, a religião e os tabus de cada extrato social demarcaram ao seu tempo. E se muito se cita (filósofos, poetas, cientistas), se muito se recorre à ciência da precisão descritiva de eventos vividos por uma grande parcela social, é para no final das contas se constatar que não há gesto mais significativo e misterioso do que o encontro entre dois ou mais seres no mesmo estado de busca. E que a Graça seja ainda possível pela Arte, pela mise en scène.

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Contudo, seria incipiente se falar apenas nessas influências. E, de uma forma abreviada, e provavelmente incapaz de traduzir a propriedade intelectual de Brisseau, gostaria de trazer algumas outras considerações abaixo:

Louis-Ferdinand Céline dizia que, para cada 50 páginas produzidas, 500 outras eram arremessadas na lixeira. Esse trabalho exaustivo tinha como princípio eliminar todas as interrupções possíveis na leitura do leitor. E não apenas isso: estabelecer, através da essencialidade de cada palavra, uma soma capaz de sustentar tanto as perspectivas concretas dos acontecimentos descritos como as suas nuances envolvidas, sem a blindagem intelectual do autor.

John Ford, que provavelmente foi o diretor mais eficaz na criação de pequenos personagens fundamentais à irrupção dos conflitos internos dos protagonistas (i.e. Victor Mature a sinalizar uma inesperada sensibilidade e uma não menos intrigante fragilidade ao se projetar na declamação de Shakespeare por um bêbado vaiado em uníssono no espetáculo mambembe de Paixão dos Fortes), tomava não só notas detalhadíssimas sobre aspectos passíveis de experimentação durante os ensaios de pré-filmagem, como criava verdadeiras biografias para tais “miúdos”.

Gustave Courbet para atingir o realismo cotidiano das suas pinturas, aplicava métodos de estudos sistemáticos a partir de uma proximidade real com o material pincelado, a ponto de gerar a sua famosa anedota a respeito da pintura de anjos: “Não sou capaz de dar vida a um anjo por nunca ter visto nenhum.”

Eric Rohmer elaborava sua direção a partir da convivência íntima com seus atores, estimulando além da disposição de elementos cênicos compatíveis com as idiossincrasias do seu elenco, diálogos criados através de proposições de temas em conversações filmadas.

Entre a fluidez proposta por Céline, passando pela generosidade de aspectos particulares entre personagens secundários em Ford, e o embasamento metódico das descrições cotidianas em Courbet e Rohmer, Brisseau projeta-se como exceção na tendência do conhecimento enciclopédico sobrepor-se à hermenêutica do ato criativo - sobretudo em se tratando de uma arte tão vinculada às resoluções morais e ao conteúdo literário dos roteiros como é o caso do cinema de factura clássica realizado na França.

Seu conhecimento pode fundir-se a Jacques Prévert na delicadeza de urdir sentimentos planos a partir de divagações em um primeiro momento difusas; Victor Hugo em seu faustoso narrativo, permeado pelo lado inverossímil de licenças poéticas ferocíssimas a questões sociais da sua época; Simone Weil no gosto pela elaboração de paradoxos entre o plano material e o plano metafísico na constituição de uma fé suficientemente liberta de doutrinas decadentes e reguladoras do homem... Ou mesmo unir pontos da filosofia de Freud a Epicuro.

Em todos esses pontos é possível perceber que o quê interessa a Brisseau é o delineamento das camadas mais apropriadas a um adensamento de sua própria atividade artística, o que acarreta em uma ampliação do raio hermenêutico e torna o artista capaz de conjugar uma livre expressão das formas às abstrações inevitáveis de um trabalho que se quer o mais compacto e concreto possível. Isto tem como conseqüência direta a completa rejeição de recortes narrativos supérfluos ou mesmo postiços, os quais supostamente conferem um valor mimético, isto quer dizer arbitrário e caduco, que tende a amenizar (ou seja, a falsear) o voluntarismo de certas construções que permitem o cineasta agir como um pequeno deus sobre a matéria que filma (algo que vimos recentemente em Azul é a Cor Mais Quente e O Som ao Redor), o que conseqüentemente contamina qualquer possibilidade de elaboração (de contemplação) e limita a parte de colaboração (de intelecção) do espectador.

Em À Aventura, assim como no Garrel e no Glauber dos anos 70, se a imagem não agisse como um contraponto necessário ao deslocamento das certezas do artista (verbalizadas ou aludidas nos encontros entre os personagens), na busca de distâncias ou de aproximações singulares entre aqueles pelos quais mantém um franco interesse e os seus opostos, seria possível cair no risco da representação vulgar do cinema literato autoral. Ao contrário, no filme de Brisseau o entusiasmo se converte em expressão, evolui para uma inspiração global, um movimento poético capaz de sustentar a síntese obtida pelos arranjos de suas texturas, dando a ver (ou provocando a suspensão) sem esterilizar os arremates do filme e o envolvimento do espectador que queira participar das inquietações que este compartilha.

Pois em À Aventura o que Brisseau nos dá a ver é o próprio universo ajustando-se ao gesto preciso e misterioso que o sedimenta e o regula.

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido.

Gaston Bachelard, Poética do Espaço


 

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