OS ANJOS EXTERMINADORES
Diante da sombria foice, o povo lembrava
Um rebanho transido fugindo com temor;
Sob os seus pés, tudo era luto, noite, pavor.
Atrás dela, com a fronte reluzindo docemente,
Um anjo levava o molho de almas, sorridente.
Victor Hugo, Mors
Não fazia sentido começar um texto sobre Les anges exterminateurs sem dizer que estive algum tempo entre os que acham o filme uma ilustração desnecessária dos acontecimentos que o antecederam: o chamado “affaire Brisseau”. Via um cineasta a tentar desculpar-se a si próprio e tanto a história do filme como ter Brisseau usado a sua voz para a narração pareciam confirmar isto mesmo. Ora, o projeto remonta a 2002, quando ainda se chamava Portraits nus e estava a ser produzido por Paulo Branco, que depois da estréia de Choses secrètes no festival de Cannes, propôs dois filmes a Brisseau. Como primeiro esqueleto, esse roteiro podia ser diferente, mas não acredito que fosse muito diferente da sua versão final. Quanto à voz off dita pelo realizador, foi uma escolha puramente formal. Havia uma montagem de trabalho com a voz de Brisseau e depois (cito agora o realizador[1]) “todo o texto foi dado ao Frédérique (van der Driessche). Depois de o ouvirmos, a Lisa (Heredia) achou que a minha voz era melhor. Disse-me que era mais velho, que dava um sentido mais triste e nostálgico ao texto”.
O que não quis ver da primeira vez que olhei para o filme, foram a sua atmosfera estranha, os seus anjos que sussurrando conspiram a tragédia, os efeitos artesanais que não tornam descabido pensarmos estar num giallo dos anos 60 ou 70 (sentimento que também a iluminação e os acessos de loucura da personagem de Maroussia Dubreuil parecem prolongar), a construção e a disposição admiráveis das cenas, o seu domínio sobre o espaço. E as conversas e os fantasmas, anjos exterminadores e anjos caídos, o desespero silencioso de tudo isto. Há portas que se abrem e nos levam para outro mundo, portas secretas como as de The Spiral Staircase, um dos giallos de Siodmak, ou as de Experiment Perilous, de Tourneur, aparições saídas dos poemas de Victor Hugo e que, como no seu Apparition, também podiam dizer, “A tua alma eu venho buscar”, respondendo à pergunta, “Que vens fazer, anjo, a este lugar tenebroso?”. A sensualidade atordoante e que hipnotiza de tudo isto. Como quando começa o anterior Choses secrètes e vemos a Nathalie de Coralie Revel entrar em cena, já com a certeza que dança em direção ao abismo. Quando se seduz os arcanjos, sejam diabólicos ou celestiais, abre-se a caixa de Pandora e aciona-se a máquina infernal.
Disse Brisseau a Antoine de Baecque que “o prazer sexual é cada vez mais importante nos meus filmes. É uma coisa muito rara no cinema, tirando o pornô, mas na maior parte das vezes é o grau zero do cinema, o que quero evitar. Eu recuso os filmes de sexo porcos e repugnantes, quero em vez disso encontrar a beleza, uma certa graça, em tudo isso. A minha idéia de cinema é a de utilizar as emoções sexuais como Hitchcock utilizou o medo nos seus filmes. Conseguir construir um suspense sexual, sem ser vulgar mas antes absolutamente crível.” Se não o conseguiu fazer, pelo menos tentou-o admiravelmente. Senão olhe-se para a cena no restaurante, em que não se vê absolutamente nada; em que basta uma muito hitchcockiana sugestão nos diálogos, aliada a gestos graciosos e olhares incautos, para tudo funcionar. Brisseau, outra vez: “É uma das seqüências que mais gostei de fazer, dado que se trata, para mim, de suspense puro. É uma seqüência em que não se vê quase nada, apesar do sexo no filme ser muito explícito. Mas aqui não vemos nada. E apesar desta cena já ter sido feita noutro filme[2], aqui dura seis minutos e meio. É o equivalente a várias cenas dos filmes de Hitchcock em que temos duas pessoas em perigo numa multidão. Aqui, apesar de não estarem em perigo, talvez o realizador esteja e o espectador questiona-se até onde vão numa cena destas que se desenrola em frente de toda a gente. Temos vontade que a cena se prolongue mas medo que as personagens sejam apanhadas.” Como sempre, e também como Hitchcock, Brisseau trabalha de forma muito precisa tanto sobre as questões técnicas como sobre a forma e a progressão dramática, perguntando-se sempre como há de encadear as cenas: “É igualmente difícil fazer com que a cena seguinte esteja à altura. Do ponto de vista dramático, tem de haver uma progressão contínua. Caso contrário, cai-se no anti-clímax. (...) a cena seguinte tem de ser sexualmente interessante e forte - e aqui surge o problema da filmagem do sexo -, mas sem ultrapassar o clímax da cena final de sexo a três”. E estas cenas seguintes no hotel, trabalhadas de forma a elevar a parada, as transgressões e os castigos, são iluminadas como já muito pouco se vê. Candeeiros, camas e cortinas de Fuseli ou Caravaggio, sei lá. Sombras que fazem antever muito do que se vai seguir no filme e justificar talvez o “tout ça c’est profoundament ta faut” da personagem de Sophie Bonnet dito ao seu marido, François. Ou o terrível “eu sou a amante do Diabo” gritado pela Charlotte de Maroussia Dubreuil.
É a essa Charlotte ferida, outra dessas “filles” que vêm de “nulle part”, que são reservadas as mais belas cenas do filme. A confissão a François no quarto de hotel, a cena em que se deita sob o céu estrelado em sua casa; é o anjo caído de toda esta maquinação divina. E se é François o Ícaro, é a Charlotte que o sol do sonho derrete “as asas e caiu lá do céu onde voava ao rés-do-chão da vida. A um mar sem ondas onde navegava a paz rasteira nunca desmentida... Mas ainda no seio sedativo da planura, a alma já lhe pede, empenitente, a graça urgente de uma nova aventura[3].”
Notas:
[1] Todas as citações de Brisseau, tirando a segunda, que vem de uma entrevista de 2005 feita por Antoine de Baecque ao realizador, são retiradas de Le cinéma selon Brisseau, uma conversa entre Brisseau, Lisa Heredia e Phillipe Rouyer.
[2] A cena no metrô de Paris em Choses secrètes.
[3] Ícaro, de Miguel Torga.
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