PERDIDOS, PERDIDOS, PERDIDOS
OS ANJOS EXTERMINADORES (Les anges exterminateurs). 2006. La Sorcière Rouge/T.S. Productions/Centre National de la Cinématographie/Cinécinéma/Sofica Soficinéma 2 (103 minutos). Produção: Jean-Claude Brisseau, Miléna Poylo, Gilles Sacuto. Produtora associada: Lise Bellynck. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Wilfrid Sempé (Eastmancolor). Som: Georges Prat, Cyril Jégou, Bernard Leroux. Música original: Jean Musy. Cenografia: Maria-Luisa Garcia. Montagem: Maria-Luisa Garcia. Elenco: Frédéric van den Driessche (François), Maroussia Dubreuil (Charlotte), Lise Bellynck (Julie), Marie Allan (Stéphanie), Raphaële Godin (Aparição 1/Rebecca), Margaret Zenou (Aparição 2), Sophie Bonnet (a esposa de François), François Négret (o amigo de Stéphanie), Jeanne Cellard (a avó), Virginie Legeay (Virginie), Estelle Gallarme (Olivia), Marine Danaux (Agnès), Apolline Louis (Céline), Christophe Maillard (o produtor), Françoise Bonnet (a vizinha da escada), Olivier Perrot (o policial), Lisa Hérédia (maquiadora - não creditada), Jean-Claude Brisseau (assistente de set - não creditado).
Muito antes da estréia de Os Anjos Exterminadores, que ocorreu em 2006, tendo apenas visto as referências ao “caso” na imprensa sensacionalista e sabendo de antemão algo da sua sinopse, já deveríamos saber que boa parte do que esperava o seu protagonista - François, um diretor que enquanto prepara um polar sente a atração repentina de adentrar a antiqüíssima disjunção hedonista do prazer e da dor - não seria precisamente ficção.
Acaba sendo determinante para saber a classe de cineasta ante o qual nos encontramos que os acontecimentos que quase encerraram a sua carreira após a filmagem de Coisas Secretas (fora julgado pela acusação de “violação digital” a partir da denúncia de duas aspirantes a atrizes em seu novo filme e absolvido em segunda instância) não foram modificados nem muito menos justificados por Jean-Claude Brisseau ao oferecer a “sua versão” com a filmagem de Os Anjos Exterminadores.
De fato Brisseau poderia ter prescindido, sem uma grande perda de informação, dos meios pelos quais superficialmente intervém na história narrada e este seguiria sendo, não obstante, seu filme mais impudicamente audacioso.
Sua presença em primeira pessoa consiste, sobretudo, no uso de sua inconfundível voz em off - sem se estabelecer como narrador, somente para aportar um matiz temporal, para que saibamos que tudo que vemos já ocorreu - assim como também em uma breve intervenção como ator interpretando um membro da equipe de filmagem e em algumas psicofonias enigmáticas intercaladas em várias ocasiões, com som radiofônico ou talvez saído de fones de ouvidos, o “utensílio” que une a solidão de alguns cineastas com a dos notívagos e viajantes.
Os acontecimentos mencionados, um escândalo e um escárnio (para ele, sobretudo, ou para ninguém mais do que ele), serviram coerente e ousadamente - talvez os dois termos que melhor lhe definem - para enriquecer este íntimo devaneio hitchcockiano (um enigma casual, a paixão, o perigo, uma nova vida) tão rico e aberto à possibilidade de dirigir-se a posições extremas, que tanto pode parecer infantil como adulto, jocoso ou terrível, pueril ou transcendente; e, sendo tão iconoclasta em seus “métodos” de investigação, consegue mover a todo instante de forma extraordinariamente harmônica todas as suas peças.
Perto do final do filme, na última conversa em um bar com uma das atrizes que foram utilizadas para o seu projeto, François, espécie de antagonista do Archibaldo de Buñuel, revelar-se-á ainda obstinadamente alheio às conseqüências das ações das quais foi instigador e cúmplice, convencido ainda de que por não ter sido o partícipe direto dos acontecimentos se manteria sempre seguro, à margem... Não é porventura esse um dos grandes propósitos do cinema, pensaria? Não se admira o controle quando os corações batem mais forte do que nunca?
Nesses orgasmos femininos que tentou apreender - mais do que filmar, e várias vezes utilizou mecanicamente ou desprezou o instrumento para registrá-los, a câmera - borbulhava aos borbotões o sangue, e não apenas a intimidade situava-se na intempérie como também o acúmulo de sentimentos interconectados carnalmente que todos somos, um desdobramento perante o qual ele aprenderá demasiado tarde que não se pode permanecer impassível.
Para essa busca de algo, denominado habitualmente em sua obra como “graça”, aqui circunscrito ao rosto das garotas ao alcançarem o clímax, Brisseau apresenta o seu protagonista como alguém mais ou menos equilibrado, fundamentalmente curioso, sem transtornos (nem mentais nem sexuais), aproximando-o em definitivo o mais próximo possível de si mesmo e da maioria dos possíveis espectadores. Desta maneira, forçados a não nos apropriarmos de fantasias, ou protegidos pelo que nos separa do ponto de vista habitual (o de pervertidos, assassinos e demais), devemos observar os desvios, as estranhezas e as conseqüências que decorrem no filme, sem distância, como feridas abertas, sem que seja possível nos instalarmos na comodidade da inocência voyeur.
Como sempre no cinema de Brisseau, trata-se de um convite para se compartilhar uma aventura rumo ao conhecimento, não importando o que outros disseram ou sentiram, nem seus manuais nem seus mapas.
Assim, com toda a naturalidade, volta a aparecer mais uma vez esse elemento tão inerente ao seu cinema que é a intromissão na narrativa de um contrapeso sobrenatural, onírico - talvez mais “inferior” que “superior”, subconsciente e compreensível como não-terreno -, que tão esplendorosos resultados havia produzido especialmente em suas obras-primas, Céline e Os Indigentes do Bom Deus, encarnados aqui duplamente em uma familiar de François (fonte distante de carinho rememorado, ansiado) e em dois anjos caídos.
O que sugerem, o que advertem, suas respectivas “missões”, constitui a única reconsideração que o filme contém, o único acréscimo no plano moral por Brisseau a uma tentativa (nem um contra-ataque nem um exorcismo) de leiloar o que lhe resta de reputação, convencido, um pouco ingenuamente, de que encontrará um número suficiente de “compradores” inteligentes.
O detalhe, definitivamente sério - não como vários jocosos do início, e que adquire ainda mais valor pelos pontos em que se situa -, de que as duas garotas-anjos se acariciam as mãos como faziam as atrizes, corolário à cena do espancamento brutal que deixou François paralítico, é o momento máximo de rebeldia do filme e um dos clássicos interstícios do cinema de Brisseau, pródigo nesses “contágios” fugazes entre planos distintos de significação, cada um mais orgulhoso e obstinado.
E falando em correspondências, e de Os Anjos Exterminadores, é de uma mescla concreta das personagens de Virginie (Virginie Legeay) e Stéphanie (Marie Allan) que nasce provavelmente a que interpreta a primeira no seu recente A Garota de Lugar Nenhum, que é uma primeira recapitulação para o Brisseau “ancião”, esse que vinha se anunciando desde o sublime À Aventura de 2008. O tempo da ação passou[1].
Nota:
[1] Referência às frases célebres que iniciam O Pequeno Soldado, filme de Jean-Luc Godard de 1963: “O tempo da ação passou, agora começa o tempo da reflexão. Estou envelhecendo.” (n.d.t.).
(Traduzido por Felipe Medeiros)
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